Um dos temas mais palpitantes da atualidade, no tocante a integridade, cautela com relação a terceiros, boa governança corporativa, amplitude do “compliance” e prevenção ao “e-esg washing” é a extensão da responsabilidade do mercado/sistema financeiro.
A questão é tão complexa e polêmica quanto importante, e envolve um grande questionamento prático e conceitual, que amplia, inclusive, para efeitos de “debate”, a questão meramente jurídica ou “legal”.
Reflitamos, rapidamente, sobre quem deveria ser considerado participante de um acidente/incidente/escândalo envolvendo as atividades de uma organização, além dela própria? Quem deve reforçar seus cuidados, procedimentos de “due diligence”, de “know your client’, e ainda seus filtros de financiamento/parceria no tocante a questões de integridade e sustentabilidade?
Sem a pretensão de esgotar a questão, e nem mesmo de se sugerir eventuais ajustes na legislação e na jurisprudência, por mero amor ao debate e à reflexão geral ampliada, propomos essa questão para que seja abordada e amadurecida na nossa sociedade. E para que as organizações que aceitarem esse convite, eventualmente revejam suas práticas, códigos de conduta/integridade, e avaliem como se querem posicionar quanto ao tema.
Para fins desse convite à reflexão dos leitores, portanto, levantamos um ponto chave, qual seja o alcance e a amplitude da importância, e do impacto, dos cuidados que as instituições devem ter ao financiar (emprestar a) projetos, atividades e iniciativas das organizações.
Em outras palavras, as organizações devem se ocupar “apenas” de suas questões internas e de suas atividades diretas, ou devem considerar, também, questões ao longo de sua cadeia de valor e impacto?
Em rápidos e curtos possíveis exemplos (meramente ilustrativos) avaliemos se projetos/programas que contem com incentivos fiscais/governamentais, e/ou mais especificamente com financiamento do mercado/sistema financeiro para a implantação, a aquisição ou a ampliação de atividades agropecuárias ou madeireiras que se utilizem de áreas invadidas, desmatadas, indígenas ou de preservação ambiental, ou que se valham de queimadas (que podem provocar desastres “naturais” de enorme proporção), áreas de mineração ou de exploração de óleo e gás, que não tomem os devidos cuidados e que gerem danos ambientais e humanos, construções de edifícios de empreendimentos imobiliários que avancem sobre remanescentes de áreas verdes nas cidades, ou que descaracterizem ruas e bairros, destruindo sua identidade, plantas químicas que não tomem os devidos cuidados com o fluxo de produtos e de resíduos para o lençol freático e/ou rios, lagos e mares, dentre tantos outros exemplos, deveriam (ou não) contar com um cuidado ainda maior dos “financiadores”? E se houver uso de mão de obra infantil e/ou que se assemelhe à escravidão?
A pauta é ousada, mas entendemos que seja também necessária, pois a experiência geral vem mostrando que nem sempre as organizações tomam os devidos e necessários cuidados com suas atividades, e seguem as melhores práticas do seu setor, e as autoridades governamentais, nem sempre fiscalizam como deveriam, o que pode gerar problemas, desastres e acidentes que afetam a todos – e que precisam ser evitados. E como se melhora esse quadro? O sistema financeiro pode/quer ajudar?
Começando do “básico”, sabemos que todas as organizações conscientes e responsáveis pretendem ser integras e sustentáveis, precisam ter boa imagem e reputação, credibilidade e “um bom nome na praça” etc., inclusive para que continuem construindo valor e gerando bons resultados (e dinheiro), e conquistando mais clientes (e mantendo o que já são parceiros); de forma que no segmento do Sistema Financeiro (como bancos, financeiras e demais instituições do segmento) “reina” a mesma lógica – e todos os agentes precisam seguir esse lema.
Do ponto de vista da legislação aplicável e das normas que regem esse segmento/mercado já se conhece o alcance da responsabilidade e da fiscalização, mas do ponto de vista da sociedade em geral, como se pode “melhorar o sistema como um todo”, e como se pode conquistar aliados para uma “fiscalização” mais efetiva, que colabore com a pauta da integridade e da sustentabilidade, em complemento à atividade governamental?
Sabemos que a questão é polêmica e complexa, e que já existe legislação determinando as responsabilidades e as normas, bem como as devidas fiscalizações das atividades empresariais (em geral), mas destacamos (de toda forma e para fins desse convite à reflexão) que existem peculiaridades no caso do sistema de financiamento das atividades empresarias, que aumentam bastante a relevância e o impacto da questão, quando consideramos as singularidades do sistema financeiro, pela sua própria atividade, capilaridade e imagem.
Se todas as empresas, e praticamente todas as atividades corporativas, precisam de financiamento, em que medida o sistema pode melhorar a qualidade desses empreendimentos, e ajudar a sociedade no tocante à redução de danos sociais e ambientais, decorrentes de maus projetos e empreendimentos descuidados?
Como já mencionado, a proposta é ambiciosa e polêmica, mas talvez oportuna, para que se considere criar uma rede (com o apoio do sistema financeiro) que em seu conjunto ajude a combater/reduzir grandes desastres, casos de “e-esg washing”, e descaso de forma geral; por parte dos “maus empreendedores e empresários”.
O “conjunto” de fatores e de razões para essa proposta é robusto e complexo, pois o sistema financeiro já costuma ser muito “preocupado” com “compliance”/regulatório/integridade, e tais áreas são sempre muito fortalecidas e respeitadas nas empresas do sistema. Mas, via de regra, essas questões são mais concentradas na sua própria atividade, e bem menos no impacto que algumas questões alcançam na sociedade. Seria o caso de ampliar e de melhorar o arcabouço de ferramentas que defendam a sociedade, o meio ambiente e o Planeta? Ou estaríamos “indo” longe demais e privatizando uma fiscalização que deveria ser melhorada pelas próprias autoridades?
Dispomo-nos a levantar aqui, com este artigo, essa possível “segunda dimensão” da enorme responsabilidade das instituições financeiras (de modo geral/a grosso modo), uma vez que por serem “financiadoras” de atividades, projetos, operações, instituições, organizações de todos os segmentos, atuam, também e em alguma medida, como “guardiãs”/ “sponsors” da integridade do que apoiam e financiam.
Nessa linha, agentes do mercado financeiro como um todo, talvez queiram refletir acerca do convite a essa atenção especial ampliada e redobrada, para que seus filtros sejam reforçados, e que de fato avaliem os cuidados que as organizações devem tomar, e que os “apoios” a projetos somente ocorram nos casos considerados efetivamente íntegros, responsáveis e sustentáveis.
Esse é o grande mote da questão aqui abordada, que pretende chamar a atenção do sistema financeiro no tocante ao que chamamos de sua “dupla relação” com o tema, e a sua “dupla importância” no contexto geral, considerando a dimensão interna que toda organização tem, e também uma “segunda dimensão” verificada ao “emprestar”, de certa forma, a sua credibilidade, e “filtro” de integridade, a projetos de seus clientes (a quem financie). Especialmente quando “figure”, expressamente, em placas indicando que financiam os empreendimentos.
Reflitamos pois, em conjunto com o sistema financeiro, para que este avalie se gostaria de ajudar ainda mais a sociedade a reforçar as estruturas de controle de integridade e sustentabilidade, que pode ser, sem dúvida, um grande aliado, e protagonista de um avanço nessas causas tão importantes.
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