Ainda mais comunmente atrelado a certos grupos religiosos e organizações revolucionários de esquerda, a verdade é que o terrorismo tem outras vertentes que nem sempre são percebidas como tal. Um bom exemplo diz respeito ao avanço pelo mundo da ação terrorista atribuída a indivíduos e grupos de extrema direita. De acordo com dados de abril de 2020, publicados pelo Comissariado de Contra-Terrorismo da ONU, teria acontecido um aumento de 320% nos ataques conduzidos por pessoas ligadas a movimentos e ideologias de extrema direita no mundo. Aumento esse que tem levado mais indivíduos e grupos extremistas a operarem de forma transnacional, com muito mais trocas de informações online e offline.
Olhando para esse problema muito atual, o Information Exchange Working Group (IEWG), um dos grupos de trabalho do Egmont Group, entidade que congrega as Unidades de Inteligência Financeira Nacionais (UIF’s), estabeleceu o projeto Extreme Right Wing Terrorism Finance (ERWTF) com o objetivo de desenvolver e consolidar o quadro de inteligência estratégica associado ao financiamento do terrorismo de extrema direita.
Para o comissariado da ONU, o terrorismo de extrema direita também pode ser motivado por elementos étnico-raciais (caso dos supremacistas). Os membros do grupo de trabalho foram além nessa definição, ao pontuar que o terrorismo de extrema direita busca forçar os sistemas políticos, econômico e social a seguir um modelo de governo e extrema direita. “Comportamento racista, autoritarismo, xenofobia e hostilidade à imigração são atitudes comumente encontradas em extremistas de direita. O terrorismo de direita refere-se ao uso de violência terrorista por grupos de formações neonazistas, neofascistas e ultranacionalistas”, diz o texto.
Para os membros do IEWG, essa maior movimentação financeira, inclusive internacional, dos movimentos de extrema direita, torna mais relevante o papel das UIFs no contexto de prevenção e investigação desse tipo de terrorismo. Muitos desses movimentos operam sob o guarda-chuva de instituições que recebem doações, ou fazem vendas de materiais iconográficos de extrema direita. Embora transações em criptomoedas também sejam realizadas, na maior parte dos casos os recursos são movimentados por meio do sistema financeiro tradicional, o que torna (ou deveria tornar) as UIFs peças-chave no sistema de investigação de atividades dessa natureza. “UIF’s operam com mecanismos muito eficientes de cooperação operacional tanto no nível doméstico quanto internacional, e pode contribuir para identificar novos links, padrões e métodos relacionados com essas atividades financeiras e com o seu financiamento por meio do uso de inteligência financeira, além de estarem aptas para prover informações financeiras relevantes que podem ser de grande valia na identificação de pessoas envolvidas com movimentos de extrema-direita e suas eventuais intenções de cometerem atos violentos”.
Ao mesmo tempo, levantamento do IEWG juntos as UIFs, aponta ser necessário mais conhecimento e informações sobre o próprio fenômeno dos movimentos e do terrorismo de extrema-direita para que elas possam ter melhores condições para identificar fluxos de dinheiro relevantes. Na visão do IEWG, essas informações poderiam ser obtidas e compartilhadas com as UIF’s tanto por agências de aplicação da lei, como as polícias, quanto por outros serviços de inteligência de cada país. Um melhor entendimento sobre a ameaça do terrorismo de extrama direita facilitaria a sua detecção tanto por autoridades públicas quanto pelo setor privado, responsável por fazer as comunicações de transações suspeitas, por meio das quais muitos grupos e indivíduos são identificados.
Outro desafio seria o de ampliar o escopo das avaliações nacionais de risco, para que elas passassem a contemplar também as ameaças do terrorismo de extrema direita e, se for o caso, considerar a criação de forças tarefas para lidar com o financiamento do terrorismo, ou até mesmo, especificamente com o financiamento do terrorismo de extrema direita, das quais as UIFs sejam parte integrante. Para o grupo de trabalho, as unidades de inteligência podem exercer importante papel no que diz respeito ao melhor uso das informações de inteligência financeira.
A criação de indicadores de risco específicos também foi apontada como essencial para a detecção e a investigação de casos relacionados com grupos de extrema direita. “Indicadores de risco podem ser desenhados pelas agências e validados por autoridades competentes, ou criadas de forma conjunta. Uma vez estabelecidos, tais indicadores deveriam ser largamente compartilhados com autoridades e com entidades do setor privado obrigadas a reportar transações suspeitas. Embora reconheça que o tema ainda é pouco compreendido pelo setor privado, os casos já estudados e publicados pelo IEWG demonstram que a maior parte das comunicações de transações e atividades suspeitas recebidas foram reportadas por entidades obrigadas com o uso de indicadores financeiros específicos.
Liderado conjuntamente pela FIU da Holanda e da França, o projeto teve colaboração da INTERPOL e das UIF’s de países como Austrália, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Panamá, Polônia, Eslováquia, África do Sul e Reino Unido.
Dinheiro mais do que sujo
Com um olhar cada vez mais amplo para as atividades criminosas além das tradicionalmente relacionadas com a lavagem de dinheiro, como tráfico de drogas, corrupção e o próprio financiamento do terrorismo, o FATF-GAFI, órgão multilateral que direciona as regras globais em relação à prevenção à lavagem de dinheiro, publicou um estudo para avaliar os riscos envolvendo a migração ilegal e o tráfico de pessoas. Lançado em março deste ano, o relatório Money Laundering and Terrorist Financing Risks Arising from Migrant Smuggling, destaca que, apesar do visível aumento desse tipo de crime – que ganhou mais destaque por conta da guerra na Ucrânia, mas é um problema há décadas em países de regiões como a África, Oriente Médio e Sudeste Asiático – o número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de seres humanos ainda é muito pequeno. Na última década, conflitos regionais, instabilidade política e perseguição, além da pobreza e do impacto das mudanças climáticas, foram alguns dos muitos motivos no aumento no número da migração de pessoas que fogem dos seus países de origem em busca de refúgio.
Muitas nações sequer consideram esse tipo de crime como sendo de alto risco para lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. A consequência é um baixo número de investigações e processos em curso. Mesmo sendo um crime transnacional por natureza, a entidade chama atenção para a pouca colaboração internacional e o baixo volume de recursos investidos na operação para tentar localizar o dinheiro oriundo desses crimes. O FATF-GAFI estima que a receita gerada pelo contrabando de pessoas supere os US$ 10 bilhões anuais. Como a maior parte dos pagamentos das vítimas para os traficantes é realizada em dinheiro em espécie, o que torna mais difícil para as autoridades conseguirem dar prosseguimento às investigações. O relatório identificou que as organizações criminosas mais sofisticadas usam terceiros para realizar a lavagem de dinheiro e que, a depender do seu grau de sofisticação, vários métodos de lavagem de dinheiro são usados para reintegrar o dinheiro na economia legítima. “Os produtos do crime também podem ser investidos em imóveis, bens de alto valor e negócios legais tanto nos países de origem quanto no país de destino”, aponta o estudo, que também aponta que, em alguns casos, os contrabandistas evitam depositar os ganhos com a atividade, usando dinheiro em espécie para bancar suas despesas e gastos, inclusive com a compra de itens de luxo, ou em alguns casos, sustentar o uso de drogas ou gastos com jogos de azar.
De acordo com o relatório, um antigo modelo informal e fechado conhecido como Hawala, estabelecido há séculos em rotas de comércio no Oriente Médio e em partes do leste da África é o mais utilizado pelos contrabandistas. Em sua versão atual e adaptadas para uso em fins ilícitos, os Hawalas funcionam como uma “rede de atendimento” ao longo das rotas utilizadas e é composta por estabelecimentos como pequenos mercados, lojas de celulares e dispositivos eletrônicos e agências de viagem controladas pelos próprios traficantes. Outra forma bem conhecida seria de transporte de dinheiro em espécie por meio de pessoas usadas como mulas para o transporte dos valores.
Recentemente, os traficantes também passaram a utilizar com frequência as mídias sociais e serviços de comunicação criptografados em suas operações de recrutamento e coordenação. O que gera oportunidade para os criminosos aumentarem sua eficiência, mas também para que as investigações promovidas pelas autoridades legais possam detectar e rastrear suas atividades, incluindo sua movimentação financeira. Outra maneira de os criminosos lavarem os valores resultantes de suas operações seria através de redes profissionais especializadas em lavagem de dinheiro.
O relatório aponta também que, apesar de ainda haver muito pouca informação disponível sobre as conexões entre o tráfico de pessoas e o financiamento ao terrorismo, há evidências de terroristas recebendo dinheiro de traficantes nas rotas de migração de países africanos, por exemplo, por meio da cobrança de pedágio para passagem segura nos territórios controlados por estes grupos. A corrupção também é um ator importante nos esquemas de contrabando de pessoas.
Embora alguns países venham elaborando estudos, investigações e tendo acesso a informações de qualidade sobre o tema, ainda há uma grande parcela de nações incapazes de fornecer dados estatísticos sobre os resultados de investigações relacionadas ao Financiamento ao terrorismo e à lavagem de dinheiro em conexão com os processos de migração e tráfico de pessoas.
Para o FATF-GAFI, uma das formas de melhorar o trabalho seria focar na assistência aos países diretamente afetados pela ação desses grupos, para que possam trabalhar de maneira proativa em investigações do tipo “siga o dinheiro”.
O relatório também chama atenção para a importância de uma melhor cooperação com o setor privado, provendo-os com informações sobre os métodos específicos utilizados pelos criminosos para transferir e lavar seus lucros. Instituições financeiras, em especial, bancos e serviços de transferência de valores têm um importante papel no combate a tais atividades, na observação e emissão de relatórios sobre transações suspeitas.
Mais clareza para os SPAC’s
A SEC (Securities and Exchange Commission), regulador do mercado de capitais norte-americano, está propondo novas regras para dar mais transparência e maior proteção aos investidores em ofertas públicas iniciais (IPO) realizadas por Empresas de Aquisição de Propósito Específico, as famosas SPAC’s.
Como se fosse uma sociedade de propósito específico, as SPAC’s, são shell companies cujo propósito é levantar recursos para a aquisição de uma empresa. O negócio é feito antes de que a SPAC tenha determinado qual a empresa target, por isso, os investidores costumam levar em conta, principalmente, a expertise de um ou alguns dos patrocinadores da empreitada, em geral, o gestor ou o idealizador do empreendimento. É como se os investidores estivessem assinando um cheque em branco. O dinheiro levantado no IPO fica reservado em uma conta bancária separada e o gestor tem até dois anos, usualmente, para encontrar esse negócio ou essa empresa que será adquirida e, assim, concluir a operação.
As medidas colocadas pela SEC em audiência pública para consultas até o dia 31 de maio são parte de um movimento mais amplo de pressão às SPAC’s, desde que um frenesi de operações em 2020 e no início de 2021 provocou preocupações sobre os reflexos do aumento de negócios valendo-se dessa estrutura societária menos transparente.
Caso aprovado o novo modelo, o processo de IPO das SPAC’s (e o processo posterior de incorporação da empresa alvo, o de-SPAC) estarão mais alinhados com os procedimentos e demandas regulatórias exigidos de um IPO tradicional. Para os advogados da banca norte-americana Gibson-Dunn, as novas regras têm potencial para reduzir os benefícios de uma transação de-SPAC ao mesmo tempo em que vão exigir das SPAC´s, seus executivos e administradores, mas também das empresas alvo e dos consultores envolvidos com a operação, maiores responsabilidades e obrigações legais.
No cenário proposto, as SPAC’s precisarão divulgar mais detalhes sobre quem são seus patrocinadores, a remuneração deles, apontar eventuais conflitos de interesse e como se dará um eventual processo de diluição de ações. A divulgação de informações sobre a aquisição alvo, incluindo a visão do patrocinador sobre o negócio e a divulgação de opiniões externas independentes, precisam ser emitidas pelos menos 20 dias antes de quaisquer processos de votação de acionistas da SPAC em relação a uma aquisição. Ou seja, antes da formalização de qualquer negócio.
A qualidade e a precisão dessas e de outras informações divulgadas ao mercado também serão alvo de maior escrutínio. A SEC pretende deixar mais claro que os administradores e executivos das SPAC’s, mesmo durante o processo de integração da companhia alvo, terão responsabilidade em relação à imprecisão de informações que servem de base para a análise e a decisão de investimentos, inclusive projeções financeiras para o negócio. Hoje, muitas SPAC’s ancoram-se atrás de disposições da Lei de Litígio de Títulos Privados (PSLRA, na sigla em inglês), que oferecem um “porto seguro” nesse sentido. Em meados do ano passado, a Câmara havia proposto uma legislação nesse sentido. Legisladores norte-americanos entenderam que esse dispositivo, criado para incentivar a divulgação de informações para os investidores potencialmente valiosas sobre as perspectivas futuras de uma empresa estaria sendo usado de forma distorcida em parte das operações relacionadas com SPAC’s.
Na análise da Gibson Dunn, caso a Proposta seja adotada, não está claro se a falta do “porto seguro” oferecido pela PSLRA, especialmente se associada às propostas de mudanças nas regras relativas à divulgação de projeções financeiras, levará a alterações na apresentação das projeções e premissas para o negócio, ou ao seu abandono. “Nesse último caso, isso poderia efetivamente eliminar as SPAC como alternativa a empresas-alvo que não possuem um longo histórico operacional”, diz a análise do escritório. Além disso, os advogados da banca norte-americana entendem que alguns aspectos da proposta podem ter consequências para o futuro das SPAC’s como veículo alternativo aos IPO’s tradicionais, particularmente as propostas relativas à responsabilidade do banco subscritor da SPAC também na de-SPAC (o que tem levado muitos bancos a rever sua participação nesse tipo de operações), a impossibilidade de contar com o “porto seguro” do PSLRA e os novos prazos propostos para o enquadramento em um novo “porto seguro”, com prazos de liquidação mais curtos e regras mais restritas reduziriam a flexibilidade da SPAC e aumentariam a complexidade e o custo de conclusão de um transação de-SPAC.
Imagem: unDraw
Artigo publicado originalmente na edição 34 da Revista LEC com o título “Um novo ‘velho’ Terrorismo”.