Sem sombra de dúvidas, a Europa é a região mais avançada em termos de leis, compromissos e regulações com a agenda ambiental e de direitos humanos em todo o mundo. Sem entrar no mérito acerca da intenção dos europeus, que ao longo de toda a sua história desmataram a maior parte de suas vegetação natural e consumiram sem limites os seus estoques de recursos naturais em prol do desenvolvimento (e que não se furtaram em desmatar e surrupiar em benefício próprio os recursos naturais de outros continentes como a América e a África), fato é que países como França e Alemanha, para citar apenas os dois maiores, têm estabelecido legislações amplas para garantir que as empresas assumam a responsabilidade para garantir que seus projetos e ações não se convertam em desastres ambientais ou que tenham impacto negativo sobre problemas sociais e direitos humanos dentro e fora de suas fronteiras. Em linha gerais, é isso o que estabelece legislações como o “Supply Chain Act” alemão, que entrou em vigor em janeiro deste ano, e o “Duty of Vigilance Act” francês, de 2017.
Foi com base na lei gaulesa que em 2018, seis grupos ativistas da França e de Uganda entraram com um processo emergencial na corte francesa (por meio de um mecanismo de fast track), contra a petroleira Total Energie, uma das maiores companhias francesas. Para elas, a Total Energie não fez tudo o que podia para proteger as pessoas e o meio ambiente local durante o desenvolvimento do projeto para exploração de petróleo e a construção de um oleoduto da Uganda até o porto de Tanga, na Tanzânia, orçado em US$ 3,5 bilhões. Dessa forma, as ONGs argumentaram que o projeto do gasoduto não cumpriu a “Lei do Dever de Vigilância”, que obriga grandes empresas francesas (com mais de cinco mil funcionários na França ou 10 mil no exterior) a evitar danos graves aos direitos humanos, à saúde, à segurança e ao meio ambiente. Segundo as ONGs, poços de petróleo serão perfurados em um parque nacional, cujo deserto circundante é o lar de hipopótamos, garças, girafas e antílopes. Já o oleoduto passaria por sete reservas florestais e dois parques de caça, correndo ao longo do Lago Vitória, uma fonte de água potável para 40 milhões de pessoas. A Total Energies afirma que o design de última geração do oleoduto garantirá a segurança por décadas. Além disso, desde que a ação foi impetrada em 2018, a empresa diz que foram publicados três novos planos de compliance, para corrigir eventuais problemas e mitigar os riscos no processo.
A Total Energies também argumentou que uma corte francesa não teria jurisdição sobre as atividades da subsidiária da empresa na Uganda. Ao mesmo tempo, as autoridades do país africano veem o projeto de perfuração de petróleo e o oleoduto como chave para o desenvolvimento econômico, dizendo que a riqueza do petróleo pode ajudar a tirar milhões da pobreza. Alguns chegam a ver a condenação internacional do gasoduto como um atentado à soberania do país.
Mas o tribunal disse que nada impedia a França de promulgar leis que regem as atividades no exterior de empresas presentes na França – um ponto que especialistas jurídicos disseram estabelecer um precedente importante, se aplicado nos casos futuros.
O julgamento da ação, realizado no último dia 28 de fevereiro em um tribunal de Paris, gerou grande expectativa no ambiente corporativo local por ser o primeiro envolvendo essa lei. Outras grandes empresas são alvo de processos que têm como base a mesma lei, cujo escopo e abrangência é bastante amplo. Multinacionais francesas, incluindo EDF, Suez, BNP Paribas e Danone foram processadas em casos de reivindicações tão diversas quanto à poluição por plásticos, condições de trabalho na França e no exterior, empréstimos a empresas que contribuem para o desmatamento e conflitos de terra com populações indígenas.
Apesar da ansiedade, o resultado do julgamento não permitiu tirar considerações mais efetivas sobre como a Justiça francesa abordará a lei, uma vez que o tribunal considerou o caso “inadmissível”, dizendo que os demandantes não seguiram corretamente os procedimentos judiciais contra a gigante francesa de energia. Segundo a agência de notícias Reuters, o tribunal civil de Paris teria afirmado que apenas um juiz que analise o caso de forma mais aprofundada poderá avaliar se as acusações contra a companhia petrolífera foram fundadas e, em seguida, proceder a uma auditoria das operações no terreno.
Para os advogados Hugues Boissel Dombreval e Jean-Yves Trochon, da firma de serviços legais germânica Rödl & Partner, os resultados desse primeiro caso permitem estabelecer algumas observações importantes. A primeira é que a “Lei do Dever de Vigilância” francesa é largamente ineficaz pela falta de um regulador e, também, pela ausência de um benchmark relevante. “A Lei Sapin II, aprovada alguns meses antes, estabeleceu um regulador, a AFA, que definiu um conjunto de diretrizes muito preciso, para que esta lei pudesse ser aplicada de forma eficaz e impactar substancialmente as práticas das empresas em termos de conformidade anticorrupção”, dizem os advogados, reforçando que a Sapin II é especificada por um quadro de referência destinado a orientar as empresas na implementação da lei, com controles por parte da AFA, recomendações e advertências se necessário, além da possibilidade de recurso ao comitê de sanções do órgão.
Dombreval e Trochon também lembram que embora o “Supply Chain Act” seja fortemente inspirado pela “Lei do Dever de Vigilância”, os legisladores alemães tomaram cuidados para tornar sua aplicação às empresas mais efetivas. Entre as medidas que os germânicos tomaram e que devem fazê-los evitar uma situação como o julgamento de 28 de fevereiro em Paris, está o estabelecimento de um regulador para monitorar a implementação da lei, colocado sob a supervisão do Ministério da Economia e com poderes para impor sanções administrativas em caso de não-cumprimento da lei.
Por fim, os advogados acreditam que a solução para os franceses pode estar na nova diretiva europeia. “O Supply Chain Act” da União Europeia está sendo desenhado e espera-se que ele ajude a preencher as lacunas da legislação francesa, embora se espere que não imponha obrigações excessivamente restritivas às empresas. A esse respeito, a entrada em vigor da nova diretiva para os reportes corporativos de sustentabilidade (CSRD) poderá aumentar os encargos (e os custos associados) para as empresas, em particular para aquelas que anteriormente não estavam obrigadas a publicá-los. No entanto, alertam os advogados, as empresas não devem esperar até 2025 para se preparar para as mudanças esperadas da diretiva europeia e da CSRD e implementar planos de ação dedicados à preparação para esta transição. “Isso é ainda mais verdadeiro para as empresas que atualmente não estão sujeitas à lei do dever de cuidado”, finalizam.