Um ano — e centenas de horas em preparações, comunicações e formações — depois, todos esperam o momento de comemorar o impacto da campanha “XYZ S.A contra o assédio moral!”, um conjunto de medidas implementadas pela equipe de compliancepara reduzir os casos de assédio moral nos escritórios da XYZ no Brasil.
Uma rápida olhada para os números do relatório final, com os resultados da campanha, e já foi preciso ligar o sinal amarelo: o índice de satisfação no trabalho dos colaboradores não melhorou. Nada grave. Afinal, várias questões podem influenciar a satisfação das pessoas. Na página seguinte, o sinal vermelho: o índice de turnover, especialmente de mulheres, não diminuiu. Nas entrevistas de desligamento, as palavras indesejadas se repetem: “ambiente tóxico”, “insegurança”, “piadinhas”, “falta de respeito” etc.
Onde será que a campanha falhou?
A equipe, aparentemente, fez tudo certo: depois de muita pesquisa, criou uma lista de práticas inadequadas (ex.: dar feedbacksnegativos em público, enviar mensagens fora do horário de trabalho etc.), comunicou — e muito — a todos e todas da organização e várias sessões de formação foram realizadas. Até uma linha exclusiva para denúncias de assédio moral foi criada.
As medidas implementadas, a princípio, pareciam acertadas. Era preciso olhar mais a fundo.
Dias depois, ao checar o conteúdo das denúncias que chegavam na nova linha criada, a equipe de compliance identificou um ponto curioso: de fato, os comportamentos listados como “inadequados” tinham diminuído significativamente: nada mais de reclamações sobre feedbacksnegativos em público ou de mensagens fora do horário de trabalho. Porém, semanas depois, identificaram que, apesar de muitas pessoas conhecerem, confiarem e apoiarem a nova linha de denúncias, muitos ainda deixavam de reportar as situações de assédio moral que testemunhavam no dia a dia.
Um ano depois, o desafio permanece, mas a equipe de compliance já não sente o mesmo entusiasmo de antes. Seus integrantes estão descrentes e com medo de assumir riscos.
O que será que a equipe de compliancepoderia ter feito de forma diferente para evitar este cenário?
A cada medida, uma aposta
O cenário hipotético que descrevemos é, infelizmente, uma realidade comum para muitos de nós, profissionais de compliance: só conseguimos perceber os eventuais resultados negativos inesperados – e/ou os efeitos colaterais de medidas que tinham tudo para dar certo — muito tempo depois da sua implementação, quando já pode ser tarde demais — um processo custoso, arriscado e demorado.
Custoso porque eventuais ajustes ou reformulações precisam passar novamente por toda a organização; arriscado porque os eventuais efeitos colaterais só são percebidos depois que o “estrago” já foi causado; e demorado porque podem ser necessários vários meses de seguidos processos de tentativa e erro até que se possa descobrir a solução mais adequada. Não precisa ser assim!
A verdade é que, mesmo munidos dos melhores dados, experiências e benchmarking, é muito difícil termos plena confiança e previsibilidade acerca dos efeitos de uma medida sobre o comportamento das pessoas. Não podemos esquecer que, diferentemente de um computador, nosso comportamento é influenciado por uma gama complexa de variáveis cognitivas, sociais e contextuais.
No caso hipotético de XYZ, por exemplo, apesar de todo cuidado, escaparam algumas questões comportamentais relevantes.
Primeiro, o assédio moral é complexo demais do ponto de vista comportamental para “caber” em uma checklistgenérica de condutas inadequadas. Vai além, e está sujeito, por exemplo, às nuances de fatores contextuais muitas vezes sutis (ex.: uma prática percebida como assédio moral em uma região do Brasil pode ser considerada uma forma adequada de tratamento em outra) e à percepção subjetiva das pessoas (ex.: uma mesma prática pode ser percebida como assédio moral por uma pessoa e não por outra).
O mesmo vale para a existência de uma linha exclusiva de denúncias. É sempre bom “facilitar o caminho” para um bom comportamento, mas apenas isso não previne um conjunto de questões comportamentais relevantes para a realização das denúncias, como, por exemplo, o efeito do espectador.
O problema, portanto, não está somente na complexidade da tomada de decisão humana ou no fato de que, quase que necessariamente, ocorrerão erros, mas em como vamos lidar com esses erros. No caso da XYZ, os erros foram muito danosos porque não foram antecipados adequadamente. Poderia ter sido diferente.
Antes de escalar, testar
A tomada de decisão na XYZ seguiu a seguinte lógica: 1º) Identificação de um desafio, 2º) Definição de uma solução que, aparentemente, era a melhor possível, na visão da equipe de compliance; e 3º) Implementação dessa solução em toda a organização.
Se repararmos bem, não houve, ao longo de todo o processo, espaço para reflexão sobre os potenciais erros. Por exemplo, o que faremos se a solução não gerar os efeitos esperados, apesar de todo o investimento? Que efeitos colaterais podem acontecer sobre as pessoas e que não antecipamos? Que problemas sistemáticos na concretização das medidas podem arruinar a campanha? As possibilidades são muitas. Por isso, é preciso adicionar uma etapa ao processo.
Para termos maior controle e segurança sobre os efeitos que as medidas de compliance produzirão sobre um grande número de pessoas, precisamos realizar testes antes de implementá-las em toda a organização.
A ideia é (i) definir um conjunto de medidas promissoras — desenvolvidas, sempre que possível, com base em insights das Ciências Comportamentais; (ii) testar as medidas em uma amostra relativamente pequena (por exemplo: 20% do total de colaboradores ou 30% das fábricas da empresa); e, por fim, (iii) comparar os resultados com base em um conjunto de métricas previamente definidas.
No caso da XYZ, por exemplo, antes de implementar a checklist e o canal de denúncias exclusivo em toda organização, o ideal seria testar essas ideias, com o máximo possível de rigor e objetividade, em um grupo restrito de pessoas, e observar os resultados. Se tivesse sido feito dessa forma, poderíamos ter tido um final mais feliz para a nossa história hipotética.
Por meio dessa abordagem, comum nas intervenções baseadas nas Ciências Comportamentais, a medida de complianceque apresentar os melhores resultados nos testes — que, muitas vezes, não é a mais intuitiva ou a que todos consideravam a melhor —, será, posteriormente,escalada em toda a organização de forma mais segura e efetiva.
Com a adição de uma etapa de testes, anterior à implementação da medida de compliance, todo o processo se torna mais seguro, eficiente e rápido. Mais seguro porque os eventuais efeitos colaterais, não antecipados, das medidas passam a ter alcance reduzido. Mais eficiente porque, se considerarmos no agregado, irá demandar bem menos recursos até a identificação da solução mais adequada — uma rodada de testes demanda menos recursos do que sucessivos processos de tentativa e erro envolvendo toda a organização. Mais rápido porque eventuais ajustes necessários nas medidas serão antecipados, não precisando demorar meses ou até anos, mas apenas o tempo da duração dos testes (algumas semanas ou poucos meses).
Já sabemos que os testes são importantes! Mas por onde começar?
Para saber o porquê, RCT!
Antes de tudo, precisamos compreender que existem diferentes desenhos de testes, dos mais simples aos mais complexos, com diferentes graus de confiabilidade.
O “padrão ouro” dos testes são os RCTs (Randomized Controlled Trials), um tipo de desenho experimental muito utilizado no meio médico para a avaliação da eficácia de remédios e vacinas em razão do seu alto grau de confiabilidade para inferir uma relação de causalidade entre uma intervenção e os efeitos observados.
O RCT, como o nome indica, caracteriza-se pela existência de um grupo de controle — um grupo que é medido da mesma forma que o da intervenção, mesmo sem receber as intervenções. O grupo de controle tem a função de servir como um grupo de comparação para que possamos ter maior confiança de que foram as intervenções — e não qualquer outra variável — que causaram a mudança de comportamento observada no(s) grupo(s) que recebeu(ram) as intervenções. Além disso, caracteriza-se pela distribuição realizada de forma aleatória das unidades (ex.: colaboradores) nos grupos de controle e de intervenção.
Nem sempre conseguiremos ter uma amostra grande o suficiente para que seja possível ter um grupo de controle; ou, ainda, criar grupos “puros” de forma aleatorizada, isto é, com unidades (pessoas) que pouco comentem entre si sobre as intervenções.
Mas que desenho de teste escolher?
A escolha sobre o desenho do teste, se um complexo RCT ou, por exemplo, um simples pre-post,dependerá do grau de confiabilidade esperado e das limitações do contexto. Mas o mais importante é sabermos que as possibilidades existem e que, se queremos realmente evitar que histórias como as da XYZ continuem se repetindo, precisamos começar a testar!
Precisamos testar as nossas ideias, mesmo as mais óbvias!
A verdade é que ninguém gosta de desperdiçar recursos e tempo, ou sentir que não tem controle e segurança sobre as medidas que pretende implementar. Muito menos de não conseguir demonstrar, objetivamente, o porquê da escolha de uma linha de atuação e não de outra – um diferencial importante no momento da prestação de contas para a Liderança ou para um órgão de controle. Porém, muitas vezes, apesar dessas dores, não conseguimos imaginar uma forma diferente de fazer as coisas.
Neste artigo, buscamos explicar que o primeiro passo para evitar esses problemas é utilizar uma abordagem que assuma a complexidade do comportamento humano. Isto é, que incorpore o pressuposto de que mudar comportamentos não é uma tarefa fácil! Precisamos estar abertos para a possibilidade — ou a quase inevitabilidade — dos erros.
Para que não tenhamos mais histórias como as da XYZ, que geram enorme frustração e desânimo, precisamos testar as nossas ideias — sim, mesmo aquelas que parecem óbvias! —, de uma maneira controlada e atentos à redução dos danos.
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Autores:
- Gabriel Cabral, Coautor livro Muitos, Professor LEC, Responsável por Comunicação e Treinamento na OEC (Odebrecht Engenharia e Construção);
- Izabel de Albuquerque, Legal Compliance Manager – TAP Air Portugal. Cofounder – NOVA Compliance Lab;
- Renato Capanema, Auditor da CGU e Diretor de Fiscalização na Câmara dos Deputados.
Imagem: Freepik
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