Em agosto de 2013, foi publicada a Lei Anticorrupção Brasileira (LAC). Dentre as suas inovações, destaca-se a incorporação no ordenamento jurídico brasileiro de um rol de pesadas sanções aplicáveis às empresas envolvidas em atos de corrupção. Como consequência, surge a necessidade de se analisar o mecanismo de aplicação destas sanções, considerando a importância em se observar, nesta etapa, os princípios gerais de direito, mais precisamente a razoabilidade, de modo que se cumpra e respeite os reais e mais nobres objetivos da LAC.
Razoabilidade x Proporcionalidade
A doutrina e jurisprudência brasileiras, ao tratarem da dosagem das sanções aplicadas pelas autoridades, muito se referem à necessidade de se observar o “princípio da proporcionalidade” e o “princípio da razoabilidade” indistintamente, como se sinônimos fossem. É inegável a ambiguidade das expressões “razoabilidade” e “proporcionalidade”, mas não nos permitimos incorrer nesta confusão terminológica e desprezar a necessidade de um maior rigor no uso da linguagem, especialmente quando estamos diante da análise da fundamentação de uma decisão proferida pelas autoridades coatoras.
Por esta razão, doravante adotaremos o termo razoabilidade[1], por entendermos ser o mais adequado para se referir ao dever do poder público de observar, quando da mensuração das multas e demais sanções aplicáveis às empresas pela prática de atos de corrupção, uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona[2].
A aplicação da LAC em seus pouco mais de 4 anos de existência: Breves considerações
A LAC é recente e, por esta razão, ainda não é vasta a jurisprudência encontrada sobre condenações de empresas pela infração aos seus dispositivos. Adicionalmente, por conter disposições sancionatórias, os atos de corrupção praticados pelas pessoas jurídicas antes da sua vigência não podem ser objeto de repressão pela LAC (em respeito ao princípio constitucional de que o infrator somente pode ser responsabilizado por atos que, à época em que foram praticados, já seriam, expressamente, proibidos por lei), o que restringe sua aplicação ao longo destes pouco mais de 4 anos de existência.
Na esfera administrativa federal, a LAC determina que a Controladoria-Geral da União tem competência concorrente para instaurar e julgar o Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) e competência exclusiva para avocar os processos instaurados para examinar sua regularidade, corrigi-los ou mesmo para aplicar a penalidade administrativa cabível, bem como para apurar e julgar atos praticados contra a administração pública estrangeira. Segundo dados recentes da Controladoria-Geral da União, somente na esfera administrativa federal foram identificados mais de 180 PARs instaurados para investigar atos relacionados à corrupção praticados por empresas. Como resultado das apurações, o governo federal aplicou cerca de 30 penalidades, das quais mais de 20 foram multas sobre o faturamento bruto anual da pessoa jurídica, que totalizam mais de R$ 12 milhões.
Com o objetivo de reunir e dar publicidade às sanções aplicadas com base na LAC pelos órgãos ou entidades dos poderes executivo, legislativo e judiciário de todas as esferas de governo, a própria LAC criou o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Trata-se, portanto, de um banco de informações mantido pela Controladoria-Geral da União que contem os detalhes sobre as sanções aplicadas às empresas por atos de corrupção, bem como informações referentes a eventual descumprimento de acordo de leniência celebrado com fundamento na LAC.
Da análise das informações disponíveis no CNEP, verificamos que 20 empresas constam atualmente neste cadastro, das quais todas sofreram a sanção de multa e 5 foram penalizadas também com a publicação extraordinária da decisão condenatória, com fundamento na LAC.
Com relação aos acordos de leniência, alguns já foram celebrados no âmbito específico da LAC e diversos outros estão em negociação. No entanto, o conteúdo de muitos destes acordos ainda permanece em sigilo mesmo após sua assinatura, com o objetivo de salvaguardar as investigações ainda em curso.
Dos poucos acordos de leniência cujo conteúdo tornou-se público e que foram firmados sob o fundamento da LAC, optamos por analisar aquele que é considerado, até então, o maior acordo de leniência da história mundial. Trata-se do acordo firmado entre o Ministério Público Federal e a holding J&F (controladora do frigorífico JBS, que posteriormente também aderiu ao acordo) em junho de 2017, pelo qual a J&F comprometeu-se a pagar uma multa de R$ 10,3 bilhões ao longo de 25 anos[3]. Por ser também o acordo de leniência de conteúdo público mais recente, entendemos que sua análise é, de fato, a mais pertinente, até para verificarmos se outros acordos de leniência anteriores foram mencionados ou considerados pela autoridade como referência e fundamento para a mensuração da multa aplicável à empresa por infração à LAC.
O acordo de leniência firmado entre o MPF e a J&F
Após a assinatura do acordo de leniência firmado entre a J&F e o MPF, este encaminhou à 5ª CCR, além do próprio acordo de leniência, um documento adicional, chamado ‘despacho complementar’, com o objetivo de, dentre outros esclarecimentos, demonstrar os critérios considerados quando da definição dos valores a serem pagos pela J&F a título de multa.
Da análise deste documento, verifica-se que a multa foi calculada tendo como base (i) os valores mínimos e máximos previstos no artigo 6º da LAC (0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo), (ii) o parágrafo 2º do artigo 6º da LAC, que prevê a possibilidade de redução em até 2/3 do valor da multa aplicável em caso de acordo de leniência, bem como (iii) os critérios de dosimetria da multa descritos nos artigos 17 e 18 do Decreto n° 8.420/15.
Não obstante, no despacho complementar não consta, de forma pormenorizada, os fundamentos adotados pelo MPF, nem as razões que o levaram a definir alguns dos percentuais aplicados para a dosagem da multa. Esclarecemos: o artigo 17 do Decreto n° 8.420/15 define que o cálculo da multa se inicia com a soma dos valores correspondentes aos percentuais do faturamento bruto da empresa do último exercício anterior ao da instauração do PAR (excluídos os tributos) descritos em seus incisos I a VI. Em seu inciso I, há a seguinte previsão: “1% a 2,5% havendo continuidade dos atos lesivos no tempo”. Com fundamento neste inciso, o MPF iniciou o cálculo da multa aplicando o percentual de 2% sem esclarecer as razões para escolha de tal percentual e não de um percentual inferior ou até mesmo do percentual máximo de 2,5%. Exatamente o mesmo ocorreu quando da aplicação do inciso II do artigo 17 do Decreto n° 8.420/15 pelo MPF.
Outro exemplo verifica-se quando da aplicação do parágrafo 2º do artigo 6º da LAC, que prevê a possibilidade de redução em até 2/3 do valor da multa aplicável em caso de acordo de leniência. Aqui o MPF reduziu em 1/3 o valor da multa aplicável à holding J&F, sem expor as razões para tanto. Entendemos que, diante da margem discricionária existente no texto normativo, deixando a critério da autoridade a definição de um percentual (tendo como base um percentual mínimo e um percentual máximo descrito em lei), é essencial que haja uma fundamentação detalhada de sua decisão, expondo claramente os motivos para a definição deste ou daquele percentual, o que não se verificou no despacho complementar do MPF.
No exercício de mensuração da multa nota-se, ainda, que o MPF considerou, além dos parâmetros legais, outras três variáveis: “esclarecemos que o processo de negociação da multa de um acordo de leniência envolve outras variáveis, como, por exemplo, a definição da capacidade de pagamento do grupo econômico, a comparação com outros acordos firmados com outros grupos econômicos e a satisfação do anseio coletivo de efetiva punição econômica dos ilícitos praticados”[4].
Da análise de cada uma das três variáveis citadas pelo MPF, entendemos que, no que se refere a (i) ‘definição da capacidade de pagamento do grupo econômico’, a autoridade agiu em consonância com a razoabilidade, na sua acepção de congruência, buscando uma relação congruente entre a medida adotada (a multa) e o fim que ela pretende atingir (a sobrevivência da pessoa jurídica, já que a intenção da autoridade, com a aplicação da multa, não é de inviabilizar a operação da empresa, até porque isto inviabilizaria o próprio ressarcimento dos danos causados e o pagamento da multa). É o que se depreende do texto: “Para garantir o fechamento do acordo pelo valor almejado como meta pelo MPF, foi necessário avaliar a capacidade de pagamento da holding (considerando que será esta, e não as empresas, quem arcará com o ônus do pagamento) e assim aumentar o prazo de pagamento, a fim de que, mesmo em cenários conservadores de queda de faturamento ou aumento de custo financeiro, fosse factível o pagamento da multa exclusivamente pela holding controladora. Nesse cálculo, já se avaliou que a colaboradora teria que se desfazer de parte de seus ativos para diminuir o endividamento de suas empresas (especialmente de curto prazo). Portanto, o cálculo da capacidade de pagamento tomou por base os prováveis dividendos em cenários conservadores que serão obtidos, principalmente, a partir da JBS S.A.. Dessa forma, avaliou-se que o prazo de 25 anos seria adequado para garantir tal pagamento”[5].
Com relação à variável (ii) ‘comparação com outros acordos firmados com outros grupos econômicos’, entendemos que o MPF, buscou timidamente respeitar o dever de coerência. No entanto, no texto do despacho complementar, não restou satisfatoriamente comprovada, nem esclarecida uma relação de similaridade entre as condições que levaram as partes a firmar o acordo de leniência ora analisado e as condições dos demais casos utilizados como referência pelo MPF, o que é absolutamente necessário e inerente ao próprio dever de coerência. Limitou-se o MPF a manifestar-se: “(…) para garantir um valor de multa com dimensão condizente com os ilícitos descritos nos anexos do acordo, fizemos também comparações com multas definidas noutros acordos. (…). Dessa forma, tomando os exemplo dos acordos firmados com Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, e o grupo econômico da Odebrecht (incluindo Odebrecht e Braskem), verificamos que as multas ali impostas representaram uma média de 35,33% do EBITDA das empresas e 5,63% do faturamento livre de impostos delas. Aplicando-se tais percentuais ao grupo econômico da colaboradora J&F Investimentos S.A..”[6].
Quanto à terceira variável mencionada pelo MPF, a (iii) ‘satisfação do anseio coletivo de efetiva punição’, cabe uma severa crítica, por entendemos ser este um fator carregado de subjetivismo e que, portanto, não deve, de modo algum, servir de base para a negociação de multa em sede de acordo de leniência ou de definição de multa no âmbito de um PAR, ferindo, inclusive, o princípio da legalidade, visto que nenhum diploma legal determina (e não faria qualquer sentido se assim o fizesse) que tal critério seja considerado para fixação de valor de multa.
Partindo para a análise do voto da Relatora da 5ª CCR, o qual foi a favor da homologação do acordo de leniência firmado entre o MPF e a holding J&F, nota-se, da mesma forma, a preocupação em fundamentar sua decisão com base em outras já anteriormente proferidas pela 5ª CCR, em consideração ao dever de coerência[7].
Não obstante, em sua conclusão, verifica-se uma aparente confusão terminológica, posto que aplica o termo ‘proporcional’, quando, em nossa opinião, seria mais adequado referir-se à ‘razoabilidade’, pelas razões já aqui dispostas. Dispõe a Relatora: “o valor estabelecido a título de multa e ressarcimento é proporcional, foi calculado de maneira clara e objetiva, como amplamente demonstrado acima, e é destinado às vítimas”[8].
Conclusão
Apesar de ainda estar longe de um cenário ideal, o advento da LAC (e de seu Decreto regulamentador) demonstra que o Brasil está acompanhando as tendências internacionais na luta contra a corrupção. Seus dispositivos trazem a responsabilização das pessoas jurídicas, com a previsão de severas sanções, desestimulando, portanto, que esta prática permaneça, de forma desenfreada, no país.
Isto não importa dizer que as autoridades administrativas e os magistrados, ao aplicarem tais sanções, estão livres para dosá-las sem a necessidade de respeitar os parâmetros legais. O Decreto nº 8.420/15 reduziu sensivelmente a discricionariedade do aplicador das sanções, mas, diante da dificuldade de extingui-la por completo, permanece a necessidade das autoridades proferirem suas decisões sempre de forma fundamentada, vinculada à razoabilidade e aos demais princípios orientadores da aplicação do Direito.
Do escasso material e da pouca jurisprudência disponível sobre o tema, parece-nos cedo para afirmar que as autoridades coatoras têm, de forma constante, observado a razoabilidade (em suas diversas acepções) quando da dosagem da multa a ser aplicada às empresas por atos de corrupção. Há de se esperar uma maior transparência quanto ao conteúdo das decisões proferidas, uma maior maturidade no tema (em especial na prática de acordos de leniência no Brasil no âmbito da LAC), para só então ser possível chegar a uma conclusão mais concreta.
No que se refere aos acordos de leniência, enquanto os critérios de aplicação e mensuração das multas não forem amplamente divulgados, ainda que respeitado o sigilo dos demais trechos sensíveis do acordo no interesse das investigações, não alcançaremos este grau de maturidade desejado. O que foi possível observar até o momento, do pouco material que se tornou público, foi que, ao proferir suas decisões, as autoridades têm feito referência a casos anteriores, em uma aparente consideração ao dever de coerência e em busca de se criar uma jurisprudência mais solidificada e orientadora para casos futuros.
Adicionalmente, observou-se que, além de aplicar as sanções previstas em lei, tem-se exigido das empresas a implementação de programas efetivos de compliance, de forma a prevenir a ocorrência de novos ilícitos, privilegiando a ética e a transparência na condução dos seus negócios, em absoluta consonância com a preocupação internacional de combate à corrupção (e em linha com o disposto na Portaria Ministerial 2.278/2016 e na Orientação n. 07/2017 da 5ªCCR).
No que se refere especificamente à multa, o que esperamos doravante é que os critérios utilizados em sua dosagem sejam cada vez mais divulgados e pormenorizados, e que o porte e a capacidade de pagamento da empresa também sejam sempre considerados, de modo a respeitar a continuidade da empresa, apresentando-lhe alternativas viáveis para que possa manter sua operação, posto que, do contrário, como bem salientou Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Rafael Véras de Freitas [9], restarão violados os princípios da liberdade de iniciativa e da função social da empresa.
Izabel de Albuquerque Pereira é doutoranda em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
[1] Na utilização da razoabilidade, Humberto Ávila destaca, dentre tantas acepções adotadas, três: (i) razoabilidade como equidade (exige a harmonização da norma geral com o caso individual), (ii) razoabilidade como congruência (exige uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir) e (iii) razoabilidade como equivalência (exige uma relação de equivalência entre duas grandezas: a medida adotada e o critério que a dimensiona). ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. ampliada. São Paulo: Malheiros, 2011p. 163 e ss.
[2] Cumpre destacar que a própria lei que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (Lei nº 9.784/99), prevê expressamente que a autoridade deverá observar, dentre outros princípios, a legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Ora, se esta lei separa claramente a razoabilidade da proporcionalidade, resta claro que possuem conceitos distintos no ordenamento jurídico brasileiro, não havendo razão para a confusão terminológica feita pelas autoridades.
[3] Em outubro de 2017, o MPF abriu um PAR para investigar se a J&F está descumprindo as cláusulas do acordo. Os procuradores decidiram abrir a investigação sobre a leniência levando em conta a decisão da PGR de rescindir acordos de colaboração premiada de Joesley Batista e de Ricardo Saud, além da investigação sobre o uso de informações privilegiadas no mercado financeiro. Em fevereiro de 2018, a PGR informou ter rescindido também os acordos de colaboração premiada de Wesley Batista e de Francisco de Assis e Silva, os quais aguardam a homologação do STF. Diante deste cenário foi informado, ainda sem confirmação oficial, que o acordo de leniência firmado entre MPF e a J&F estaria sendo objeto de repactuação.
[4] Despacho complementar, p. 11.
[5] Despacho complementar, p. 16.
[6] Despacho complementar, p.12.
[7] VOTO Nº INQUÉRITO CIVIL nº 1.16.000.000393/2016-10, p. 13.
[8] VOTO Nº INQUÉRITO CIVIL nº 1.16.000.000393/2016-10, p. 48.