Apesar da pressão e dos desafios inerentes, ser o Compliance Officer de uma empresa sob monitoramento independente é um dos pontos altos na carreira de um profissional da área.
Em toda e qualquer carreira, existem alguns marcos que, por si só, são capazes de posicionar o profissional num patamar superior, algo que os separa da média do mercado e lhes garante um status diferenciado entre os seus pares.
Na área de Compliance, pode-se dizer que ter encarado um processo de monitoramento independente é um desses marcos que eleva a imagem do Compliance Officer. É algo quase místico para a maioria dos profissionais de Conformidade uma vez que, frente ao tamanho do mercado, o número de casos e por consequência de profissionais envolvidos nesse tipo de situação, é ínfimo. Como na maioria das vezes esses profissionais – até por determinação das suas empresas – não gostam de comentar e expor muito o assunto, o funcionamento do monitoramento independente ganha contornos um tanto quanto “fantasiosos”, já que proliferam muito mais percepções externas sobre como elas acontecem, do que informações de fontes primárias sobre como de fato elas funcionam.
“CCOs do mundo todo disseram que minha vida seria um inferno. Que ser monitorada era a pior coisa do mundo, que eu não iria viver… Foi mais ou menos assim”, lembra Olga Pontes, Chief Compliance Officer da Odebrecht S/A. Quando passou a encarar na pele a realidade da monitoria, entretanto, a situação se colocou para ela de forma muito diferente. “Tudo que eu ouvi de ruim, do que poderia ser um processo de monitoramento, estou vivenciando totalmente o oposto”, garante a executiva da holding baiana.
O fato de Olga estar vivendo uma realidade que se mostra oposta ao “inferno” que lhe foi pintado não quer dizer que encarar um processo de monitoramento independente seja tranquilo. Muito pelo contrário. O nível de exigência e exposição que esse tipo de situação impõe aos profissionais é tamanho que hoje, só mesmo quem já tem muita vivência e conhecimento sobre a verdadeira realidade do Compliance
nas empresas tem condições de encarar com alguma segurança (mas não sem um nível de esforço e trabalho muito superior ao já pesado dia a dia) o escrutínio de especialistas que são contratados para avaliar se os termos do acordo firmado estão sendo cumpridos e se o programa da empresa está funcionando – ou caminhando para funcionar – como as autoridades, na figura do monitor, acreditam que deva caminhar.
“É um choque!”, reconhece Rogéria Gieremek, Presidente da Comissão Permanente de Estudos de Compliance do IASP e da Comissão Especial de Estudos de Compliance da OAB/SP. “Você se vê numa situação difícil. Ninguém fica sob monitoria por ter feito tudo maravilhosamente bem. Obviamente, houve algum ponto que mereceu essa análise mais detalhada”, explica.
A monitoria independente de Compliance é um instrumento adotado pelas autoridades (muito especialmente pelas dos Estados Unidos), para assegurar – nos casos em que julgam que a empresa realmente tem falhas sérias ou a falta de uma cultura de conformidade – que quem fechou um acordo de leniência (seja um DPA, NDA ou ainda uma negociação de plea bargain) com o governo realmente cumpra com o que foi estabelecido em relação a esse tema. Isso pode envolver desde a criação e a automação de processos até o envolvimento da
cúpula e a transformação cultural da companhia. “Eles vão colocar alguém (dentro da empresa) para lhe ensinar o que é o tone at the top”, exemplifica a advogada Isabel Franco, sócia de Compliance do escritório Azevedo Sette e uma das poucas especialistas com vivência em monitoramento independente do Brasil.
Não existe decreto que trate da monitoria independente no arcabouço legal norte-americano, seja em relação ao FCPA ou a qualquer outra legislação parecida. Como lembra Isabel, o instituto nasceu, mais ou menos, de forma espontânea e o seu caráter é contratual. “Quando a empresa infratora faz um acordo com as autoridades norte-americanas ela se propõe a andar na linha”, pontua a sócia do Azevedo Sette. Se as autoridades acreditam que só a “palavra da empresa” – o que poderia resultar num auto reporte, por exemplo – não é suficiente, elas exigem a presença de alguém de fora para acompanhar e reportar o andamento do acordo.
Sendo uma relação contratual, os termos do acordo que vão detalhar o funcionamento de cada monitoria não são públicos. Isso joga mais “mistério” sobre como de fato funciona o processo. Até porque, podem existir diferenças de escopo e extensão, de acordo com cada caso. Em geral, elas duram dois ou três anos, mas podem ser estendidas para até cinco anos, caso o desenvolvimento não ocorra a contento no prazo inicial estipulado. Da parte das empresas, embora teoricamente elas possam não concordar com a presença do monitor e com os termos do acordo, na prática, não existe muito o quê possa ser negociado nessa hora. “Quando as autoridades acham que você precisa do monitor é por um motivo importante”, reconhece Isabel.
Quem é o monitor?
O processo de monitoramento independente, em especial no que diz respeito à escolha e a relação entre monitor e empresa, evoluiu bastante desde o início dos anos 2000, quando o advento passou a ser utilizado com mais frequência. A primeira grande mudança veio em 2008, com a publicação do Memorando Monford, assinado pelo então Procurador-Chefe Adjunto do Departamento de Justiça (DoJ), Craig S. Monford. O documento traz as primeiras orientações para ajudar na organização das relações entre empresas e monitores. Até então, como não existia uma orientação mais clara, acabava acontecendo certo abuso da parte dos monitores, em geral, ex-Procuradores. Indicados por seus colegas do DoJ responsáveis pelos casos, eles podiam cobrar valores absurdos das companhias, o que acabou gerando muitas reclamações. Isabel Franco lembra um caso antigo no qual Tom Fox (renomado especialista norte-americano de Compliance) trabalhou e que de tanto “abuso” do monitor, que só queria andar de primeira classe e se hospedar em hotéis de luxo, a empresa acabou desistindo do acordo.
O Memorando Monford estabeleceu dois princípios básicos para serem levados em conta pelos Procuradores na hora de avaliar a imposição de um monitor independente no acordo com a empresa. Primeiro, se tal indicação traria benefícios para a companhia e para o público; e, segundo, o custo financeiro da monitoria e o seu impacto sobre as operações da companhia. A publicação veio no mesmo
período em que se inicia um grande aumento de investigações e acordos relacionados com violações ao FCPA por grandes corporações em todo o mundo. O memorando também estabeleceu regras mais claras para o processo de seleção dos monitores, algo que foi mais detalhado em 2009, no Memorando Breuer, de autoria de Lanny A. Breuer, Assistente do Procurador-Geral e direcionado aos procuradores da divisão Criminal do DoJ.
Nos acordos fechados hoje com o governo dos Estados Unidos, que são os que na prática acabam reverberando no Brasil, a empresa que vai assinar o acordo submete uma lista com três nomes para as autoridades de lá, que podem eleger um daqueles nomes ou, até mesmo, solicitar uma segunda lista, caso nenhuma das opções seja aceita por elas.
Como é a empresa quem paga o monitor independente, ao apresentar a lista, ela já tem as referências do trabalho e uma ideia do orçamento do monitor, para não correr o risco de indicar alguém cujos valores financeiros vão tornar o processo inviável. “Nesse processo, a empresa pode até dizer por qual dos três indicados ela tem preferência”, reforça Isabel Franco, do Azevedo Sette. Como a escolha será das autoridades, não adianta a empresa indicar nomes menos experientes, pensando em “economizar”. O processo de escolha do monitor pelas autoridades é duríssimo. “Se chega um profissional sem bagagem para as autoridades, ele não passa mesmo”, conta a advogada, que já passou por esse processo de seleção. “Eles fazem uma sabatina absurda. Eles já estudaram seu currículo, sabem quem você é, mas eles vão fazer perguntas bem específicas, do tipo “o que você faria se…”. [Quando passei por esse processo] a minha entrevista foi inclusive com o pessoal da Corte de Nova York, além das outras autoridades, porque era um caso de plea bargain. Coisa brava. Se eles sentirem que você não é do ramo, eles não validam”, afirma a advogada.
Apesar disso, não existe um perfil determinado de profissional, ou mesmo escritórios mais especializados. Sim, porque apesar de ser nomeado um profissional para ser o monitor responsável pelo caso, ele trabalha com uma equipe. O que as autoridades norte- americanas querem é que o monitor seja uma pessoa altamente qualificada em Compliance. É ele quem terá a responsabilidade perante as autoridades e perante quem paga a conta, que é a empresa. Uma vez nomeado, existe uma série de regras e requisitos já descritos nos memorandos que regem o trabalho e a relação entre as partes.
Tem que conversar
Quando tem o seu nome aprovado – assim como no caso de um profissional de Compliance corporativo – o primeiro passo do monitor é conhecer a empresa e o seu negócio. “Você vai visitar as operações, entrevistar as pessoas. Recebe toda documentação que pedir, quase como se fosse um due dilligence. E você vai com a sua equipe, já, não dá para você, enquanto monitor responsável, fazer tudo sozinho”, diz Isabel.
Com base nisso, é montado um plano de trabalho com as autoridades e que depois é apresentado à empresa, com as etapas que precisam ser cumpridas e os prazos para reportar às autoridades. Depois vêm as recomendações. “Aí, você vai sentar com o monitor e ele vai falar: ‘olha, aqui você precisa melhorar’; ‘vou acabar com o Excel aqui, você vai ter que automatizar isso’, ‘aqui você vai fazer isso, aqui você vai fazer aquilo’, a sua vida na empresa fica meio caótica porque você tem que parar tudo para atender o monitor”, aponta a advogada do Azevedo Sette.
É obvio que o monitor está numa posição de poder, com mandato para ditar o que precisa ser feito. Entretanto, isso não quer dizer que a empresa precise simplesmente acatar tudo o que ele pede, especialmente quando o que é solicitado não faz sentido da perspectiva do negócio. “Seja quem for o monitor, eles são altamente especializados, com uma formação exemplar e têm realmente muito a agregar. Mas, eles não conhecem a sua realidade”, lembra Rogéria. Isso torna fundamental que do lado da empresa, esteja um Compliance Officer experiente, capaz de entender que aquela recomendação não representa a melhor alternativa e que o ponto em questão pode ser atendido de outra forma. Um Compliance Officer com pouca bagagem dificilmente teria condições de questionar (de forma respeitosa e com argumentos técnicos) uma recomendação do monitor. “Quando eles propõem alguma coisa, obviamente é uma orientação mandatória. Mas se você tiver uma razão para fazer diferente e não daquela forma que ele está sugerindo e você explicar que o seu porquê é sério e legítimo, ele escuta. Porque quem conhece o business é você e coisas que se aplicam a uma indústria, não se aplicam a outra, então há necessidade desses ajustes, sim”, reforça Rogéria.
O desconhecimento do ambiente de negócios é, aliás, um problema considerável entre os monitores na visão de quem está do lado das empresas. Na maioria das vezes ele são ex-Procuradores de justiça norte-americanos (ainda que atuando por algum escritório) ou advogados corporativos que não entendem do dia a dia de uma empresa. “Eles costumam ter uma semi-receita de bolo que acham que devem seguir. Então o nosso papel dentro das empresas é também no sentido de mostrar para eles como as coisas funcionam”, diz Marisa Peres, Chief Compliance Officer da Avon. Ela lembra uma situação na qual o monitor questionou a falta de contrato no caso de um fornecedor. Era um fornecedor de baixo risco, cujo contrato tinha vencido e não tinha sido feito um novo. “Tive que questionar qual era o risco que ele estava enxergando naquele assunto. Fornecedor de baixo risco, contrato com cláusula anticorrupção e, no Brasil, a legislação diz que se o contrato não foi rescindido ele continua valendo, então o contrato se estendeu automaticamente. ‘Que ponto é esse que você está querendo levantar?’”, lembra a executiva da empresa de cosméticos. Quando atuou na companhia francesa de engenharia Alstom, Marisa chegou logo depois do termino do monitoramento, para tocar um programa que era resultante desse processo e de toda a experiência que eles tiveram. Já na Avon, onde completou dois anos de trabalho, ela foi exatamente por causa do monitor externo que tinha na Avon, acompanhando cerca de um ano e meio da monitoria.
Embora seja importante que o Compliance Officer da empresa tenha a disposição e a coragem de buscar demonstrar ao monitor a realidade dele, nem sempre ele consegue. “Como monitora, minha ideia é sentar e ajudar a empresa. Mas nem todos são assim”, reconhece Isabel. A advogada trabalhou em alguns casos em que o monitor era irascível. Diz ela: “É difícil. Ele está numa posição de poder que se você discutir… Como é o ditado?: ‘Manda quem pode, obedece quem tem juízo’”. “É uma relação tênue. Eu, pelo menos, tenho a tendência de tentar transformar o processo numa coisa mais amigável, dentro do possível, e foi o que a gente conseguiu fazer”, conta Marisa Peres. É claro que eles estão ali para fazer o trabalho deles, que é ver como melhorar o programa de Compliance da empresa. “O que eles falam é: ‘eu tenho que certificar para o governo que está tudo ok. Se eu te certifico e amanhã você tem problemas de novo é o meu nome também que está envolvido’. Então a gente entende a pressão”, reconhece Marisa, da Avon.
Rogéria, da Comissão de Estudos de Compliance, lembra que existem casos de empresas grandes, que sob monitoramento, investiram milhões e milhões de dólares, montaram equipes com muita gente e, vencido o acordo, o programa não se sustentou no mesmo nível. “Óbvio que a gente quer terminar a monitoria e terminar com sucesso. Mas você quer que aquilo se perpetue no tempo, que aquilo transforme toda uma cultura favoravelmente”, lembra. Até porque, mesmo com o fim do monitoramento in loco, muitos acordos preveem um período posterior de auto reporte para as autoridades. Na prática, você continua sendo relembrado.
Difícil, mas salutar
Estar sob monitoramento significa que o seu trabalho à frente do Compliance da empresa estará sob escrutínio o tempo todo. “O monitor quer saber a sua postura perante todos os assuntos relacionados com o Compliance. Colocam um holofote sobre o que você faz, como você faz, seu grau de seriedade, de compromisso, ou seja, você sabe que será avaliada in loco e não vai ser fácil. Sob monitoria você tem que mostrar o seu melhor, como se fosse uma prova prolongada em que você só pode tirar A”, conta Rogéria Gieremek.
Além disso, nem o responsável pelo Compliance nem a liderança da empresa têm controle sobre a agenda de implementação das medidas. Quem determina o plano de trabalho e os prazos para implementação e apresentação de resultados é o monitor. “Todo o processo é muito bem estabelecido e planejado, com prazos muito bem definidos. Nada é criado no decorrer do processo”, reforça Olga, da Odebrecht. Com base nas primeiras rodadas de avaliações, o monitor faz as recomendações, que como recorda Marisa, são imposições com 90 dias para cumprir. Só que mesmo sob monitoria, o Compliance Officer precisa seguir com a sua agenda do dia a dia. Afinal, não se pode cobrir um santo e descobrir o outro. Isso torna o volume de trabalho abissal.
Ainda assim, com tudo isso, é preciso reconhecer que estar sob monitoramento é algo que pode ser muito positivo para a empresa, ao menos sob a ótica do Compliance. É uma oportunidade que é dada à empresa de corrigir todos os processos, tendo o aval de uma pessoa altamente especializada, que olha para cada um dos processos e diz: “aqui você pode fazer mais”; “aqui está ok”; “aqui eu gostaria de saber mais sobre este determinado processo, sobre esta determinada questão, por que você escolheu fazer isso desta ou daquela maneira”.
“A gente abraçou o monitoramento como um oxigênio para sobreviver. Os monitores que estão na empresa fizeram isso com várias empresas ao redor do mundo e têm uma vivência do que deu certo e do que não deu. Por que a gente vai ignorar esse conhecimento? Por que a gente vai ignorar essas orientações? E aí eu digo a você, eles são duros, mas eles são justos”, garante Olga Pontes, da Odebrecht.
Inegavelmente, em empresas sob monitoramento, o Compliance Officer acaba empoderado. Sob essas condições é muito mais fácil fazer com quem todos os funcionários e, especialmente, a alta administração pare para escutar e entender o que está acontecendo. O profissional ganha força para negociar. Ainda assim, não adianta o Compliance Officer achar que por conta disso, pode simplesmente chegar à direção da companhia exigindo tudo o que ele quer, para ontem. “Nunca é assim”, garante Rogéria. É preciso realizar melhorias, aprimorar os processos e, para isso, é preciso recursos além dos necessários aos processos de monitoramento independente. Que são muitos.
A conta é cara
Num ponto, a percepção das pessoas e a realidade em relação ao monitoramento convergem: é um processo caro, muito caro. O orçamento para o monitoramento é muitas vezes superior ao orçamento regular de Compliance. Nessas horas é que a frase do ex-Procurador norte-americano Paul McNulty, “Pensa que Compliance é caro? Tente não ter Compliance”, é mais verdadeira e cruelmente realista.
A área já tem o seu orçamento para tocar suas políticas, fazer as suas investigações internas, automatizar processos e dar seguimento ao programa. Com a monitoria, é preciso arrumar dinheiro extra para pagar o monitor e sua equipe, incluindo todas as despesas deles. Como em geral, esses custos estão em dólar, o número do orçamento já multiplica por quase quatro (a cotação do dólar tem girado ao redor dos R$ 3,85). Só por isso, já se parte de um nível de preço muito elevado.
Mas não é só. Além do monitor e da sua equipe, sempre existe uma empresa para fazer a auditoria forense, como uma Big 4 ou uma consultoria altamente especializada que vai fazer a auditoria dos dados, cruzar as informações e criar programas para automação de processos exigidos pelo monitor. O valor que envolve a contratação desse pessoal está bem longe de ser algo comezinho.
E tem ainda a parte das viagens, visitas para as operações da empresa e entrevistas.
“Eles vão entrevistar executivos de vários níveis, não só a alta direção e o middle management, mas também gente no chão de fábrica. Eles querem ver como que as mensagens estão sendo difundidas por toda a empresa”, conta Marisa Peres. No caso de empresas multinacionais, essa questão é ainda mais complicada. A Avon, por exemplo, está presente em mais de 70 países. Embora o caso que levou a empresa ao acordo com o DoJ tenha acontecido na China, são os monitores que definem os países que eles acreditem ser importantes visitar. “Como o Brasil é o maior mercado da Avon no mundo, os monitores vieram duas vezes para cá, como parte do processo. Mas eles foram à África e à América toda”, diz a executiva da Avon, que lembra que a cada rodada de visitas o monitor tinha uma lista de mais ou menos 35 pessoas para serem entrevistadas com base na função. “E quando saem os resultados da auditoria forense, eles acabam pedindo
para entrevistar outras pessoas”, lembra Marisa. Adicionalmente, você tem que ter tradutor nos locais, montar salas de entrevista, traduzir documentos oficiais… Tudo pago pela companhia.
Embora geralmente o processo seja muito bem organizado… Existem situações nas quais os monitores gostam de chegar de “surpresa” num determinado País. A CCO da Avon conta de ter participado de um evento com um ex-monitor. Ele disse que “gosta de chegar de surpresa no país, mas aí o povo fica bravo”. “A empresa não fica chateada porque ela quer se esconder ou maquiar coisas. É que organizar uma agenda de 35 pessoas, que sempre tem os altos executivos, montar toda a estrutura… Tudo isso demanda tempo e a gente trabalha com Compliance, com equipes que não são enormes. Se anunciam com 20 dias de antecedência que vão visitar um determinado país, só o tempo para a gente organizar essa visita… Você tem que deixar a empresa toda de sobreaviso, que os executivos têm de estar disponíveis, porque se um monitor chamar eu vou precisar dele. É uma semana que você fica à disposição”, explica Marisa.
Além disso, nem sempre os executivos que vão participar das entrevistas com o monitor estavam na empresa na época dos problemas que resultaram no acordo. É preciso dar um treinamento específico para esse pessoal, explicando a situação e como funcionam as entrevistas, como, por exemplo, que o que for falado na entrevista não é confidencial. “O brasileiro fica histérico com isso, porque não tem um advogado dele, tem um advogado da companhia dentro da sala. Então é preciso explicar muito bem do que se trata o processo”, lembra Marisa.
Mobilizar tantos executivos da empresa é um dos grandes desafios do processo de monitoramento. Mas, para Rogéria, ainda mais complicado é o processo de auditoria dos processos. “Tudo que você fala que está fazendo é preciso apresentar evidências daquilo que você disse que faz. Isso tudo é submetido a uma auditoria. Te digo que essa é a parte mais difícil”, acredita a experiente Compliance Officer.
A importância de uma “almofada”
Para dar conta de lidar com a equipe dos monitores e dos auditores forenses, as empresas costumam contratar um escritório de advocacia para auxiliá-los apenas no processo da monitoria. Além do volume de trabalho ser muito grande, o que torna a necessidade de um time de apoio fundamental, são os profissionais dos escritórios que acabam estabelecendo a linha de conversa com os monitores. “Até para não ficar muito estressante dentro da companhia. Porque na hora de questionar, de não querer acatar uma determinada recomendação, porque não faz sentido, a gente tem esse interlocutor… No set de recomendação você tenta dar uma argumentada, para isso você tem, via de regra, um escritório de advocacia trabalhando com você”, explica Marisa. Os escritórios funcionam como uma “uma almofada” para amortecer os impactos nas relações de ambos os lados.
O Brasil e a monitoria
Embora o Brasil seja palco histórico de vários processos de monitoramento por conta de acordos firmados tanto por empresas multinacionais com operações aqui como por empresas locais como Odebrecht, Braskem e Embraer, o Brasil mesmo ainda não tem o costume de trabalhar com o monitoramento independente. O modelo mais comum, é que as próprias autoridades que aplicam a sanção, como os TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) do CADE ou do Ministério Público, cuidem desse acompanhamento. Uma exceção foi o caso do acordo de leniência da Odebrecht, que além do monitor independente indicado pelo DoJ, teve um monitor independente apontado pelo Ministério Público, o advogado e ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários, Otávio Yazbek. Mas é realmente um caso raro.
No recente acordo de leniência firmado pela CGU e a companhia francesa Technip, com base na Lei Anticorrupção, a pasta irá monitorar diretamente o programa de integridade adotado pela operação brasileira da companhia durante toda vigência do acordo. (Em seu comunicado, a empresa trata esse ponto do acordo como um auto reporte).
Afinal, existe espaço para a adoção de monitores independentes nos casos de corrupção jugados e condenados pelas autoridades brasileiras? Considerando a percepção dos profissionais da área leva a crer que sim. Especialmente porque o monitor tem realmente o potencial para ajudar as empresas a implementar uma transformação cultural, com um mandado das autoridades de Estado para conduzirem esse processo, sem ocupar o tempo e os recursos humanos e financeiros dos servidores dos órgãos de controle. É verdade que para o advento funcionar a contento, seria preciso dar clareza a questões sobre a qualificação e o os processos para escolha dos monitores e quais seriam os órgãos com o poder para fazer essa indicação, evitando conflito de jurisdição. Na verdade, trata-se do mesmo problema que ainda existe hoje em relação à própria aplicação da Lei Anticorrupção: a falta de um guichê único.
Em relação aos profissionais, embora existam poucos no Brasil com vivência direta em processos de monitoramento, o País conta hoje com profissionais altamente gabaritados e experientes em número suficiente para dar conta do recado, mesmo que as autoridades passassem a exigir o monitoramento independente em todos os acordos firmados.
Adoção em questionamento
Embora o senso comum dentro da área seja a de que a adoção do monitoramento independente por parte das autoridades tenda a crescer, com o mecanismo sendo adotado por mais governos mundo afora inclusive, existem hoje, muitas discussões e sinais que podem levar justamente em sentido oposto, o da diminuição do uso de monitores independentes nos acordos de leniência.
Depois de um período de avanço que resultou inclusive na contratação de um expert em Compliance durante o governo Obama, apelidado de “Monitor Czar”, que tinha como uma das funções, acompanhar e coordenar o trabalho dos monitores, a nova gestão DoJ não reencheu essa função e está mudando a sua abordagem em relação ao tema, num movimento que pode restringir a adoção de monitores independentes.
Com a publicação do Memorando Benczkowski, assinado em outubro do ano passado pelo Procurador-Geral assistente, Brian A. Benczkowski, o DoJ passa a reconhecer que a imposição de um monitor não é necessária em muitos processos de crimes corporativos e, mesmo quando necessário, o seu escopo deve ser muito bem delimitado para endereçar aos aspectos e preocupações específicas de cada caso. Na prática, as autoridades norte-americanas estão avaliando que podem dar mais responsabilidade às próprias empresas para remediarem e fortalecerem seus mecanismos de Compliance. Os pedidos para a indicação de um monitor independente serão submetidos a um novo comitê, que inclui o Procurador-Geral Adjunto, o Chefe da Seção de Fraude e o Oficial de Ética da Divisão Criminal. Esse grupo irá analisar cada caso em que um monitor é recomendado. Ao invés de um “Monitor Czar”, o DoJ optou por recrutar advogados com experiência em Compliance e que treinaram e ajudaram os Procuradores a “identificar o que deve ser um bom programa de Compliance”.
No caso do Brasil, e mais especificamente, da CGU, a adoção também parece um tanto quanto distante neste momento. “Até o presente momento, não se vislumbra a necessidade de monitores externos”, afirma o diretor de Promoção da Integridade do órgão, Pedro Ruske Freitas. Ele explica que a CGU defende que a atividade de monitoramento dos programas de integridade de empresas que estabeleceram acordos com o órgão, representa uma atividade de Estado que deve ser desempenhada pela própria Administração Pública. Tanto que a CGU monitora diretamente todos os programas de integridade das empresas que celebraram acordos de leniência.
Como trata-se de algo ainda pouco difundido no Brasil e que os próprios acordos de leniência fechados também são poucos, é possível que a CGU consiga acompanhar a evolução (ou não) dos programas das empresas. Mas, num ambiente em que mais acordos sejam fechados – e existem mais de uma dezena em negociação até onde se sabe – e que o cenário fiscal do governo não permita uma forte expansão de quadros e orçamento, seria importante que a CGU voltasse a considerar contar com o apoio de agentes privados, altamente qualificados e regulados, para garantir que as empresas estão realmente fazendo seus programas de Compliance acontecer da maneira correta. Nesse caso, não faltariam nem braços e nem recursos.
Publicado originalmente na Revista LEC nº 26 sob o título: “Vivendo sob escrutínio”
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