Recentemente, uma importante rede social decidiu demitir seus funcionários no Brasil e fechar seu escritório local. Essa decisão, embora não diretamente relacionada à conformidade, traz à tona um debate relevante sobre o posicionamento de empresas que veem sua integridade conflitar com o interesse de prestar serviços ou vender produtos em determinados contextos.
Em regiões, países ou mercados com alto risco de corrupção, as empresas enfrentam um dilema: devem continuar operando e aceitar o risco de que uma prática de corrupção pode acontecer a despeito de seus melhores esforços, ou abandonar essas operações para evitar comprometer seus valores? Este dilema envolve reflexões profundas sobre a natureza da integridade corporativa, o papel da liderança empresarial e as implicações do que pode ser chamado de “overcompliance”.
Este artigo discute em que medida a importância comercial de um mercado ou cliente pode justificar os riscos legais, econômicos e reputacionais de operar sem integridade.
O Dilema Ético: Custo vs. Benefício
Nesta discussão, emerge a difícil escolha entre manter operações em um mercado economicamente relevante, mas com alta prevalência de corrupção, ou abandonar esse mercado numa tentativa de preservar a integridade da empresa. O Brasil personifica essa contradição: embora seja um mercado gigantesco e estratégico, os altos índices de corrupção em alguns setores criam um ambiente onde o risco de envolvimento em práticas questionáveis é elevado e, em algumas situações limites, provável.
O fechamento do escritório dessa rede social no Brasil, justificado pela empresa com base na forma como ela interpreta e preserva seus princípios éticos, provoca uma reflexão importante: se uma empresa realmente possui valores firmes e inegociáveis, deveria continuar operando em um país ou mercado onde preservá-los parece ser inviável ou impossível? Ou o risco de comprometer a conformidade deve ser avaliado em uma análise de custo-benefício, considerando a importância comercial do mercado?
Ao decidir operar em um mercado onde a integridade está comprometida, a alta-gestão da empresa estaria assumindo o risco de ter seus princípios éticos violados e, de certa forma, aceitaria a ideia de que sua integridade é um valor negociável. No entanto, ao decidir abandonar o mercado com base unicamente em princípios de integridade, a empresa corre risco de perder competitividade e até mesmo falir. Este é um paradoxo que confronta muitas organizações: comprometer a integridade ou sacrificar mercados estratégicos? Em última análise, o que deve pesar mais: o risco de perder dinheiro ou o risco de comprometer princípios éticos quando atuar com integridade não é factível?
Overcompliance: Compreender Além dos Custos
A discussão sobre o “overcompliance” é atual e relevante, mas exige que o termo seja definido corretamente. “Overcompliance” dever ser entendido como a implementação inadequada de controles e regras excessivamente rígidos, que ultrapassam o necessário e o adequado e acabam prejudicando a empresa. O alto custo financeiro de um programa de compliance, por si só, não caracteriza o excesso. O problema do “overcompliance” surge quando a empresa adota sistemas de controle ineficazes ou inapropriados ao contexto em que opera, independentemente de custos ou da perda de oportunidades financeiras, e o que o que tinha como objetivo a proteção prática dos valores éticos da instituição termina por comprometer desnecessariamente a atividade empresarial.
Por definição, o “overcompliance” é algo ineficiente. É um emaranhado de regras mal pensadas que cria uma falsa sensação de segurança e desvia recursos de áreas mais relevantes. Portanto, o foco de uma empresa não deve estar apenas em evitar custos para atuar de forma íntegra, mas em garantir que o programa de conformidade seja adequado e eficaz. Quando os controles não são adaptados à realidade do país ou do setor, eles podem se tornar obsoletos ou irrelevantes. Em última análise, isso compromete a própria integridade da organização, que passa a operar com um sistema de conformidade de fachada e indevidamente lesivo as suas operações.
A Integridade Não é um Valor Relativo
Outro ponto fundamental nessa discussão é a natureza da integridade como um valor fundamental. Se uma empresa decide que o investimento em conformidade deve variar de acordo com a importância comercial de um mercado específico, isso sugere que a integridade é um valor relativo. Essa perspectiva, no entanto, é equivocada e perigosa. A integridade, em sua essência, não é relativa. Ela é um princípio absoluto que deve guiar as decisões empresariais, independentemente dos custos ou desafios envolvidos.
Ao relativizar a integridade com base em custos ou pressões comerciais, as empresas corroem o próprio conceito de conformidade. A integridade precisa ser um valor inegociável, mesmo que isso signifique tomar decisões difíceis, como abandonar um mercado economicamente vantajoso.
Para sustentar esse princípio, é essencial que os programas de compliance sejam estruturados com base nos riscos reais, e não na relevância comercial do mercado. Isso não só promove uma cultura de ética e alinha a empresa ao “tone at the top” esperado pelas autoridades, mas também protege a organização de riscos reputacionais que podem afastar investidores, fornecedores, parceiros e clientes.
Desafios de Operar com Integridade em Mercados Complexos
Para empresas globais, operar em mercados onde a corrupção é disseminada representa um desafio significativo. Em certas regiões e mercados, pode-se argumentar que a única forma de operar é através de condutas ilícitas, como quando os agentes públicos locais condicionam a relação comercial ao pagamento de propinas.
Setores como infraestrutura, saúde, energia, armamentos e transporte, que dependem de interações constantes com o poder público, enfrentam riscos ainda maiores de se envolverem em práticas antiéticas. Essas empresas frequentemente são pressionadas a participar de esquemas corruptos ou ignorar práticas irregulares, sob a ameaça de perder contratos ou licitações importantes.
Esses riscos são exacerbados em países onde há insegurança jurídica e a aplicação das leis anticorrupção é ineficaz. Nesses contextos, as empresas precisam não apenas investir em programas de conformidade robustos e bem planejados, mas também desenvolver estratégias adaptadas à realidade local que lhes permitam operar de maneira ética, sem comprometer sua viabilidade financeira.
O caso do Brasil, um mercado relevante e estratégico que apresenta desafios significativos em termos de integridade, ilustra bem essa dificuldade. Abandonar o país pode parecer uma solução extrema, especialmente para empresas que já investiram recursos consideráveis em suas operações. No entanto, continuar operando sem comprometer a integridade exige um equilíbrio cuidadoso entre princípios éticos e estratégias de negócios.
A Busca pelo Equilíbrio: Integridade e Viabilidade
Ao invés de simplesmente colocar um preço no risco e seguir em frente, o grande desafio para as empresas é encontrar uma forma de atuar com integridade sem comprometer a viabilidade das suas operações. A saída da mencionada rede social do Brasil levanta a questão de até que ponto as empresas devem se comprometer para manter sua integridade intacta. Embora a decisão de sair de um mercado seja uma medida extrema, ela pode ser vista como uma demonstração do compromisso da empresa com os valores que considera fundamentais (independentemente de concordarmos ou não com essa postura).
Por outro lado, muitas organizações optam por buscar alternativas para lidar com esses dilemas. Isso pode incluir o fortalecimento dos programas de compliance, a criação de mecanismos internos robustos de monitoramento e auditoria, e o estabelecimento de um diálogo constante com as autoridades locais para garantir que a empresa possa operar de forma ética, mesmo em ambientes desafiadores.
O ponto crucial é que, independentemente da abordagem adotada, as empresas precisam compreender que a integridade não é uma escolha relativa. Pelo contrário. A integridade deve ser o alicerce de todas as decisões empresariais, mesmo quando isso implica enfrentar custos adicionais ou sacrificar oportunidades de negócio.
Conclusão
Operar em mercados complexos e corrompidos apresenta desafios significativos para empresas globais, mas relativizar a integridade com base em custos ou pressões comerciais é uma abordagem perigosa. O conceito de “overcompliance” deve ser criticado apenas quando os sistemas de conformidade se mostram ineficientes e inadequados ao contexto, e não simplesmente por serem financeiramente onerosos. A integridade deve permanecer um valor absoluto, orientando de maneira consistente todas as decisões corporativas. Ainda que isso exija escolhas difíceis, como a saída de um mercado estratégico, a prioridade deve ser sempre a preservação dos princípios éticos, assegurando que a empresa opere com responsabilidade e solidez moral, independentemente dos desafios encontrados. No curto e no longo prazo, a integridade deve ser sempre uma prioridade.