Quais as novidades em regulação de programa de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo? Renata F. Andrade e Albert Bayer, do Comitê de Compliance Financeiro da LEC fazem um apanhado das mais recentes regulações e instruções normativas relacionadas com o tema e comentam quais os aspectos que as empresas devem priorizar para atenderem às novas disposições dos reguladores.
Embora remonte aos anos 1920, no período da Lei Seca, quando o consumo de bebidas alcoólicas era proibido nos Estados Unidos (e o contrabando movimentava fortunas), as legislações de combate à lavagem de dinheiro só ganharam tração mesmo a partir de meados dos anos 1980, com o violento avanço do tráfico internacional de drogas nos Estados Unidos e na Europa. Desde a Convenção de Viena, assinada também nos anos 1980, que o combate a este crime deixou de ser uma missão isolada de cada país para se transformar em um trabalho muito mais coordenado internacionalmente, com tratados e regras internacionais mínimas para serem seguidas pelas nações. É nesse contexto que nasce o GAFI, o grupo que reúne e direciona o trabalho das unidades nacionais de inteligência financeira, caso do COAF aqui no Brasil.
Mas foi só em 2003, quando o GAFI realizou a quarta atualização das recomendações, introduzindo práticas de Know your Client e a necessidade de diligências, a comunicação de operações suspeitas realizadas pelos bancos às autoridades, além da facilitação do congelamento de recursos disponíveis no sistema financeiro, depositados por suspeitos ou condenados, que se construiu a base do Compliance no sistema financeiro atual.
Por aqui, ainda em 2010, o Brasil ainda era considerado país de alto risco ou não cooperante, sendo considerado um destino dos recursos ilegais de financiamento ao terrorismo. Foi só em 2012, com a publicação da Lei no 12.683 que alterou diversas previsões na Lei no 9.613/98 (a lei original dos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil) tornando-a mais rigorosa, com a exclusão do rol de crimes antecedentes para tipificação da lavagem de dinheiro, que o Brasil entra na “era moderna” da prevenção à lavagem de dinheiro.
Mas tudo isso, agora é história. Órgãos multilaterais, como o próprio GAFI, tem feito mais pressão, para que os países aperfeiçoem seus regulamentos e mecanismos internos de prevenção à lavagem de dinheiro, o que tem acarretado em um rol de novos regramentos e uma maior exigência sobre os setores regulados para que eles aperfeiçoem suas análises de risco e os mecanismos de detecção de operações suspeitas, especialmente com maior rigor na avaliação dos beneficiários finais. A seguir, Renata F. Andrade, co-coordenadora do Curso de Compliance Financeiro e do Comitê de Compliance Financeiro da LEC e Albert Bayer, monitor do Curso de Compliance Financeiro e também membro do Comitê de Compliance Financeiro da LEC, apresentam uma visão geral das principais novidades regulatórias no âmbito da prevenção à lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo. Os especialistas apontam também a direção que as empresas precisam tomar em relação as suas políticas e práticas de Compliance para atender aos novos requerimentos das autoridades.
Mercado de Valores Mobiliários
Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Instrução 617/19
Publicada em 05 de dezembro de 2019 e vigente desde outubro de 2020, a Instrução 617/19 revogou a Instrução CVM 301/99 e atualizou as principais diretivas de prevenção à lavagem de dinheiro e combate do financiamento ao terrorismo, com as alterações da Lei 12.683/12 (atualização da Lei de prevenção à lavagem de dinheiro), 13.260/16 (Lei de prevenção ao terrorismo) e 13.810/19 (Lei de cumprimento das sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas) e operações de investigação recentes que revelavam a necessidade de aperfeiçoamento de controles e ganhos de eficiência.
Entre as principais novidades, temos:
- Reforço da abordagem baseada em risco para programa de prevenção à lavagem de dinheiro.
- Avaliação periódica de risco de lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo e necessidade de um relatório anual.
- Alterações no processo de conheça seu cliente, principalmente com relação à identificação do beneficiário final.
- Padronização do termo PEP de acordo com o COAF, Banco Central e outros órgãos reguladores.
- Detalhamento de situações de alerta e situações atípicas que devem ser monitoradas.
- Inclusão de dispositivos de monitoramento de cumprimento de sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
- Treinamento para agentes autônomos de investimento e prestadores de serviços relevantes.
- Inclusão de uma nota explicativa que detalha os principais pontos de governança e de conceitos importantes para a prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo.
Muitas mudanças necessárias atualizaram a regra para o contexto de digitalização dos negócios vivido hoje, como aceite de assinaturas digitais, cadastro eletrônico e a verificação em banco de dados digitais da veracidade das informações cadastrais. As alterações de situações de risco e monitoramento também preveem uma nova fase do regulador que desejam uma análise mais qualitativa do que automatizada. Isso vai exigir uma análise minuciosa pelos departamentos de Compliance das informações cadastrais, enquadramentos como PEP ou terrorista ou das operações.
Instituições Financeiras
Banco Central – Circular BACEN 3.978/20
Neste cenário, tivemos também outra importante alteração no tocante a regulação de programas de Compliance para empresas reguladas pelo Banco Central. A Circular 3.978/20 alterou diversas regulamentações do Banco Central, mas principalmente a 3.461/09 e passou a vigorar a partir de 01 de outubro de 2020. Assim como a norma da CVM, trouxe atualizações necessárias e adequações estruturais para o combate à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo.
Entre as principais alterações temos:
- Avaliação de novas tecnologias com o viés de PLD, não apenas de novos produtos.
- Avaliação de risco e efetividade não apenas focadas em clientes, mas também em produtos, parceiros, colaboradores e outros.
- Treinamento também de parceiros, correspondentes e prestadores de serviços.
- Verificação de cumprimento e efetividade – relatório anual.
- Procedimentos:
- KYC, KYP e KYE.
- Registro de operações.
- Monitoramento (art. 38) e seleção de operações suspeitas.
- Comunicação ao COAF.
- Conglomerado deve aprovar no conselho opção por política central e não individual.
Um ponto bastante relevante na normativa é a confirmação, novamente, do conceito de avaliação baseada em perfil de cliente, modelo de negócios, operações, produtos, canais de distribuição e utilização de tecnologias e atividades exercidas pelos funcionários, parceiros e prestadores de serviços. Para realizar isso, as instituições financeiras devem:
- Validar a autenticidade de informações de clientes.
- Não é permitido iniciar o relacionamento sem que ocorra a identificação e que a qualificação do cliente seja concluída. Existe a possibilidade de um período de 30 dias para a conclusão, mas apenas se o motivo for a insuficiência de informações.
- Atualização no conceito de pessoas expostas politicamente (PEP) que agora passa a incluir prefeitos, vereadores, secretários municipais e outras autoridades municipais. Apesar disso, a alteração ainda é insuficiente, pois não prevê todos os agentes públicos como fiscais, agentes de órgãos de controle e de contratação pública.
- Além do PEP em si, devem ser avaliados os familiares e estreitos colaboradores.
- Alteração dos valores de comunicação obrigatória para operações com dinheiro em espécie para R$ 50 mil.
- Alterações significativas nas operações de Câmbio.
Alguns pontos que necessitam de atenção especial dos regulados e que não estão tão claros na norma são os mecanismos de indisponibilidade de bens do Conselho de Segurança das Nações Unidas (previsto na Instrução CVM 617 e Lei 13.810/2019), atenção ao conceito de terrorismo (conforme Instrução CVM 617 e Lei 13.260/2016) e conceito de estreito colaborador é bastante amplo e traz riscos adicionais às instituições financeiras e é um desafio obter informações de relacionamento entre esses agentes. Outro ponto que merece cautela é a previsão de análise de até 25% (vinte e cinco por cento) de participação societária para fins de identificação de beneficiário final que não é taxativo e abre margem para elevação de risco. A recomendação é, sempre que possível, analisar todos os beneficiários da operação, independente de percentual. Por fim, outro desafio a ser implementado pelas organizações é obter as informações de destino dos recursos para prevenção ao financiamento do terrorismo.
Mercado de Seguros, Resseguros, Capitalização e Previdência Privada
Superintendência de Seguros Privados – SUSEP 612/20
Após consulta pública, a Superintendência de Seguros Privados revogou a Circular SUSEP 445/12 e publicou a nova Circular SUSEP 612/20 sobre programas de prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo. Ela entrará em vigor em 01 março de 2021, com exceção às ações de indisponibilidade de bens, direitos ou valores do Conselho de Segurança das Nações Unidas que tem vigência imediata.
Em linha com os demais reguladores, a SUSEP alterou seu normativo para incluir atualizações relevantes:
- Atualização do conceito de PEP, incluindo prefeitos, vereadores, secretários municipais e outras autoridades municipais.
- Menção de atenção especial aos PEP, seus familiares, representantes, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas que tenham participação.
- Inclusão de mecanismos de controle de ações de indisponibilidade de bens, direitos ou valores conforme sanções impostas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
- Elaboração de relatório de efetividade anual do programa de prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo.
- Tratamento diferenciado para resseguradoras e corretores com faturamento inferior a R$12 milhões, compatíveis com o tamanho e volume das operações.
As alterações nos dispositivos da regulamentação da SUSEP não trouxeram tantas alterações quanto às outras regulamentações. Em algumas situações, a resolução foi mais objetiva no tratamento das novas legislações, mas não deixou de contemplar todos os pontos necessários na atualização. Mas, caso as entidades tenham dúvidas sobre como tratar determinado tema ou alguns conceitos relevantes, muito embora não seja opinião do regulador especializado, é possível buscar inspiração nas outras regulamentações e forma de endereçar determinados riscos, caso tenham dúvidas.
E mais pra frente, quais os principais cuidados que as entidades reguladas com obrigação de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo devem priorizar nos seus programas?
Atualmente, temos visto uma crescente aceleração na digitalização dos negócios, abrindo novas possibilidades de inovações e de rápidas transformações. Uma grande alteração no mercado – que certamente trará alterações no contexto da prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo – é o PIX, o formato de pagamentos instantâneo brasileiro. Outras situações que merecem atenção das áreas de Compliance são as iniciativas de SandBox regulatório promovido pelo BACEN, SUSEP e CVM. A iniciativa permite estabelecer um ambiente regulatório experimental, mais próximo de uma economia inovadora, sem perder o controle regulatório e as premissas necessárias para o bom funcionamento do sistema financeiro e do mercado regulado.
Por outro lado, no contexto que vivemos, as entidades tem tido uma elevação no apetite ao risco. Sem falar que os riscos durante a pandemia têm se elevado. Conforme informe do COAF, até agosto de 2020 foram identificadas as seguintes situações de risco durante a pandemia:
- Contratação, com dispensa de licitação e superfaturamento de preço, de empresas com características de fachada e pertencentes a sócios com características de se tratarem de interpostas pessoas;
- Recebimento de recursos públicos destinados à compra de equipamentos ou insumos para o combate à pandemia com imediata transferência a terceiros sem relacionamento financeiro aparente;
- Transferência de recursos para servidores públicos por empresas que receberam pagamentos decorrentes de contratos administrativos;
- Realização de saques em espécie imediatamente após o recebimento de repasses de recursos públicos.
- Recebimento de transferências federais por correspondentes bancários destinadas ao pagamento de auxílio emergencial com imediato repasse de percentual a terceiras empresas, possivelmente de fachada;
- Recebimento de ordens de pagamento do exterior justificadas como comissões por vendas de máquinas hospitalares por pessoa sem histórico de atuação no ramo;
- Utilização de intermediários para a aquisição de ventiladores pulmonares importados que declaram preço muito superior ao publicado no website da empresa estrangeira exportadora;
- Criação de empresas de fachada em nome de familiares para transitar recursos desviados;
- Empréstimo de conta bancária por funcionários de empresa de equipamentos médicos para transitar recursos possivelmente desviados de contratos administrativos, com posterior devolução dos valores à empresa empregadora ou empresas associadas.
- Aquisição de embarcação de luxo por empresário logo após o recebimento de recursos públicos destinados ao enfrentamento emergencial da pandemia
- Remessa ao exterior a título de importação de produtos médicos na modalidade pagamento antecipado, por conta e ordem de terceiros, onde, de acordo com a documentação apresentada, verificou-se incompatibilidade entre o produto adquirido e atividade principal das adquirentes.
- Remessa ao exterior por empresas que possuem radar limitado, sendo que a soma dos valores das operações de câmbio ultrapassaram o limite para operar no comércio exterior.
- Recebimento de recursos provenientes do exterior por suposto pagamento de exportação de mercadorias (modalidade pagamento antecipado) por micro empresa, com sede em endereço residencial e imediata transferência para terceiros para suposta compra de imóvel.
Esse cenário de alta no apetite para o risco somado às mudanças no cenário regulatório e a alteração no nível de riscos durante o período de afastamento social requerem que as áreas de Compliance se adaptem e se atualizem com maior velocidade frente aos principais fatores de riscos de suas operações. Para isso, também devem manter uma constante comunicação com a alta direção e as áreas de negócios das empresas para atualizá-los sobre os riscos e novas possibilidades. Trabalho não falta.
Este artigo foi escrito por Renata F. Andrade (Co-coordenadora do Curso de Compliance Financeiro e do Comitê de Compliance Financeiro da LEC) e Albert Bayer (Monitor do Curso de Compliance Financeiro e Membro do Comitê de Compliance Financeiro da LEC)
Membros do Comitê de Compliance Financeiro da LEC: Renata F. Andrade e Rosimara R. Vuolo (coordenadoras do Comitê), Angelo Calori, Alessandra Gonsales, Albert Bayer, Alessandro Truller, Sandra Guida, Sandra Gonoretske, Luanna Villela, Valdinei D. Silva, Fernando Ribeiro, Julio Andrade, Aretuza Sena, Fabio Castanheira.
Publicado originalmente na edição 30 da revista LEC com o título “Um balanço das novas legislações de PLDFT”.
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