Como a dona das maiores multas aplicadas pela Lava Jato pode se converter numa referência em governança e conformidade no Brasil e no exterior
O leitor, muito provavelmente, já se cansou de ler sobre os malfeitos praticados pela Odebrecht e alguns dos seus principais líderes no âmbito da Lava Jato. Se existe uma empresa que foi utilizada para servir de exemplo na operação, essa foi a Odebrecht. Os motivos que a colocaram nessa situação foram acompanhados capítulo a capítulo, especialmente entre os anos de 2014 e 2016, quase que como numa novela. Naquele momento, o conglomerado baiano – em especial o seu então presidente, Marcelo Odebrecht – muito mais do que qualquer outra empresa, partiu para uma estratégia de confronto com as autoridades, batendo de frente e negando as acusações de forma enfática. Em paralelo, nesse período, algumas iniciativas em relação à conformidade acabaram sendo adotadas de forma reativa, para tentar mostrar que a empresa tinha algo ou que estava se movimentando nessa direção. Mas nada que a levasse a admitir os erros perante os promotores e a opinião pública.
Foram necessárias muitas operações de busca e apreensão, conduções coercitivas e longas temporadas atrás das grades para que a guarda finalmente baixasse e a ficha dos dirigentes da empresa caísse. Em março de 2016, “quando o William Bonner leu no Jornal Nacional: ‘A Odebrecht decidiu colaborar com as autoridades’, com bastante ênfase, como se fosse boletim urgente, isso literalmente marcou nossa virada de página”, lembra Olga Pontes, chief compliance officer da Odebrecht S/A, a holding que controla o conglomerado.
Tendo recebido as maiores multas, feito o maior acordo de delação de que se tem notícia, visto o seu presidente ser preso e o nome da família achincalhado pela opinião pública – também nesse caso, muito mais do que outras empresas envolvidas e suas famílias – é justo dizer que a Odebrecht vem trabalhando e investindo para construir um programa de compliance e governança que pode se transformar numa das grandes referências da área no Brasil e no exterior.
Dada à gravidade da situação e os compromissos assumidos com autoridades em diferentes países e para a própria sobrevivência da companhia, o processo vem se dando de forma bastante acelerada. “A crise aproxima nossas práticas às referências mundiais. Estamos transformando a Odebrecht, muita coisa está sendo feita e em paralelo estamos sendo monitorados pelas autoridades”, conta a CCO do grupo baiano.
“Eu vou escutar muitos nãos?” Foi com essa pergunta que Olga respondeu ao convite para que assumisse o comando da nova área de Compliance da Odebrecht S/A. O questionamento não foi sem motivos. A executiva era uma veterana do grupo, no qual entrou em 2006, como chief security officer da petroquímica Braskem. Antes disso, liderou a equipe da consultoria externa que trabalhou na implementação das regras da Sarbanes-Oxley (SOx) – o regulamento que elevou os níveis de controles internos e gestão de riscos das empresas com papeis no mercado norte-americano –, na própria Braskem. Em meados de 2009, Olga foi convidada para dirigir a área de Conformidade, Riscos e Auditoria Interna da petroquímica. Como muitos outros profissionais de compliance, ainda mais 10 anos atrás, ela enxergou as oportunidades para enfrentar os gaps que existiam. Mas, ao contrário do ditado a água bateu e bateu e bateu, mas, naquele momento, a pedra não furou. “Eu realmente fazia muitas provocações na Braskem. E não era nada relacionado a fraudes ou corrupção. Eu queria elevar o nível de maturidade de auditoria, queria– como tantos outros vários CCOs – recursos! Precisava de gente e orçamento. E esse era um problema do mercado, não só da Braskem,”, comenta.
Por essa experiência prévia, a executiva quis saber como a banda tocaria antes de deixar a sua posição na petroquímica, uma empresa operacional, e migrar para a holding. Tudo o que ela sempre quis implementar na Braskem, agora seria fundamental na transformação da Odebrecht S/A e serviria de padrão a todas as empresas da holding. “Me deram a garantia de que eu estaria em posição de influenciar, definir e fazer com que a transformação pudesse acontecer de verdade”, conta a executiva, que assumiu a posição em maio de 2016.
O orçamento para a área de Conformidade da holding e de todas as empresas que a compõe somou R$ 81,43 milhões em 2018, um dos mais robustos do mercado. Esse valor engloba despesas com o dia a dia da operação e investimentos da área, excluindo os gastos com o monitoramento independente. A estrutura toda congrega 93 profissionais espalhados por sete negócios e a holding. Nesse momento, em termos de estrutura ao menos, a Odebrecht está num processo de estabilização. Mas foi um avanço e tanto, sem dúvida. Em 2015, o orçamento de compliance foi de R$ 11 milhões.
Definitivamente, o trabalho na Odebrecht foi instaurado pela dor. Mas, para conseguir promover uma transformação cultural sustentável seria preciso mostrar à liderança o porquê de cada uma das ações de conformidade ser essencial. Para profissionais da área é muito simples falar de prevenção, detecção e remediação. Assim como é obvio para um físico falar da estrutura das moléculas. É bem provável que essa última conversa não seja tão óbvia, quiçá compreensível, para o leitor. Isso sem falar que muitos dos líderes não eram de uma geração habituada com um modelo mais amadurecido de controles internos. “Eu vivi o início do processo de transformação sendo desafiada por essa arte de comunicar”, lembra Olga. Embora difícil, a missão era possível, especialmente porque as lideranças estavam realmente dispostas a ouvir e a entender. “Quando eu convenci a todos de que eu era apenas um porta-voz das melhores práticas, e traduzia aquelas melhores práticas de forma que elas fossem digeridas e inseridas no nosso ambiente, a coisa fluiu”, emenda a executiva.
Estabelecendo a base
O primeiro mapeamento de riscos realizado pela holding apontou para um problema basilar. O grupo não tinha a governança adequada para implementar as práticas desejadas de conformidade.
Ainda que fossem negócios gigantescos individualmente, em setores nos quais a Odebrecht não tinha necessariamente expertise, muitas das empresas não contavam com conselhos de administração próprios. Na prática, era como se a Odebrecht S/A atuasse como a gestora das várias empresas que controlava, com ingerência operacional mesmo. Por isso, uma das primeiras ações no processo de transformação da companhia foi estabelecer que cada uma das empresas do grupo deveria ter um conselho de administração próprio, operando com total autonomia. Mas não só. Eles deveriam contar com membros independentes. No conselho da holding, por exemplo, dos seis membros, quatro são independentes. Considerando todas as operações do grupo, 44% dos conselheiros são independentes. Para Olga, é uma mudança importantíssima. “Isso não é um requerimento de uma empresa de capital fechado, de controle familiar. Mas a nossa decisão foi no sentido de implementar práticas de empresas de capital aberto, altamente controladas pelo mercado inter- nacional”, explica.
Contratada em 2018, como CCO da Odebrecht Engenharia e Construção (OEC), a maior e mais enrolada das em- presas do grupo, Margarida de la Riva Smith ressalta um aspecto que não é muito comentado, mas que tem muita importância também nesse processo: a decisão de que a empresa deveria atuar de forma diferente, para realmente mudar a página, veio dos acionistas. “Não estava aqui e nunca conversei com eles, mas acredito que tenha sido uma decisão difícil. É um mérito deles e não podemos esquecer disso”, pontua. A CCO da OEC lembra que a adoção de conselheiros independentes em número suficiente para mostrar que o processo era para valer, aliada a saída dos acionistas da operação – um ponto sempre muito questionado em relação à transformação – foi a resposta mais eloquente que os Odebrecht poderiam ter dado ao mercado em relação à veracidade do movimento.
Além da maior independência para atuar, dentro de cada conselho foram criados Comitês de Conformidade, com conselheiros destacados para terem agendas específicas de compliance, já que muitos temas são deliberados e aprovados por esses comitês específicos, que costumam se reunir, em média, 12 vezes ao ano.
Com o modelo de governança instaurado, partiu-se para a construção do sistema de conformidade. E um dos primeiros pressupostos é que ele deveria ir muito além do que simplesmente prevenir e combater à corrupção, que foi, afinal, o problema que levou o conglomerado baiano ao chão. “Montar um sistema de conformidade que endereçasse um mapa de risco mais extenso foi um passo importante da transformação. Assim, nos fortalecemos para não incorrermos no risco de errar novamente, incluindo e não se limitando a corrupção”, lembra Olga. Outra premissa foi a de que o sistema precisaria estar aderente a todas as melhores práticas preconizadas por autoridades e entidades locais e internacionais sobre o tema, inclusive aquelas que monitoram a Odebrecht. Em julho de 2016, três meses após assumir o seu papel no escândalo da Petrobras, a Odebrecht realizou um seminário para apresentar os compromissos que a empresa e seus líderes precisariam assumir para que a companhia pudesse virar a página. “A liderança foi bastante genuína nesses compromissos”, reconhece a CCO da holding. Um deles, que está no site e é público é: “Não tolerar a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e suborno; jamais invocar condições culturais ou usuais de mercado como justificativa para ações indevidas”. “Tem gente que diz que faz porque todo mundo faz, porque todo mundo fazia e diziam: ‘quem é que não corrompe no Brasil?”, explica a executiva, que aponta esse como um dos elementos que acabava servido de racionalização para o erro. Todos os compromissos foram ditados pela própria liderança da empresa e absorvidos pelo código de conduta da companhia. A política apre- sentada no seminário foi aprovada em novembro de 2016.
Rodando a hélice
O sistema de conformidade da Odebrecht, a base para todas as políticas e instruções de compliance da empresa consiste de dez elementos principais, divididos em três grandes pilares: detecção, prevenção e remediação. Até aí, nada de verdadeiramente novo. Mas, dada à tradição de engenharia do conglomerado, ele foi desenhado de forma bastante racional. Sim. Existe um desenho, um símbolo gráfico que representa o sistema de compliance da companhia: uma hélice. Olga explica o motivo da escolha. “A hélice não tem funcionalidade se as três pás (no caso, os pilares) não funcionarem de forma efetiva. Se você tirar uma pá, ela perde sua função motora. Assim como não existe prevenção sem detecção e sem remediação”. Para a executiva, essa medida foi importante para ajudar no aculturamento das pessoas, uma vez que a forma de demonstrar se torna muito importante para que a ideia seja comprada, em especial pelas lideranças. Internamente, o símbolo é comumente tratado como uma mandala, que de acor- do com a Psicologia Junguiana, equivale a um círculo mágico que representa, simbolicamente, a luta pela unidade total do ser. O que também faz sentido dentro da mensagem que se quer passar.
Aliás, o símbolo do sistema da Odebrecht traz um quarto elemento, que representa justamente o papel da liderança da empresa para fazer o sistema rodar corretamente. A hélice não gira sozinha, é o rotor (aquele pino que vai a frente das pás, como um grande parafuso) que faz com que a hélice funcione. No caso do sistema da Odebrecht, o rotor são os líderes das empresas e não a própria área de Conformidade. Flávio Serebrinic, CCO da OR, nova denominação da operação de construção imobiliária da Odebrecht, diz que o patrocínio muito forte do CEO da operação ao tema de conformidade, faz com que as pessoas incorporem mais facilmente a nova cultura. “Eu entrei em janeiro de 2017. Em abril eu disse ao CEO que precisávamos analisar os clientes que caíssem nos nossos indicadores de risco. Ele me explicou que isso não funcionaria. ‘Vou me sentir muito mais seguro se você fizer análise de todos os clientes, independentemente do valor’, ele disse. E toda a equipe concordou”, exemplifica Flávio.
Esse patrocínio da alta administração é importante para que os integrantes não achem que conformidade é uma coisa só do conselho ou dos CCOs! Conformidade é um tema chave e uma responsabilidade de todos os funcionários do grupo. E são os líderes que têm capacidade de influenciar, liderar, de decidir as estratégias do negócio e de inspirar as equipes. A estratégia está surtindo efeito. Pesquisas realizadas pela Odebrecht Transport (OTP) em 2017 e 2018 deixam claro que mais pessoas já enxergam os líderes como uma referência para tratar de assuntos ligados a compliance, e não mais apenas a área de Conformidade. Isso fez com que a empresa investisse mais em bate-papos informais com os líderes da empresa sobre diferentes temas da área (no caso, todo mundo que tenha uma equipe embaixo de si é tratado como líder).
A Odebrecht leva tão a sério essa questão que metas de conformidade estão inseridas dentro dos PAs, os Programas de Ação, que determinam as metas e responsabilidades de cada um dos indivíduos da organização para o ano. É o cumprimento dessas metas e o quão eficazmente elas são cumpridas que alavanca a carreira e define o tamanho do bônus pelos resultados. O objetivo é que ao pulverizar a responsabilidade nas áreas de negócios, todo mundo passa a ser responsável por conformidade e a cultura passa a permear toda a organização de forma mais natural. Hoje, uma liderança na Odebrecht só consegue cumprir com o seu PA se além dos números e indicadores operacionais, alcança também as metas relacionadas à conformidade que lhe são impostas. “Eu acabo participando das reuniões de plano de ação das principais diretorias da empresa”, conta Flávio, da OR. Segundo Olga, em todos os negócios, os CCOs influenciam as lideranças de colocar metas nos resultados seus PAs, porque é uma forma de garantir que aquele resultado vai ser atingido.
Nesse modelo, não é o CCO que vai dizer que é importante o funcionário fazer um treinamento de conformidade. É o líder que tem de influenciar o seu liderado para aquela capacitação anticorrupção, de conflito de interesses, seja feita. Quando se vê que alguns profissionais ainda não fi- zeram o treinamento, a área de Conformidade vai até esse líder lembrá-lo de que na equipe dele tem três pessoas que não estão fazendo o treinamento, por exemplo. Isso vai constar na avaliação dele, porque pessoas da sua equipe não fizeram o treinamento. Por isso também, é extremamente importante que as políticas e orientações de conformidade estejam calcadas no mundo real de cada empresa, dosando muito bem entre as necessidades de controles internos, sem errar a dose e atrapalhar o fluxo do negócio. Para Felipe Cabral, CCO da Atvos, operação do grupo no agronegócio, o compliance pode ser encarado como um seguro empresarial e, por isso, nada mais justo que se adapte à realidade do negócio. “Suponha que você queira contratar um seguro de carro. A seguradora não pode querer te impor um tipo de seguro que não respeite seu dia a dia de utilização do veículo. O efeito colateral disso seria você mentir para a seguradora sobre seus atos. Isso não funciona, porque quebra a confiança entre as partes”, exemplifica. Por isso ele acredita que se as regras estiverem justas com a realidade do negócio, evita-se que as pessoas mintam ou escondam certos fatos. Mantém-se a confiança plena. A linguagem da meritocracia funciona muito bem dentro do grupo baiano. Aqui, cabe um parêntesis sobre a TEO, a Tecnologia Empresarial Odebrecht, um conjunto de princípios e regras estabelecidos décadas atrás, por Norberto Odebrecht, para dar autonomia aos seus mestres de obras nos canteiros. Embora tenha evoluído muito desde então, é um modelo que, na essência, preconiza a autonomia de trabalho de cada funcionário para atingir os seus resultados dentro desse conjunto de regras e princípios.
Quando chegou a OEC, Margarida entendeu que a construção de um ambiente de controle, com uma visão mais institucional da companhia – que é o que está sendo construído – gerou algum grau de contra ponto em relação à forma como a empresa foi construída, muito na base da confiança e do empreendedorismo. “Essa cultura tem sua beleza. É uma das fortalezas dessa empresa. Como não ferir esse que é um dos grandes valores e não deixar as pessoas amarradas, dentro de uma visão institucional, padronizada, que te leva a pensar mais no todo e não só no seu pro- jeto?”, questiona a executiva da empreiteira. “Meu desafio não foi convencer as pessoas de que elas tinham de observar o compliance. Meu desafio foi convencê-las de que o compliance não ia tirar essa competitividade delas, mas trazer mais segu- rança empresarial para que eles pudessem se manter competitivos”, emenda.
Dentro dessa cultura, não existe inibi- ção de metas na Odebrecht. Se um execu- tivo quer, por maior que seja a dificuldade no mercado, colocar uma meta que possa não parecer exequível, não existe impe- dimento. Seguindo a tradição da casa, as lideranças são agentes do seu próprio destino e cada executivo é como se fosse presidente do seu negócio. Mas cada meta apontada no PA precisa vir acompanhada da filosofia. É o campo destinado ao pro- fissional para ele demonstrar como preten- de atingir a meta. “A remuneração variável dos integrantes é atrelada ao tamanho do desafio proposto, pactuado e realizado. O sistema de conformidade implementado cria o ambiente de controle que propicia que os resultados sejam alcançados ao fa- zer o que é certo.”, garante Olga Pontes.
Para todas e para cada uma
Uma vez aprovado pela Odebrecht S/A, em novembro de 2016, o sistema foi cascateado automaticamente para as empresas do grupo. Dois meses depois, ele já estava aprovado dentro dos negócios. Foi um trabalho de choque, atípico em qualquer empresa que não esteja passando pela crise que a Odebrecht vive.
Com as bases de governança e do sistema de conformidade estabelecidos, coube ao CCO de cada empresa colocar de pé, em cada um dos negócios o sistema e estabelecer as políticas e instruções – as regras práticas de aplicação das diretrizes– para cada negócio. Assim como os executivos, eles também são presidentes de si mesmos e assumem a responsabilidade pelo sistema, mas não são eles o centro da estratégia. A orientação da holding é que ele implemente isso tendo o líder da empresa no centro da estratégia. “O perfil de líderes de conformidade que nós contratamos tem esse viés, eles não são estrelas de si próprios e são todos muito engajados num propósito onde a conformidade é de todos, e não deles”, diz Olga.
No modelo de governança, os CCOs se reportam diretamente ao conselho de administração de cada empresa, embora estejam, obviamente, sempre alinhados com a estratégia de cada negócio. Cabe a eles direcionar o sistema de conformidade com as prioridades e as necessidades para atender a realidade do seu negócio. O sistema buscou entender os diferentes ambientes de negócio, permitindo estabelecer um piso que atenda a todos sem interferir negativamente no negócio. Foi um desafio, mas que parece mais complexo do que de fato é, segundo a CCO da holding. O mais diferente mesmo diz respeito a aspectos regulatórios de cada setor, por exemplo, o que já é uma par- ticularidade de cada negócio. E esse é o desafio de cada um dos CCOs.
São muitas as diferenças entre as operações, o que acaba fazendo com que os desafios e os focos de cada um tam- bém mudem. Pegue o caso da Atvos. Sua operação está distribuída em mais 500 mil hectares de terras, seus 11 mil integrantes possuem níveis de maturidade diferentes, incluindo milhares que atuam na lavoura. Combinar linguagem certa de comunicação e logística para garantir essa capacitação é um grande desafio. “Não controlamos ninguém. Capacitamos todos os integrantes para que eles atuem de forma correta. Neste sentido, costumo dizer que temos aproximadamente 11 mil profissionais de compliance na Atvos”, acredita Felipe.
Na outra ponta, o negócio da OR tem como cliente qualquer um que queira e possa comprar um apartamento. Nesse caso, o risco de os seus imóveis serem utilizados para fins de lavagem de dinheiro, fez com que a construtora desse muito mais ênfase a esse risco. “Esse é um dos maiores exemplos de um tópico que nós demos um enfoque diferente e que reforçamos em relação às políticas das outras empresas do grupo”, pontua Flávio. Isso fez com que na OR, além do programa de “conheça seu fornecedor”, um elemento fundamental em todas as operações de conformidade da Odebrecht, fosse implementado um programa de “conheça seu cliente”. Hoje, toda a venda, independentemente do valor, passa por uma análise de conformidade. “É um processo bem interessante, porque, ao mesmo tempo em que precisa ser rápido e eficiente – porque eu não posso perder uma venda por uma ineficiência na minha área –, eu preciso dar segurança para a empresa que nós estamos negociando com alguém que não irá lavar dinheiro usando a nossa operação”, explica o CCO da construtora imobiliária.
A peculiaridade da composição da empresa e dos seus negócios faz com que a Odebrecht Transport acabe funcionan- do, ela mesmo, como uma espécie de holding de diferentes operações nas áreas de Logística, Concessões de Rodovia e de Mobilidade Urbana. Entre os negócios da empresa estão o VLT Carioca, a Rota do Oeste (com 850 km de extensão no estado do Mato Grosso) e a Agrovia do Nordeste. São três esferas de governança para lidar: a da holding, sua controladora; da própria OTP – que além de tudo tem como sócios o FI-FGTS e o BNDES- PAR; e a dos ativos que ela controla diretamente ou nos quais é sócia. Fazer com que todos esses ativos estejam uniformes e no mesmo passo em relação ao compliance é um dos grandes desafios de Josimá Guimarães, CCO da empresa. Por conta desses ativos, o executivo tem assento em nove comitês de ética. Em 2018 foram 51 reuniões. Obviamente, nas empresas controladas pela própria OTP é muito mais rápido fazer a implementação. Já nas operações com sócios, é preciso influenciar e negociar com todos eles de acordo com as prioridades da área de Conformidade daquele ativo. Isso torna os processos naturalmente mais lentos.
Uma prioridade em todos os ativos da OTP – e também em todas as empresas da Odebrecht – diz respeito a questão dos terceiros. Josimá explica que foi estabelecido um grupo de trabalho com profissionais das áreas de Suprimentos, Jurídico e Conformidade que fez todo o mapeamento dos processos e estabeleceu as bases para o cadastro de fornecedores. O primeiro passo foi limpar a base de cadastro. De um total de 25 mil fornecedores cadastrados, alguns que não eram utiliza- dos há anos, o número baixou para cerca de três mil nomes. Os remanescentes entraram nesse programa de terceiros. (Na OEC, a base baixou de um milhão de cadastros para 18 mil). Por meio de questionários esses fornecedores são classificados em diferentes níveis de risco e a depender da classificação, respondem a questionários adicionais. “Depois ainda fazemos a análise do fornecedor e dos seus sócios em listas de reputação e mídias negativas que vem a complementar esses questionários. Após esse processo, fazemos uma análise jurídica e de conformidade que gera um relatório com recomendações sobre o risco ou a conveniência de trabalhar com aquele parceiro”, explica Josimá, para quem agora, o processo já está incorporado na rotina das operações. “Nenhum fornecedor, em nenhum ativo é contratado antes dessa análise. E tem várias travas no decorrer desse processo. Os guardiões estão funcionando”, comemora o CCO da OTP, que recebe, de 15 em 15 dias, um relatório para monitorar a situação dos terceiros nos ativos.
Time de alto nível
O grupo Odebrecht conta hoje com um time de CCOs reconhecidamente de alto nível. Três deles foram eleitos entre os 20 mais admirados líderes de compliance do Brasil, de acordo com a pesquisa Compliance On Top 2018, realizada pela LEC e pela Vittore Partners. Para recrutar executivos com os perfis adequados para as posições, a holding contratou uma consultoria especializada. Olga, que participou do processo de seleção de todos eles, tentou buscar não apenas advogados para as posições. “Buscamos profissionais que tivessem mais familiaridade com processos financeiros, de organização, recursos humanos, comerciais, tecnológicos e que não ficassem só no universo das leis, porque a nossa conformidade foi elaborada para além dos riscos jurídicos, para garantir que a empresa vai fazer o que é certo, da forma certa, no tempo certo, independentemente de aquilo ter uma regra legal que exija da empresa”, explica Olga. Isso explica o porquê de a maioria dos CCOs do grupo ter um bom background de auditoria interna e riscos, o que os ajuda a dar forma aos controles internos e a destrinchar o processo, lançando um olhar diferente sobre eles. “Para rodar essa mandala você precisa de conhecimento prévio de auditoria, de conhecimento de riscos, então ter essa bagagem ajuda muito”, pontua Josimá.
O CCO da OTP fez carreira nas áreas de Auditoria e Controles Internos em firmas de auditoria e empresas industriais. Ele chegou ao grupo em 2012, para atuar como controller na própria OTP, até que em 2017, foi convidado para o novo desa- fio. “Ex-auditor nunca deixa de ser auditor. Então era uma oportunidade muito boa para colocar meus conhecimentos em prática. Fiquei muito feliz de ser convida- do para assumir a área nesse momento, capitalizar isso no momento certo, no lugar certo”, comemora.
Outro CCO recrutado dentro de empresas do grupo foi Felipe Cabral, da Atvos. O executivo fez carreira na área financeira, mais precisamente nas áreas de Riscos, Controles Internos, Processos e Controladoria. Entre 2007 e 2016, Felipe atuou como gerente financeiro e chief financial officer em várias operações da Odebrecht, incluindo em Angola e na Colômbia. Em janeiro de 2017 ele assumiu a Conformidade da Atvos. Além disso, ele destaca o Mestrado em Economia, na qual o tema Economia Comportamental possui relevância no currículo. “A área de Compliance é basicamente a soma destas competências, isto é, foco em identificação de riscos, implantação de controles e melhoria de processos, tendo como premissa básica o entendimento do negócio e das pessoas que fazem parte. Sabia que seria um desafio, mas também uma grande possibilidade de crescimento profissional”, reforça o CCO da Atvos. Felipe acredita que a vivência na área financeira lhe propicia uma visão mais estratégica da empresa. “Fica mais fácil me colocar na posição do outro e avaliar como eu agiria se recebesse uma orientação específica do Compliance. Com base nesta percepção e em avaliações de riscos, é possível definir regras e processos que não sejam percebidos como ineficientes e burocráticos”, reforça.
Se quem estava na casa, já conhecendo o ambiente interno da empresa, aceitou a missão sem muito receio, quem veio de fora precisou de mais tempo para ser convencido. “Eu tive muitas dúvidas! No primeiro momento eu não queria nem vir fazer a entrevista”, lembra Flávio. Foi a esposa do executivo que insistiu muito para que ele escutasse a proposta do grupo. A preocupação do CCO da OR era entender se, de fato, as pessoas estavam querendo promover uma mudança, ou se era algo superficial. Com quase duas décadas de atuação na área, Flávio estava à frente do Compliance da Hypermarcas (atual Hypera Pharma), um dos maiores laboratórios farmacêuticos do País desde 2013. “Fui entrevistado e entrevistei muitas pessoas aqui, falei com conselheiros, presidentes de empresas, executivos e senti que a necessidade de mudança era verdadeira. E que tinham pessoas que estavam determinadas a promover a mudança. Tudo isso me fez sair de uma situação na qual eu estava em dúvida se fazia a entre- vista, para outra na qual eu queria demais encarar esse desafio”, conta.
Na OEC, de imediato quem tomou conta da área foi o executivo Mike Monroe, um ex-CCO da Dow Chemical. Mas ele foi chamado num esquema de “tratamento de choque”, com um mandado bem determinado, tanto que não foi contratado como integrante da empresa. Mas a companhia precisava dele também para segurar a onda enquanto o grupo buscava algum nome bastante forte para assumir a operação. Para assumir em definitivo a área de Conformidade da empreiteira da Odebrecht, o grupo buscava alguém com muita experiência e capacidade especial para fazer uma evolução dentro dos controles financeiros da OEC, que ficavam espalhados pelas mais de duas dezenas de países nos quais operava grandes obras de engenharia, em grande parte, contratadas pelo Poder Público.
O processo de contratação de Margarida para assumir a Conformidade da OEC foi equivalente ao tempo de uma gestação. A executiva, dona de uma sólida carreira na área de Compliance, com duas décadas de atuação em instituições financeiras, reconhece que qualquer profissional que queira deixar suas marcas no mercado abraçaria esse case, não sem pensar, mas abraçaria. No total, entre o convite e o aceite foram nove meses de conversas e negociações. Ela conhecia a companhia pela perspectiva de quem estava numa instituição que prestava serviço para a companhia. “Eu sabia da qualidade dos profissionais, da qualidade da engenharia, isso era claro para mim”, pontua. O que consumiu mais tempo nesse processo de convencimento foi a executiva dissipar um pouco a percepção que ela teve do comportamento da companhia em 2015. A leitura de quem via aquilo de fora era a de que a companhia não queria admitir os seus erros. “Ficava pensando: será que não caiu a ficha de que o mundo mudou? Ou eles achavam que o mundo era ajustável? Ou era uma situação tão inusitada que ninguém sabia como lidar com aquilo? Hoje, estando aqui dentro, acredito que tenha sido muito mais um comportamento assustado de reagir àquela situação”, diz a CCO da OEC. Olga lembra que 2015, realmente, foi um ano de muita negação e confronto, mas também, de muita reflexão e discussões para chegar à decisão de admitir os malfeitos no início de 2016.
Quando chegou, Margarida encontrou um programa bem estabelecido, especialmente no que diz respeito à política anticorrupção, que era o grande problema que havia derrubado a operação. Ela destaca inclusive o nível de automação dos processos, segundo ela, superior a muitas operações de conformidade de instituições financeiras, um mercado altamente regulado. “O que eu busquei trazer foi uma visão mais moderna do mercado financeiro, baseada num regramento que o regulador norte-americano soltou em 2014, e tem a ver em como garantir que aqueles que têm obrigação de zelar pela companhia, estão suficientemente informados em termos de granularidade e qualidade da informação para que eles possam reagir”, explica Margaria. Isso tornou necessária a criação de um arcabouço para que os gatekeepers num nível mais sênior tivessem as informações necessárias. “É uma visão de transparência e formalização, não só no sentido de deixar uma trilha de tudo o que você faz, mas no sentido de disponibilizar a informação adequada a quem tem a responsabilidade de zelar pela companhia. Essa é uma contribuição da minha experiência no mercado financeiro – que aprendeu com suas próprias crises, que são de outra natureza –, mas nos trouxeram para o mesmo lugar. No final do dia, tudo tem a ver com a natureza humana”, acredita a CCO da OEC.
Além disso, Margarida viu no desafio de assumir a posição uma visão de dever cidadão. “Conversando com diversos profissionais da empresa, me dei conta realmente da seriedade deles, do desejo de resgatar a reputação da companhia, os testemunhos de como essa empresa cuida dos seus funcionários, zela por eles no sentido de desenvolvimento profissional e humano. Comecei a perceber que o que essa empresa tinha de bom era muito robusto. E havia o desejo de transformação. Não estavam em busca de um profissional com reputação para exibir ao mercado. Isso me deu um conforto para deixar uma carreira consolidada na área financeira e vir para cá”, explica a executiva.
Compartilhando experiências
Embora tenha deixado de influenciar os negócios no âmbito operacional, a holding manteve uma ascendência nos temas de conformidade que precisam ser permeados para todo o grupo, inclusive as recomendações dos monitores externos que observam a companhia. O grupo conta com um Comitê Integrado de Conformidade, instância que congrega todos os CCOs e se reúne mensalmente. Essa é uma das formas pela qual a holding acompanha e influencia (e apoia, quando é o caso) o trabalho dos CCOs do grupo. “Trocamos experiências e conhecimento para coerência e sinergia de posicionamento interno e externo sobre os diversos temas de conformidade. Discutimos os aprimoramentos necessários nas orientações e nas nossas práticas. São sete compliance officers trabalhando juntos, há várias mãos”, diz Olga.
Também existem iniciativas que são trabalhadas de forma combinada. Processos ou políticas nos quais um CCO lidera o desenvolvimento da iniciativa, a compartilha com todo o grupo, que revisa e aprova. Depois disso, essa nova política explode para cada um dos negócios, o que ajuda a tornar o processo de transformação mais rápido.
Outra vantagem dessa integração é que, muitas vezes, um CCO traz um dilema, uma situação para dentro do grupo e podem contar com a colaboração dos colegas que podem já ter lidado com uma situação parecida, ou podem agregar outros pontos de vista à resolução do problema. “Eu posso ligar para o Josimá e perguntar como ele determina os níveis de criticidade dentro da diretriz de due dilligence de fornecedores, ou falar com o Felipe sobre como ele deu o treinamento de conflito de interesses. Existe essa troca constante de experiência com os outros CCOs”, reforça Flávio.
Mantendo o alto nível
Passados três anos desde que a Odebrecht admitiu que errou, a governança da área de Conformidade do grupo – os Conselhos para cada empresa, os Comitês de Conformidade dos Conselhos, os Comitês Integrados de Conformidade, e os próprios CCOs se reportando ao conselho de cada negócio – está em voo de cruzeiro. Mas o grupo vive um processo evolutivo. E o sistema de conformidade precisa ser um organismo vivo para acompanhar a própria evolução dos negócios do grupo e dos mercados e ambientes nos quais estão inseridos. Na OTP, por exemplo, em 2018, foram estabelecidas quatro novas políticas e outras quatro foram revisadas para cobrir novos gaps e eliminar excessos. Tudo isso precisa ser acompanhado pela comunicação e pela capacitação das pessoas em relação a esse novo conjunto de regras. Já a Atvos avançou muito no processo de identificação e mapeamento dos riscos, que resultou na nova matriz de riscos da operação. Com ela pronta, o foco será o desenvolvimento de uma gestão baseada em riscos, monitoramento contínuo e utilização de data analytics. “Aproveitaremos a recente implantação do SAP para utilizar tecnologia de ponta no monitoramento contínuo destes riscos”, conta Felipe Cabral.
“Uma das minhas responsabilidades perante o conselho de administração da Odebrecht S/A é a de garantir que o amadurecimento da conformidade é crescente em todas as empresas do grupo”, afirma Olga. A executiva acompanha uma série de indicadores de conformidade, estabelecidos dentro do Comitê Integrado de Conformidade do grupo, que cada negócio precisa, mensalmente, reportar. Esses indicadores, que agora estão automatizados, ajudam a holding a manter todo mundo para frente, mostrando a cada negócio onde eles precisam acelerar, para que todos estejam num patamar adequado de amadurecimento contínuo e evolutivo de conformidade.
Manter tudo o que foi construído até aqui, vivo e eficaz, é o maior desafio pessoal da CCO da Odebrecht, já que os desafios também mudam a cada dia. Um desses novos desafios diz respeito à diversidade nos quadros da empresa. Assim como instituiu dentro dos seus conselhos Comitês de Conformidade, a holding estabeleceu mais dois outros comitês: o de Finanças e Investimentos e o de Cultura, Pessoas e Sustentabilidade. “A empresa, para estar conforme, tem que focar também em assuntos relacionados à cultura, pessoas, sustentabilidade, além da questão financeira. Agora, não basta só ser independente, é preciso ser independente e trazer diversidade para o conselho. Diversidade de conhecimentos, experiências, aspectos culturais, nacionalidade, faixa etária… “É preciso ter diversidade de vivência e de visão, o que corrobora o processo transformacional”, reforça Olga. Também foram estabelecidos limites de idade, de 75 anos, e de mandato para os conselheiros.
Para não esquecer jamais
A reconciliação com o passado é um elemento fundamental da transformação da Odebrecht. E isso vai além de auditar o passado. Nesse processo, ao encontrar situações adversas ou ilícitas, a empresa senta com as autoridades daquele país onde aqueles atos ilícitos foram praticados para prestar contas e discutir o que a companhia precisa fazer. O processo está quase na fase final de conclusão. Faltam poucos países para fechar essa reconciliação. Os acordos que estão sendo fechados pelo grupo, na maioria dos casos, via holding, são negociados pela área jurídica da Odebrecht, e não pela área de Conformidade, que participa do processo junto com o Jurídico especificamente quando é preciso tratar dos compromissos de conformidade que a companhia vai assumir.
Um aspecto importante no trabalho que vem sendo desenvolvido pela Odebrecht é que a empresa parece assumir um senso de “remembrance”, de não esquecimento em relação aos atos praticados. Não se trata só de virar a página, mas de guardar sempre o exemplo. E uma boa forma de fazer isso é não deixar que a presente a as futuras gerações se esqueçam do que custaram às pessoas e à empresa os malfeitos praticados. Para isso, é preciso conviver, e não esquecer, o que aconteceu. “É algo que vamos carregar a vida toda! A Siemens já está transformada, e ela ainda é citada, lembrada, por algo que aconteceu há mais de uma década. Acho que seremos lembrados também, da mesma forma”, acredita Olga Pontes. “Ninguém ignora tudo o que de ruim aconteceu aqui. Mas, o lado bom de tudo o que de ruim aconteceu, é que ela também é a companhia que tem mais ferramental para contribuir com essa transformação. Essa contribuição é algo que na história vai ser reconhecida, que alguns pontualmente reconhecem hoje, vai ser valorada”, acredita Margarida, da OEC. “Nós estamos trabalhando, não para sermos exemplo de conformidade, mas a nossa meta, é para que num futuro, seja ele próximo ou mediano, possamos ser reconhecidos como uma empresa que atua de forma ética, íntegra e transparente”, conclui a CCO da Odebrecht S/A.
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