Em 2016, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado n° 435 (“PLS 435/2016”) a fim de alterar a Lei 12.846 de 2013, conhecida como Lei Anticorrupção.
Mais especificamente, referido projeto de lei pretende alterar o art. 7º da Lei Anticorrupção para exigir a certificação de programas de compliance, por gestor de sistema de integridade devidamente preparado para a função, como condição para atenuar sanções administrativas.
O PLS 435/2016 já foi aprovado pelo Senado Federal e encaminhado à Câmara dos Deputados, em abril deste ano, onde recebeu o n° 1588/2020 (“PL 1588/2020”) e aguarda apreciação.
Os benefícios de um programa de compliance e sua promoção ficam claros na exposição de motivos do PLS 435/2016:
“De fato, sistemas de integridade funcionais proporcionam muitos benefícios e efeitos positivos para as organizações, para a sociedade e para a economia em geral. Com relação às organizações, estes sistemas aumentam seu desempenho, sua eficiência e sua conformidade; aumentam o seu valor através da redução do custo de capital; reforçam a reputação da empresa; melhoram a formulação e implantação da estratégia; constroem boas relações entre as partes interessadas; reduzem o risco e, finalmente, protegem os direitos dos acionistas. Para a sociedade, sistemas de integridade podem ser muito vantajosos: resultam em relações éticas, abertura e transparência; impedem a corrupção; promovem um estado de lei e ordem, e a prevalência da justiça, e criam riqueza.”
“Neste sentido, faz-se necessário empenhar esforço legislativo para fornecer incentivos às empresas no sentido de, não apenas conscientizarem-se da importância dos sistemas de integridade, mas caminharem no sentido de tomar ações práticas para a consolidação destes sistemas dentro de suas estruturas.”
Entretanto, não obstante os benefícios de um programa de compliance para empresas, setor público e sociedade, bem como a aparente boa intenção por trás da gênese do PLS 435/2016, caso o projeto de lei seja aprovado, fatalmente resultará na proliferação de programas de compliance meramente formais ou “de papel” e causará outros problemas.
Inicialmente, importante notar que a redação do PLS 435/2016 carece de clareza ao estabelecer que os programas de compliance serão certificados por “gestor de sistema de integridade devidamente preparado para a função”. Nesse sentido, restam dúvidas sobre quem seria o gestor responsável pela certificação. O certificador seria agente externo, como ocorre, por exemplo no caso da ISO 37001 – Sistema de Gestão Antissuborno (que, diga-se de passagem, não tem o mesmo escopo da Lei 12.846/2013), ou funcionário da própria empresa, possivelmente o seu compliance officer?
Apesar de a exposição de motivos indicar que o gestor de sistema de integridade pode ser “pessoa já integrada na estrutura organizacional existente ou terceiro contratado para este fim, com funções mínimas definidas por lei”, o texto do projeto de lei não deixa isso claro. Bastaria uma certificação do compliance officer para o programa de compliance ser tido como apto a gerar benefícios para a empresa? Mesmo que por terceiros, o cenário não seria diferente. Em ambos os casos, o texto deixa brechas para que uma certificação sirva como um escudo absoluto para a empresa, além de poder gerar diversos outros problemas (falta de critérios para certificação, possíveis conflitos de interesse, falta de independência do certificador, certifier shopping, etc.).
Eventualmente, o projeto de lei poderia acabar impulsionando programas “de papel”, fazendo com que o mesmo tratamento que deve ser dado às empresas efetivamente comprometidas em desenvolver um programa de compliance robusto (que buscam tentar evitar que seus empregados ou terceiros cometam atos ilícitos) seja dado também para empresas de má-fé, ou empresas negligentes na prevenção de atos lesivos.
O projeto de lei também menciona as três funções que ficariam a cargo do gestor de sistemas de integridade. Esse trecho do projeto de lei também carece da precisão necessária. São mencionadas como funções do certificador, sem a suficiente clareza e profundidade: i) gerir de forma autônoma os mecanismos e procedimentos do programa de compliance, contribuindo para seu aperfeiçoamento contínuo; ii) atuar de forma constante e engajada nas interações entre a pessoa jurídica e as autoridades públicas; e iii) manter de forma atualizada e disponível a documentação relevante ao cumprimento.
Neste contexto, importante analisar o que ocorre no cenário internacional. Não se tem notícia de um país no mundo que exija um programa de compliance certificado como condição para mitigação de sanções em casos de corrupção. Pelo contrário, referido benefício, quando previsto, é concedido após detalhada avaliação de programas de compliance, no caso concreto, a cargo de autoridades competentes.
A questão de certificação foi bastante discutida internacionalmente há alguns anos, quando a ISO 37001 foi lançada. Naquela época, autoridades de diversos países tidos como referência na promoção e avaliação de programas de compliance anticorrupção se manifestaram no sentindo de que a certificação não é garantia da efetividade dos programas de compliance e que esta avaliação deve ser feita caso-a-caso, pelas autoridades competentes. Por exemplo, em um evento em 2018, Charles Chain, chefe da divisão de FCPA – Foreign Corrupt Practices Act (lei norte-americana que proíbe atos de corrupção no exterior) da U.S. Securities and Exchange Commission, a CVM norte-americana, se disse cético com relação à certificação e que teria uma sensação de “check-the-box”.
No Chile, a legislação permite que as pessoas jurídicas optem pela certificação. Os efeitos da certificação não são definidos claramente. Referido dispositivo tem sido alvo de diversas críticas não apenas no âmbito interno daquele país, mas também no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”). Em 2014 e 2018, o Grupo de Trabalho da OCDE sobre Corrupção nas Transações Comerciais Internacionais (“GT”), o qual promove a avaliação e apresenta recomendações sobre a implementação da Convenção Antissuborno da OCDE, criticou duramente o dispositivo chileno e sua sistemática. Neste contexto, vale lembrar que a Lei 12.846/2013 foi criada, também, a fim de atender compromissos internacionais de combate à corrupção assumidos pelo Brasil, em especial, os dispositivos previstos na Convenção Antissuborno da OCDE.
Se a ideia é fomentar a adoção de programas de compliance efetivos, certamente a exigência de certificação de gestor de sistema de integridade como condição para atenuar sanções administrativas não é a melhor forma.
Existem diferentes alternativas por meio das quais se poderiam fornecer incentivos às empresas para implementarem e aprimorarem seus programas de compliance. Isso poderia ser feito, em linha com práticas adotadas em outros países, por exemplo, i) por meio de redução mais expressiva da multa, que atualmente pode alcançar no máximo apenas 4% do faturamento bruto da pessoa jurídica, para aquelas que eventualmente cometam atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção e que tiverem um programa de compliance efetivo; e ii) excluindo a pessoa jurídica de multa, sem prejuízo da reparação do dano causo, quando, além da existência de um programa de compliance robusto, existirem outros fatores positivos para a pessoa jurídica, tais como o não envolvimento de sua administração no ilícito, a verificação de que a conduta foi pontual e a constatação de que a empresa reportou voluntariamente, tomou medidas de remediação e aprimorou seu programa de integridade.
Na hipótese de o PL 1588/2020 ser aprovado integralmente pelos deputados, seguirá à sanção ou veto presidencial. Uma vez sancionada, a lei entrará em vigor em 90 dias da data de sua publicação. Caso seu texto não seja aprovado na íntegra na Câmara dos Deputados, o projeto de lei retornará à apreciação do Senado Federal.
Pelos motivos acima, esperamos que o PL 1588/2020 não seja aprovado na Câmara dos Deputados. No mínimo, espera-se que exista uma ampla discussão acerca do referido projeto de lei com membros da academia, iniciativa privada, sociedade civil e autoridades, tal como houve no âmbito do PL 6.826/2010, que gerou a Lei Anticorrupção.Ir na contramão do mundo e exigir a certificação de programas de compliance como condição para atenuar sanções, além de gerar críticas pelo GT da OCDE na próxima avaliação do Brasil, que ocorrerá em 2022, incluirá outra “jabuticaba” no ordenamento jurídico brasileiro e contribuirá para a proliferação de programas de papel.
Este artigo foi escrito por:
Carlos Ayres é sócio-fundador do escritório Maeda, Ayres e Sarubbi Advogados. Professor da Pós-Graduação FGVLAW em São Paulo. Professor convidado da LEC. LL.M. em direito comparado pela University of Florida. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu (Universidade de Coimbra). Em 2010, atuou na divisão de enforcement da U.S. Securities and Exchange Commission em Washington/DC. Liderou a Delegação Brasileira para a ISO 37001 e foi membro do Editorial Group da norma. Autor de diversas sugestões incorporadas ao texto da Lei 12.846/2013. Reconhecido como líder na área de compliance por diferentes publicações especializadas, incluindo Chambers, Global Investigations Review, Who is Who, Compliance ON TOP e Análise Advocacia. Reconhecido como um dos 5 advogados de compliance mais admirados do Brasil em votação pública promovida pela LEC – Legal Ethics and Compliance.
Stephanie Bodal é advogada associada do escritório Maeda, Ayres e Sarubbi Advogados. Pós-graduada em Direito Internacional pela City University of London (2019). Pós-graduanda em compliance pela FGVLAW em São Paulo.
*As opiniões expressadas neste artigo não representam necessariamente a opinião da LEC sobre o tema e são de responsabilidade dos autores.
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