Mais do que o avanço do comércio eletrônico, a digitalização do varejo está revolucionando o equilíbrio de poder entre os diferentes elos da cadeia. Nesse novo contexto, novos riscos precisam ser mensurados.
A pandemia acelerou o processo de digitalização da jornada de compra do consumidor. O aumento do e-commerce e da operação em diferentes plataformas eletrônicas de comercialização, particularmente os marketplaces, tem ajudado a viabilizar e difundir toda uma nova gama de moedas e meios de pagamento digital, que por sua vez, dão origem a novas formas de se fazer negócios e estabelecer relações econômicas com consumidores, fornecedores e outros parceiros de negócios.
Como explica o sócio da big 4 de consultoria e auditoria PwC Brasil, Adriano Vargas, o processo de digitalização traz inovações que ampliam as opções e trazem mais flexibilidade para o consumidor. E como em todo o processo de inovação, nem sempre todos os riscos são conhecidos.
As moedas e meios de pagamento digitais, cada vez mais viabilizadas e utilizadas em transações no varejo, se inserem nesse contexto gerando novos riscos que precisam ser endereçados, além de uma questão que precisa ser respondida: quem é o ator mais importante, do ponto de vista da responsabilidade do Compliance nesses casos?
Isso ainda é motivo de discussões embrionárias, mas à medida em que os novos modelos ganham em popularidade e relevância, maior é a tendência de introdução de uma regulação que abarque esses novos modelos.
Fato é que as moedas e meios de pagamento digitais trazem novos atores para um território que sempre foi exclusivamente operado pelas instituições financeiras, o que por si só, já lança dúvidas sobre a real capacidade que essas empresas de origem no setor não-financeiro têm de fazer o Compliance de prevenção à lavagem de dinheiro, por exemplo, algo que está no dia a dia do Compliance financeiro, mas nem tanto no dos profissionais de Compliance de outras áreas.
Há todo um processo de avanço dos ecossistemas de varejo que operam de ponta a ponta, conectando milhares de outras empresas de todos os portes a milhões de consumidores e, atuando como agentes de bancarização importantes no processo. Muitos estão caminhando para esse modelo, como o Mercado Livre, e tudo isso impacta o negócio. Ainda que operem em atividades muito específicas e atuem em parcerias com outras instituições financeiras e de pagamento, esses varejistas passam a operar mais dentro do setor financeiro, mas sem o mesmo grau de preocupação e de responsabilidade que os bancos têm. Por isso, definir de quem é a responsabilidade de fazer o processo de “conheça o seu cliente” e avaliar situações possíveis de lavagem de dinheiro (e isso vale principalmente para os sellers, outras empresas que se valem do marketplaces para vender seus produtos), é um ponto de atenção a ser observado.
No mundo inteiro, as plataformas de e-commerce são criticadas por não conseguirem exercer um controle amplo e efetivo sobre o que é vendido por meio das suas plataformas, e isso em relação a produtos falsificados ou de origem duvidosa. O uso das plataformas como uma nova forma de lavanderia, seria um desafio adicional.
Conhecendo o território
As varejistas já possuíam uma atuação muito próxima do sistema financeiro, por meio de parcerias contratuais ou societárias com bancos para a oferta de diferentes produtos, como crédito, cartões e seguros. A principal mudança agora é a internalização desses serviços pelas empresas de varejo, no bojo das mudanças regulatórias que permitiram modelos de negócios mais simples e flexíveis e do uso intenso da tecnologia.
É uma tendência que vem sendo observada há alguns anos e deve crescer com a digitalização. “Esse movimento não se restringe ao mercado de varejo. Temos observado este movimento também nas indústrias de tecnologia, mobilidade, construção/imobiliário, telecomunicações, entre outras”, pondera o sócio líder da área de Forensic da KPMG, também uma big 4, Emerson Melo.
O processo de digitalização permite, por exemplo, que novos agentes entrem na cadeia de valor e de pagamentos, muitas vezes eliminando as operadoras de cartão tradicionais do processo e, ao mesmo tempo, deixando o mercado menos fechado e restrito, com mais flexibilidade.
Os desafios para uma empresa não-financeira expandir suas operações e passar a atuar como parte do sistema financeiro não são poucos em função da mudança e adaptação para operação em um setor regulado.
O desafio nesse cenário é o de internalizar toda a estrutura de Compliance regulatório, para garantir que as atividades serão realizadas de acordo com a regulamentação”, pontua a sócia da área de Bancos e Serviços Financeiros do Mattos Filho, Larissa Arruy.
O desconhecimento pode trazer custos de Compliance não planejados ou expor a empresa a riscos operacionais e reputacionais. “Por serem reguladas pelo Banco Central, essas operações criadas pelos varejistas para atuar no setor financeiro estão sujeitas à regulamentação de prevenção à lavagem de dinheiro aplicável. Portanto, devem observar requisitos de PLD que vão além dos procedimentos de Conheça Seu Cliente e envolvem o monitoramento e reporte de transações suspeitas, entre outros”, afirma Vargas, da PwC.
Nos casos em que a varejista não conte com uma estrutura de Compliance específica para cuidar das suas operações que a inserem no sistema financeiro, cabe a área de Compliance dessas empresas identificar os requisitos regulatórios aplicáveis à atuação pretendida, avaliar os riscos e recomendar os mecanismos de mitigação. Essa avaliação, quando realizada previamente, pode ser uma excelente fonte de informações, para que a empresa avalie a oportunidade, as diferentes alternativas e investimentos necessários, e escolha a melhor opção para a sua estratégia.
Para Larissa Arruy, a internalização das atividades de pagamento pelas empresas de varejo e plataformas de comércio eletrônico é uma tendência clara no mercado, que tem como objetivos principais aprimorar a experiência do usuário em relação ao pagamento, trazendo mais sinergia para a operação de compra, e manter os recursos naquele ecossistema específico. “As mudanças normativas mais recentes na regulamentação de pagamentos e mesmo de operações de crédito (com a criação das fintechs de crédito) favoreceram esse movimento, permitindo a criação de modelos de negócios inovadores e mais flexíveis. Contudo, por serem atividades altamente reguladas, é fundamental que as empresas criem estruturas de Compliance regulatório adequadas, para assegurar o cumprimento das obrigações impostas pelo regulador”, conclui.
E o PLD?
Nesse novo contexto de transações, é inevitável questionar a quem cabe a responsabilidade por adotar os procedimentos relativos à prevenção à lavagem de dinheiro. A plataforma ou o vendedor (seller)?
“A responsabilidade de realizar procedimentos de KYC deve ser de todos no ecossistema sendo que cada player deve realizá-lo na sua ótica e contexto de atuação”, acredita Melo, da KPMG. “É inquestionável que precisamos também rever/atualizar as regulamentações para acompanhar os avanços tecnológicos”, reforça o sócio da consultoria, que destaca a importância de refletir sobre as suas operações sobre alguns contextos. “Será que conheço os riscos de lavagem de dinheiro por clientes, parceiros, fornecedores ou contrapartes do meu negócio? Tenho o conjunto de artefatos para sustentar o tema internamente, inclusive junto à liderança da companhia? Consigo monitorar as transações e eventos que passam no fluxo do meu negócio, de forma tempestiva e apropriada conforme requisitos da regulamentação? As pessoas da minha operação possuem a cultura de prevenção para identificar e reportar os casos para discussão? Num ambiente mais complexo de relacionamento com contrapartes, será que consigo identificar os riscos de se ter este participante com interação no meu negócio, incluindo operações internacionais?”, enumera.
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Publicado originalmente na edição 30 da revista LEC com o título “Setor em transformação”.
Imagem: Freepik