As criptomoedas, das quais o Bitcoin é a grande referência, ganham mais espaço na economia real. E, com isso, trazem também uma série de novas preocupações para os mercados, reguladores e governos.
A ideia original por de trás da criação de uma moeda virtual, anônima e criptografada, capaz de dar origem a uma política monetária dos novos tempos – baseada em bits e bytes e não mais na oferta fixa de dinheiro – é revolucionária e vinha ganhando forma desde o final dos anos 1990, até que, em 2008, surgiu o Bitcoin, acompanhada de um artigo que é considerada a sua Carta Magna: “Bitcoin: a peer to peer eletronic cash system”, de autoria de Satoshi Nakamoto, o ser ou entidade (até hoje não se sabe se é uma pessoa ou um grupo) criador da mais famosa criptomoeda do mercado até o momento.
Como toda tecnologia disruptiva, as criptomoedas se estabeleceram à margem de qualquer regulação. Anônimas, seguras (do ponto de vista técnico) e ainda assim obscuras, em seus primórdios, Bitcoins e outras moedas virtuais foram utilizadas como meio de pagamentos por traficantes, que criaram sites para a venda de drogas ilícitas baseados na deep web.
Mas, de alguns anos para cá, as criptomoedas vêm ganhando mais espaço na economia real. Hoje, são aceitas como forma de pagamento para bens bastante reais e corriqueiros, como café, pizza, eletrônicos e quaisquer outros bens desde que as partes acordem a forma de pagamento entre si. Elas também podem ser “sacadas” em terminais de autoatendimento mundo afora; além de representar um dos investimentos mais “quentes” do momento. Apenas em 2017, a valorização foi de incríveis 994%.
Enquanto a emissão de moeda física é controlada por nações e ancoradas em uma série de regramentos locais e globais, que não livram o sistema de volatilidade, mas garantem mecanismos de segurança e controle sobre a moeda; no caso das moedas virtuais, vive-se num ambiente ainda sem muitas regras.
O valor das criptomoedas é definido pela lei de oferta e procura e sua cotação é atualizada 24 horas por dia. Seu valor também é influenciado pela especulação e quantidade de estoque disponível no sistema. Esse estoque é criado, na rede P2P (peer-to-peer) na Blockchain por meio da “mineração” da moeda (criação de novos blocos) e resolução de problemas matemáticos, cujo grau de dificuldade pode oscilar de acordo com os cenários apresentados: aumenta (+) quando houver competitividade entre mineradores e diminui (-) quando os “mineradores” desistirem de “minerar” as moedas passam a comprá-las.
Os “mineradores” funcionam como uma espécie de bancos centrais de si mesmo e utilizam o software de código aberto – open source software, para a transmissão, auditoria, validação (saldos, transações) e adição de novos blocos de transações de Bitcoin na rede (Blockchain). O próprio sistema gera novas criptomoedas, que também são distribuídas aos “mineradores”, a título de recompensa, pelos serviços prestados descoberta de novos blocos e/ou validação das transações). O valor da recompensa é regressivo e a cada ciclo de quatro anos a mesma é reduzida pela metade. Até 2009, a recompensa era de 50 Bitcoins, de 2013 a 2016, esse valor passou a ser de 25 Bitcoins, enquanto no ciclo atual, que vai até 2020, o montante é de 12,5 Bitcoins para cada novo bloco.
Esse sistema independente e autorregulado dentro da rede P2P consiste de uma série de computadores e servidores onde cada um atua como um “nó” na rede. Quando uma nova mensagem entra, a informação é propagada entre todos os “nós” da rede P2P. A informação é normalmente encriptada e privada. Não há como rastrear quem adicionou a informação na rede, apenas verificar sua validade.
É justamente o uso da tecnologia Blockchain, ou cadeia de blocos, a principal inovação das criptomoedas. É essa tecnologia que se amarra que tornou as transações em criptomoedas extremamente seguras, mesmo funcionando numa rede descentralizada, controlada pelos próprios usuários.
O Blockchain pode ser preservado em milhões de computadores, uma vez que não existe um único centralizador do “livro-razão” ou dos dados. O primeiro bloco de Bitcoin “minerado” foi chamado de “bloco gênesis”, cuja emissão do Bitcoin é finita, ou seja, até o momento foram “minerados” aproximadamente 17 milhões de Bitcoins em circulação, sendo que o limite é de 21 milhões, que deve ser atingido apenas em 2140. Só que, diferentemente do que acontece com os metais preciosos, ou com elementos naturais como as pedras preciosas, no caso das moedas virtuais, não existe nada concreto, literalmente.
Enquanto quem tem uma onça de ouro, um diamante ou 10 reais, sabe que tem algo fisicamente palatável – ainda que armazenado no banco (em uma conta, ou mesmo num cofre), quem tem Bitcoins, não verá a cor do dinheiro. Por isso, é importante não confundir o advento da digitalização do dinheiro (e dos meios de pagamento), com as moedas virtuais. No primeiro, mantêm-se essencialmente todas as regras que regem o sistema financeiro-bancário, inclusive as regras para emissão da moeda e sua custódia pelas instituições financeiras. Apesar de digital, nesse caso, 10 reais continuam sendo 10 reais.
À margem do sistema
Um dos aspectos mais relevantes sobre as criptomoedas é que elas desburocratizam os processos, eliminam intermediários e permitem a descentralização da moeda. É aí que reside um dos grandes riscos dos Bitcoins e afins sob a perspectiva da prevenção à lavagem de dinheiro, combate ao financiamento ao terrorismo e à corrupção.
Assim como a ausência da regulação central faz com que não seja necessário seguir determinações de autoridades sobre a necessidade de eventual lastro dessas instituições e, mesmo dos governos, em moeda física; não se tem como garantir a comunicação às autoridades das transações suspeitas feitas por meio de moedas virtuais.
Ressalta-se que, até o momento, as exchanges não estão sujeitas às obrigações de mecanismos de controle expressas no artigo 9º da Lei nº 9.613/98, alterada pela Lei nº 12.683/12, ou seja, não são consideradas “pessoas obrigadas”, não existe uma obrigação legal e não são supervisionadas por nenhum órgão regulador ou pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf, que tem como missão produzir inteligência financeira e promover a proteção dos setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. O Coaf recebe, examina e identifica ocorrências suspeitas de atividade ilícita e comunica às autoridades competentes para instauração de procedimentos.
Dentre as incumbências dos setores obrigados estão o dever de identificar clientes, manter registros e comunicar operações financeiras. Um exemplo simples diz respeito às comunicações obrigatórias ao Coaf em caso de transações com dinheiro em espécie superiores a R$ 50 mil, se a transação for feita para aquisição de moedas virtuais, via conta da exchange numa instituição financeira, a mesma deve ser comunicada ao Coaf pela instituição. No entanto, se o valor não atingir esse limite e não houver atipicidade constatada, ao menos em tese, ela não precisa ser comunicada. Só que essa operação também não será capturada pelos meios oficiais, pois as transações conduzidas via exchanges estão fora do domínio dos setores regulados e fiscalizados.
No caso de operação de câmbio para a aquisição de Bitcoins nas exchanges do exterior, se fugir do padrão, como, por exemplo, capacidade financeira incompatível e/ou dificuldade na identificação da origem dos recursos, numa instituição financeira, a mesma deve ser comunicada ao Coaf pela instituição. Mas, se for feita por um cliente que tem os recursos para tal, ainda que seja para a compra de criptomoedas em uma exchange, isso pode hoje passar como uma operação normal, sem o acompanhamento desse novo recurso que pode estar usando para outros fins, não necessariamente lícitos.
Embora todas as transações sejam públicas e registradas num livro contábil descentralizado e aberto a todos, o famoso Blockchain, apenas os valores e os números das carteiras envolvidas são expostos na rede garantindo o anonimato.
Isso torna bem mais complexo a eventual possibilidade de auditorias cujo objetivo seja descobrir quem são os envolvidos. Na verdade, esse é um ponto de muitas discussões entre os experts em criptografia sobre o Bitcoin. O que podemos afirmar é que existem outras cinco altcoins (Monero, ZCASH, Zencash, Dash e NavCoin), cujas características de privacidade e anonimato são referências nesse segmento.
Num momento em que reguladores do mundo inteiro apertam o cerco, para que as instituições financeiras e outros atores do mercado identifiquem o real beneficiário final das transações realizadas, o anonimato permitido pelo uso das criptomoedas, pode representar um retrocesso e uma válvula de escape relevante para a movimentação de dinheiro fruto de atividades ilícitas.
Além disso, até o momento, é virtualmente impossível solicitar o bloqueio/resgate de moedas virtuais pelo Estado, ainda que se saiba quem é o dono da carteira. Assim como acontece com os metais e pedras preciosas, o custo com energia para realizar a “mineração” é bastante elevado. Só que diferentemente do que acontece com os elementos que só podem ser encontrados na natureza (você só pode extrair ouro de uma região geográfica onde ele esteja disponível), com as moedas virtuais pode se fazer a mineração de qualquer lugar. E, o fato de a mineração dos Bitcoins consumir mais energia do que a mineração de metais preciosos, tem levado os mineradores a procurem outros países com incentivos fiscais, ou que apresentem menor custo com energia elétrica. Muitos brasileiros cruzaram fronteiras para montar “fábricas” de Bitcoins no Paraguai, por exemplo.
Nossos parceiros do Mercosul não têm um arcabouço regulatório, mecanismos de controle e fiscalização tão desenvolvidos como os do governo brasileiro. Isso pode configurar um risco do ponto de vista das autoridades brasileiras, especialmente se o Banco Central não possuir um acordo de cooperação com estes países “fabricantes” de Bitcoins, o que dificultaria uma possível investigação. Mas, no caso do armazenamento e/ou processamento de dados por instituições reguladas pelo BC, se aplica o conceito da Resolução nº 4.658/18 para a contratação de serviços em “nuvem”.
Mais investidores do que a bolsa
Em outubro de 2018, a capitalização de mercado das criptomoedas, de acordo com a CoinMarketCap, era de US$ 212 bilhões. As 15 primeiras critpos são responsáveis por 87 % desse valor do mercado.
Isoladamente o Bitcoin representa 52% de todo o mercado de criptomoedas. São valores relativamente pequenos quando se pensa no sistema financeiro global. Mas, apenas uma fração desse montante, se usado para fins escusos, pode representar um problema e tanto para autoridades e para a segurança mundial. Afinal, como ninguém controla o fluxo de criptomoedas, é possível que, ao menos uma parte desse montante, pertença a organizações criminosas e grupos terroristas.
Um estudo sobre lavagem de dinheiro, realizado em 2015 e 2017 publicado pelo Tesouro Britânico, aponta que, teoricamente, as critpomoedas estão em 12º lugar no ranking de probabilidade de lavagem de dinheiro, classificada com nível baixo. De acordo com o Tesouro, o resultado transicional das criptomedas (recursos financeiros) deverão ser integrados ao sistema financeiro para concretização dos crimes de lavagem de dinheiro e/ou de terrorismo, os quais já possuem mecanismos de controle e processos de KYC (conheça o seu cliente).
As instituições financeiras tradicionais, aliás, vivem uma guerra silenciosa com o advento das criptomoedas. Boa parte das grandes instituições não quer ter em sua carteira conta das exchanges. Existem dois motivos fundamentais para isso. O primeiro é que o risco e a complexidade de cumprir com os regulamentos de conheça o seu cliente e prevenção à lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo nas operações que envolvem as criptomoedas, frente aos possíveis ganhos, impactados com o aumento do custo de observância e operações dessa natureza. O segundo, que é consequência direta da primeira, é a possibilidade de elevar o apetite de risco e consequentemente a exposição de forma mais intensa junto aos órgãos reguladores.
Por outro lado, as exchanges impetraram uma ação no CADE, o órgão de controle da concorrência no Brasil, que estão se sentindo inferiorizadas por conta das restrições que vêm sofrendo das instituições financeiras, enquanto isso travam batalha judicial, já no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas, para além disso, o crescimento do número de usuários tem sido acelerado, o que traz junto a necessidade de maior controle dessas operações, seja para fins de segurança dos investidores, seja para controles do fluxo de capitais ilícitos e, também, de evasão de renda. Isso levou a Receita Federal a publicar a Consulta Pública nº 6, de 2018 (finalizada em 19/11/18), que trata de criação de obrigação acessória, para que as exchanges de criptoativos (empresas que negociam e/ou viabilizam as operações de compra e venda de criptoativos) prestem informações ao FISCO relativas a todas as operações de compra e venda realizadas por elas.
Com isso, o órgão espera poder tributar quem está lucrando com as criptomoedas. O ganho de capital derivados da venda de ativos estão sujeitos à retenção entre 15% e 22,5% no imposto de renda. Além disso, ao estabelecer esse controle, a Receita amplia sua capacidade de lutar contra a lavagem de dinheiro e a corrupção, produzindo, também, um aumento da percepção de risco em relação a contribuintes com intenção de evasão fiscal. O órgão também estabeleceu a necessidade de as pessoas físicas e jurídicas declararem as transações feitas no exterior, e aquelas realizadas diretamente, fora dos ambientes disponibilizados por exchanges. De acordo com a Receita Federal, as negociações com Bitcoins teriam movimentado mais de R$ 8 bilhões em 2017.
O número de investidores nas criptomoedas já supera de longe o de pessoas físicas que negociam na B3, a Bolsa de Valores paulista, que soma 800 mil CPF’s cadastrados. O movimento da Receita Federal foio primeiro no sentido de regular o mercado local de criptomoedas. O Banco Central, que regula o sistema financeiro, tem acompanhado bastante de perto esse segmento, embora, ao que tudo indica, não deva regulá-lo tão cedo. O BC não trata as criptomoedas como uma moeda oficial, a exemplo do real ou de outras moedas estrangeiras e, por isso, não oferece nenhum tipo de segurança ou garantia oficial, ficando o investidor exclusivamente por sua própria conta e risco.
Além disso, a moeda deve ter efeito liberatório e nesse caso, isso só ocorre se houver acordo prévio de ambas as partes envolvidas na transação. Do ponto de vista de como são tratadas pelo regulador, hoje, as criptomoedas mais se assemelham a criptoativos. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), reguladora do mercado de capitais, tratou da possibilidade e das condições para investimento em criptoativos pelos fundos de investimento regulados pela instrução CVM nº 555 no Ofício Circular CVM/SIN/nº 1/2018, complementado pelo Ofício Circular nº 11/2018/CVM/SIN. A instrução CVM nº 555, em seus artigos 98 e seguintes, ao tratar do investimento no exterior, autoriza o investimento indireto em criptoativos por meio, por exemplo, da aquisição de cotas de fundos e derivativos, entre outros ativos negociados em terceiras jurisdições, desde que admitidos e regulamentados naqueles mercados.
No entanto, no cumprimento dos deveres que lhe são impostos pela regulamentação, cabe aos administradores, gestores e auditores independentes observar determinadas diligências na aquisição desses ativos. Nesse contexto, e levando em conta também a exigência de combate e prevenção à lavagem de dinheiro imposta pela Instrução CVM nº 301.
Uma forma adequada de atender a tais preocupações é a realização desses investimentos por meio de plataformas de exchanges que estejam submetidas, nessas jurisdições, à supervisão de órgãos reguladores que tenham, reconhecidamente, poderes para coibir tais práticas ilegais, por meio, inclusive, do estabelecimento de requisitos normativos.
Embora se recomende que os investimentos sejam feitos por meio dessas exchanges, não há vedação explícita para negociações realizadas de outras formas. Nesses casos, em razão de seus deveres fiduciários, os administradores e gestores deverão se assegurar que a estrutura escolhida seja capaz de atender plenamente às exigências legais e regulamentares acima referidas. Ainda sobre o tema da normalidade de funcionamento dos mercados em que são negociados os criptoativos e seus derivativos, é importante que o gestor verifique se determinado criptoativo não representa uma fraude, como, aliás, tem sido visto com grande recorrência, por exemplo, nas operações recentes de ICO, como são chamadas as ofertas iniciais de criptomoedas.
Apesar das reservas em relação aos criptoativos, o BC, a CVM e a SUSEP, reguladora do mercado de seguros e previdência complementar, desenvolvem um Sistema de Blockchain em parceria com a Microsoft, com o objetivo de facilitar e modernizar a integração de informações entre os órgãos, que, hoje em dia, ainda está baseada em e-mails, papeladas e telefonemas, com baixa eficiência e confiabilidade. Pode ser um bom ponto de partida, para que essas instituições se familiarizem com a nova tecnologia e, a partir daí, possam estabelecer a melhor forma de regular o mercado posteriormente.
As criptomoedas (ou criptoativos) têm potencial para serem disruptivas em várias frentes, para o bem e para o mal. É preciso que o seu potencial e evolução sejam avaliados e acompanhado com cautela e atenção, mas sem tentar criminalizá-las, sob o risco de impedir um movimento que pode representar a evolução natural dos mercados. O mais importante neste momento é eliminar as lacunas de conhecimento que impedem o monitoramento eficaz dos criptoativos. Essa tem sido a postura das autoridades brasileiras, que vêm acompanhando de perto essa evolução com pessoas e times dedicados a entender a evolução desse mercado.
Composição do comitê de compliance financeiro da LEC
Alessandra Gonsales, Angelo Calori, Aretuza Aparecida Sena, Emerson Siécola de Mello, Fábio Castanheira, Fernando Ribeiro, Júlio Andrade, Michelina Tavares, Renata Fonseca Andrade, Rosimara R. Vuolo/, Sandra Guida, Sandra Gonoretske e Valdinei D. Silva.
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Imagem: Freepik