Todos sabem desde os bancos universitários que o espírito do legislador deve nortear a atividade do intérprete na delimitação do verdadeiro sentido e amplitude do texto normativo, atividade essa fundamental para alcançar-se a almejada estabilidade e segurança jurídica na aplicação da norma, em especial àquelas de caráter sancionatório e punitivo.
Contudo, tem-se visto na prática que, ao invés de lançarem luz sobre o real âmbito de incidência da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que é e sempre foi o combate aos atos que envolvem corrupção de agentes públicos, os órgãos de controle têm conferido uma interpretação elástica à lei, criando com isso um tensionamento hermenêutico que acaba por romper indevidamente com sua origem legislativa criadora.
Com efeito, notícias recentes dão conta que uma empresa brasileira foi condenada pela Controladoria-Geral da União com fundamento no artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção porque teria supostamente imposto óbice à fiscalização de autarquia federal mediante omissão de informações e apresentação de documento ideologicamente falso. Relevante notar que houve reconhecimento de que o caso não versava nem envolvera ato de corrupção em face de agente público, mas, ainda assim, resolveu-se pela aplicação (equivocada) da lei ao caso concreto, sob o argumento de que ela açambarcaria atos outros, sempre que dificultassem atividades de fiscalização e investigação de órgãos, entidades e agentes públicos.
Encampada essa interpretação, estar-se-ia admitindo, por conseguinte, que condutas que viessem a embaraçar a fiscalização minerária, ambiental, tributária ou trabalhista, por exemplo, restariam subsumidas aos atos lesivos tipificados na Lei Anticorrupção, o que, por evidente, não encontra mínima ressonância na sua gênese.
De fato, recorrendo-se ao método de interpretação histórica, que essencialmente consiste em resgatar os antecedentes e as motivações que ensejaram a introdução da norma pelo legislador no ordenamento jurídico para assim estabelecer-lhe o sentido e o alcance, verifica-se que a Lei Anticorrupção nasce precisamente do objetivo de atender a antigos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil quando da ratificação da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
E fora justamente com vistas a dar concretude a compromisso previsto nessa Convenção, que recomendava aos países signatários a introdução em seu ordenamento jurídico de medidas que responsabilizassem pessoas jurídicas pela corrupção de funcionário público estrangeiro, que foi elaborado e apresentado anteprojeto de lei voltado a disciplinar no Brasil a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração pública nacional e estrangeira.
Nos termos da exposição de motivos apresentada pelos autores do anteprojeto, dentre os quais o então Ministro Chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage Sobrinho, seu propósito era claramente “suprir uma lacuna existente no ordenamento jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos”.
A proposta, convertida no Projeto de Lei nº 6.826/2010, recebeu parecer do Deputado Federal Carlos Zarattini no âmbito de Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que igualmente registrou ser seu propósito introduzir norma específica – até então ausente – voltada à responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas “pelos atos de corrupção descritos nos acordos internacionais, posto que os atos de corrupção ativa e passiva estabelecidos como crime em nosso direito penal têm o poder de atingir apenas as pessoas naturais”.
Essa vinculação entre a finalidade de combater atos de corrupção e as disposições do projeto de lei também pode ser extraída das justificativas apresentadas pelo relator para suprimir inciso do rol de atos lesivos original que tipificava a conduta de “deixar de pagar encargos trabalhistas ou previdenciários, decorrentes da execução de contrato celebrado com a administração pública”. Segundo o parlamentar relator, a supressão justificava-se porque tratava o inciso de “matéria que não se enquadra nos objetivos do projeto de lei, posto que visa punir empresas por sonegação fiscal, e não pela prática de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira caracterizada por corrupção, ou mais especificamente suborno”.
Portanto, o espírito do legislador ao conceber os contornos da Lei Anticorrupção intencionava criar novo mecanismo de combate à corrupção de agentes públicos por meio da responsabilização objetiva das pessoas jurídicas infratoras. Tentar legitimar o intérprete, por meio de uma exegese ampliativa, escopo maior, que inclua condutas outras, distintas das de dificultar atividade de fiscalização ou investigação que tenham por objeto um ato de corrupção ou que busquem embaraçá-las por meio da corrupção, é violar frontalmente a razão criadora da lei. E corre-se, com isso, o risco de punir de forma desvirtuada, a transmudar o espírito do legislador em assombração.
David Rechulski
Ricardo Küpper Pagés