No último artigo Digitalização do Mundo — Web 1.0, 2.0 e 3.0, eu falei sobre as diferenças entre os conceitos de Web 1.0/2.0 e 3.0 e ressaltei a principal característica da Web 3.0 em relação às suas versões anteriores: a descentralização. A descentralização torna a internet mais democrática, com maior privacidade, mais liberdade de acessibilidade, segurança e controle de dados.
Isso é o que a maioria deseja e espera dessa mudança. A nova era da internet promete que as relações aconteçam sem intermediários. Porém, para que toda e qualquer evolução e desenvolvimento tecnológico aconteça é necessário que esta participação ocorra de uma forma consensual e esta organização no conceito da Web 3.0 se dá através de uma organização autônoma descentralizada, popularmente conhecida como DAO.
A primeira experiência que se conhece de uma DAO remete ao Bitcoin, que foi escrito em um conjunto de regras pré-programadas, as quais são executadas automaticamente, uma vez preenchidos os seus requisitos, sendo permitido a todos os participantes da rede auditar as regras a qualquer tempo, além de sugerir alterações, observadas as regras de consenso pré-definidas no sistema. A sua arquitetura se mostra como o primeiro experimento viável de uma organização descentralizada, de forma autônoma, não havendo um único grupo de pessoas responsáveis pelo seu funcionamento, ficando a gestão da rede a cargo de todos os seus participantes, sem divisões hierárquicas.
A ideia de uma DAO é criar uma governança e possibilitar a participação direta dos detentores de tokens em todas as decisões da organização, inclusive permitindo sugerir questões para serem levadas para votação. Recentemente vimos o emblemático caso da Luna Foundation*, que após o colapso de sua stablecoin algorítmica UST, colocou em votação na DAO um fork* para a criação de uma nova blockchain e uma nova criptomoeda. Fato é que dificilmente uma decisão unilateral de tamanho impacto como esta poderia ganhar alguma tração sem o mecanismo de consenso.
O fato de a propriedade dos tokens possibilitar tomar e/ou aprovar uma decisão na DAO, no entanto, pode ser também um problema. Caso um indivíduo controle um grande volume de tokens, ele pode ter um poder de voto maior do um determinado grupo dentro da organização, voltando a centralização de poder.
Para evitar que isso aconteça, é ideal que a DAO possua um whitepaper (documento que define algumas diretrizes iniciais gerais, algo como um estatuto prévio), deixando claro como limita o controle de um único indivíduo. Por exemplo, a Ethereum Name Service (ENS), uma DAO que controla o registro de domínios Web 3.0, menciona em seu documento constitutivo que 25% dos tokens estejam no controle da equipe de colaboradores, 25% foi distribuído para usuários e 50% (sendo 10% liberado no lançamento e 40% após 4 anos) são direcionados para a venda.
Obstáculos jurídicos e regulatórios
A criação das DAOs são fundamentais para o processo de desenvolvimento da Web 3.0, porém a sua implementação, do ponto de vista jurídico/regulatório, não é tão simples quanto a ótica tecnológica. O nosso ordenamento jurídico e instituições privadas e públicas não estão preparadas para acatar e validar decisões de um ente sem a chamada personalidade jurídica, endereço fiscal e sócios administradores. Abrir uma conta bancária ou contratar funcionários, por exemplo, podem ser situações bastante desafiadoras.
A primeira jurisdição a aprovar uma legislação específica referente às DAO´s, em 2021, foi o Estado do Wyoming nos Estados Unidos. De acordo com o texto legal, as DAOs podem ser registradas junto aos órgãos do governo de Wyoming, sendo equiparadas às sociedades limitadas LLC (Limited Liability Company), com a designação de LAO (Limited Liability Autonomous Organization). A Securities and Exchange Commission – órgão equivalente à CVM nos Estados Unidos, entretanto, não reconheceu a emissão de tokens pelas DAOs constituídas sob esta legislação, devendo o assunto ainda ser discutido com maior profundidade.
No Brasil, assim como na maioria dos demais países, as DAOs não possuem um reconhecimento legal, de forma que a sua implementação não será reconhecida como uma organização legalmente válida, considerando a legislação vigente. Além disso, levando em conta o atual ordenamento jurídico brasileiro, seria necessário enfrentar a questão da responsabilidade quanto aos negócios e atividades desempenhadas por uma DAO, uma vez que inexiste uma figura central de controle.
Uma outra questão a ser discutida é a emissão de tokens pela DAO. A rigor, os tokens emitidos por uma DAO, que conferem ao seu detentor poder de voto nas deliberações e direito de participação nos eventuais resultados dos negócios desenvolvidos, independente da forma em que tais resultados são distribuídos — seja na forma de tokens ou de moeda fiduciária —, podem ser caracterizados como valores mobiliários, na forma do artigo 2º da Lei nº 6.385/76*. Existem inúmeras discussões e propostas para disciplinar a matéria, porém ainda sem um calendário específico.
Apesar do enorme potencial das DAOs, ainda existe um grande caminho a ser percorrido para que exista uma adoção em massa do modelo de DAO. O que esperamos ver é um incremento do acesso de pessoas comuns aos seus investimentos com acesso a uma bancarização ampla e novas formas de geração de renda e oportunidades. As DAOs podem significar uma mudança radical na forma de interação entre as pessoas e os seus negócios. Aguardemos os próximos capítulos.
*https://portaldobitcoin.uol.com.br/criptomoeda-luna-deve-ganhar-nova-versao-veja-o-que-muda-para-os-investidores/
*Fork, ou bifurcação de rede, é uma mudança no software de uma criptomoeda. Ele cria duas versões diferentes de sua blockchain, e acontece tanto quando há discordância sobre alguma regra no protocolo, ou quando há um consenso sobre uma pequena atualização que precisa ser feita.
*Nos termos do artigo 2º, IX, da Lei 6.385/76, são considerados valores mobiliários contratos ou instrumentos (como tokens) de investimento coletivo, que gerem direito de remuneração, participação ou parceria, cujos rendimentos advenham do esforço de um terceiro que não o próprio investidor e sejam ofertados publicamente. A principal consequência da oferta de um token dessa natureza ao público é a necessidade do seu registro ou dispensa pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
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