É assim que deve ser encarada a Lei 7753/2017 do estado do Rio de Janeiro, que torna obrigatória a adoção de programas de compliance pelos fornecedores de bens e serviços do estado. Mais importante do que a publicação da lei é que os órgãos de controle dos estados saibam que é preciso criar mecanismos de fiscalização para garantir que os programas sejam efetivos e não apenas mais um documento solicitado pelas autoridades. E eles já estão se movimentando nesse sentido.
A promiscuidade nas relações entre o público e o privado no Brasil não é um problema localizado ou restrito a algumas áreas do mapa. Isso pode ser constatado pelo grande volume de operações realizadas pelos órgãos de controle do Estado nas diferentes esferas de poder.
É natural que as grandes operações, notadamente a Lava Jato e os seus “filhotes”, que hoje são acompanhadas de perto não só por toda a mídia mas também pelos cidadãos, fiquem com a maior parte das atenções. Mas, inúmeras outras operações de pequeno, médio e grande porte são realizadas regularmente Brasil adentro.
Não existe unidade da Federação imune a fraudes em áreas críticas como saúde e educação – nas quais se concentram a maior parte dos problemas (em volume de casos) do País – ou uma licitação mais problemática envolvendo compras de bens e serviços pelo setor público.
Apesar dessa abrangência nacional, parece inegável que em nenhum outro estado do Brasil, a promiscuidade entre o público e o privado se deu de maneira tão intensa quanto no Rio de Janeiro. Tanto que o estado viu seus três últimos governadores (e o presidente da assembleia) presos simultaneamente, todos acusados, entre outros crimes, de corrupção. Especialmente a partir de meados dos anos 2000, inebriados por um conjunto circunstancial de fatores, os governantes fluminenses comportaram-se como verdadeiros glutões num banquete real (e gratuito).
Só que o preço do petróleo despencou, bem como os investimentos da Petrobras (a maior empresa do país e que está baseada no Rio de Janeiro). Aliada à mudança nas regras de repasse, a receita com os royalties do petróleo, principal fonte de arrecadação do estado, despencou. Some-se a isso que a Copa passou, assim como as Olimpíadas. Os dois eventos ajudaram a converter o Rio de Janeiro no principal canteiro de obras do Brasil. Por um lado, isso turbinou a economia. Mas, por outro, aumentou a possibilidade de ganhos escusos.
Ao final de tudo, o que se viu foi um estado literalmente quebrado pela má gestão e no qual se roubou como nunca. A percepção do impacto da roubalheira foi ainda maior porque sem dinheiro (literalmente), o Rio deixou de pagar seus servidores e faltou recurso para o básico do básico em áreas como saúde e segurança pública numa situação de verdadeira calamidade.
Por isso, é emblemático que justo o Rio de Janeiro tenha sido o primeiro estado do Brasil a publicar uma lei exigindo que seus fornecedores de bens e serviços contem, obrigatoriamente, com um programa de compliance.
A Lei 7753/2017 já está em vigor e obriga fornecedores de bens com contratos junto ao estado superior a R$ 1,5 milhão e dos contratos de prestação de serviço que ultrapassem os R$ 600 mil e prazo superior a 180 dias a manterem um programa efetivo de compliance em suas empresas.
Os fornecedores que não dispuserem de um no momento da contratação terão um prazo de até 180 dias para implementá-lo. Caso não o façam, estarão sujeitas às multas por descumprimento do contrato. Procurada pela reportagem, a CGE fluminense não respondeu aos pedidos de entrevista até o fechamento desta matéria.
Valor reconhecido
A publicação da lei, mais do que um evento isolado do estado do Rio de Janeiro, é o prenúncio da importância que o poder público está atribuindo ao compliance como forma de mitigar eventuais riscos de corrupção em compras e licitações públicas.
Muitos outros estados e cidades também se movimentam, no sentido de terem as suas próprias legislações sobre o tema. Para o ouvidor-geral do Amazonas, Roberto Amoras, isso deve acontecer num prazo razoável de tempo. Roberto é também o presidente do CONACI, o conselho que reúne os órgãos de controle interno dos estados.
Cláusulas anticorrupção não são novidade em contratos com o setor público e vários entes federativos já as aplicam em seus contratos. Mas até aqui, não existia legislação que exigisse programas de compliance nessa abrangência.
Ao estabelecer uma legislação específica, o Rio leva o tema para um novo patamar ao abarcar todos os seus fornecedores relevantes. E, apesar dos problemas, o Rio ainda é dono do segundo maior PIB dentre os estados brasileiros. Ou seja, o impacto da medida tende a ser bastante considerável.
Para Luís Inácio Adams, sócio da área de Compliance do escritório Tauil & Chequer e ex-advogado-geral da União, esse tipo de exigência é cada dia mais presente no relacionamento entre as empresas privadas, que cada vez mais exigem programas de integridade dos seus fornecedores. “A exigência que o estado faz agora é aderente a essa lógica”, pontua o advogado.
A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, já publicou decreto tornando obrigatória a adoção de medidas anticorrupção nos contratos firmados com o município. Agora, a controladora-geral da cidade maravilhosa (CGM), Márcia Andréa dos Santos Peres, diz que em 2018 a pasta entra fortemente na questão de compliance, como foco não só nos fornecedores mas também nos servidores. “Estamos preocupados com os dois lados.”
A questão da obrigatoriedade dos programas de compliance nos contratos de fornecimento para a cidade é tratada no âmbito do plano estratégico da CGM para o período 2017-2020, junto com outros temas de governança, compliance e auditoria e tendo como base a proposta de governo responsável e transparente.
“Governo responsável é trazer a questão de compliance e risco para o centro das discussões da gestão pública. É uma novidade na área pública e que agora estamos organizando. Não dá para implantar tudo de uma vez, por isso temos esse prazo mais dilatado até 2020”, explica.
Na ponta dos servidores, Márcia diz que a pasta deve se valer de muitos elementos que já constam do Estatuto e do Código de Servidores Públicos. “Essa questão já é bastante abarcada nas legislações atuais. Vamos avaliar outras medidas que possam ser diferenciais nesses casos”, pontua.
O ouvidor-geral do Amazonas lembra que, assim como se deu com a aplicação nos estados de outras legislações relacionadas ao controle interno, será necessário um prazo de maturação para se adequar às novas regras. Segundo Roberto Amoras, hoje, praticamente todos os órgãos de controle estaduais estão adequados a Lei de Acesso à Informação, por exemplo. “Em relação à Lei Anticorrupção, estamos avançando significativamente ano após ano”, diz o ouvidor amazonense, para quem essas legislações facilitam a própria aplicação da Lei Anticorrupção.
A lei está aí. E agora?
Com a legislação em vigor já vem à questão que, de fato, é a mais importante. Como acompanhar e garantir que os programas de compliance apresentados são efetivos? Num primeiro momento, legislações como a do Rio de Janeiro tendem a se contentar com o formalismo da documentação. Esses processos estarão muito mais focados em trâmites burocráticos, ou seja, no envio da documentação referente à área de compliance e a assinatura de termos, tal qual já acontece com outras demandas do poder público como contratante.
Nesses casos, um programa de papel consegue, quase sempre, sair-se bem aos olhos da burocracia estatal. Isso acontece até por falta de capacidade desses órgãos de controle, de imediato, absorverem essa nova demanda.
Mas, eles sabem muito bem que existe uma distância enorme entre ter um programa no papel e ter um que seja verdadeiramente efetivo. E, também tem a consciência de que legislações como essa só irão cumprir com o seu papel de disseminar a cultura de compliance nas relações de negócios entre os setores público e privado, quando eles tiverem condições de monitorar e se assegurar da efetividade do programa.
“De fato esse é um problema da legislação e que o estado vai ter de enfrentar. Será preciso olhar para a implementação. Acredito que nesse ponto a lei ou sua regulamentação poderia ser um pouco mais clara”, acredita Adams, da Tauil & Chequer. Mas, ele reconhece que apesar disso, trata-se de uma legislação avançada e que, ao menos, dá a oportunidade de avançar com o combate à corrupção.
Em termos de qualificação para lidar com o assunto, até por conta da Lei Anticorrupção, os associados do CONACI já vêm se capacitando nesse sentido.
No entanto, a capacidade operacional para executar as novas demandas, isso já é outra questão, especialmente num ambiente de restrições orçamentárias severas e com os órgãos de controle já lidando com recursos esparsos.
Um item a mais
Ainda que as limitações existam, com disposição pra encarar o desafio de frente, criatividade e alguma engenharia, sempre é possível encontrar alguma solução para garantir um mínimo de capacidade de fiscalização.
Para Luís Inácio Adams, uma opção é adotar os relatórios de perfil de conformidade regulados pela Controladoria-Geral da União (CGU). “São instrumentos que a CGU adota para avaliar as empresas de fato, levando em conta o perfil de risco e a efetiva conformidade em relação ao combate à corrupção praticado pela empresa”, diz.
Existem movimentações intensas nesses órgãos (e entre eles) para aperfeiçoar mecanismos de auditoria já existentes e aplicá-los à avaliação dos programas de compliance dos seus fornecedores. Hoje o que é feito, na maioria dos casos, é uma auditoria de conformidade legal, ou seja, se o que foi contratado está sendo entregue dentro dos padrões.
São várias as possibilidades para dar conta do recado. Uma delas é usar as próprias equipes que já fazem as auditorias nos fornecedores do estado e ampliar o seu escopo de atuação. “Certamente, o modelo ideal pode ficar comprometido nesse momento por conta da situação momentânea”, reconhece Márcia. Na CGM carioca, as discussões sobre quem será o guardião da aplicação das novas regras passam por avaliar a aplicação de uma espécie de autocontrole, na qual uma instância fiscaliza a outra.
O uso de mecanismos como o sorteio (tal qual a CGU aplica nas auditorias aos municípios) embora válido, não é tido como um modelo razoável nesse caso. “Minha opinião, como técnica, é a de que eu preciso ter um critério de seleção baseado em risco para elencar os casos que precisam ser verificados mais de perto. Mas, sempre deixando um espaço, uma margem para a seleção aleatória de empresas a serem auditadas”, explica Márcia. Com isso, os contratos mais arriscados estarão obrigatoriamente cobertos e se mantem o fator surpresa também. Ela acredita que em dois ou três anos seja possível auditar todos os fornecedores, sem abrir mão de critérios técnicos.
Ela inclusive acha importante que os programas de compliance sejam avaliados de acordo com o porte e proporcionalidade do volume total de contratos de uma mesma empresa com a cidade ou estado, e não levando em conta apenas o valor de cada contrato, como preconiza a legislação fluminense.
Ajuda externa
Outro caminho natural é contar com o uso de agentes independentes, que podem ser certificados pelos estados para fazerem a validação dos programas. “A due diligence externa é sim uma boa opção”, reconhece a corregedora carioca.
Essa é uma discussão que se dá no CONACI, ainda em estágio embrionário, mas que tende a ganhar mais importância nos próximos meses, podendo resultar na criação de um grupo de trabalho específico para estabelecer os critérios e requisitos para as certificadoras, o que pode acelerar o processo de adoção.
De acordo com Roberto Amoras, o órgão não tem condições de exercer o papel de certificador. Mas, pode sim estabelecer os critérios que precisam ser levados em conta e, principalmente, certificar os agentes independentes para fazerem esse serviço.
O presidente do CONACI esclarece que não se trata de os estados simplesmente validarem algumas das normas já existentes, caso da ISO 37001, que trata da prevenção à corrupção. “É preciso estabelecer algo que atenda ao escopo e as necessidades específicas dos estados. Se conseguirmos fazer isso juntos, o processo todo será mais fácil”, finaliza.
Reportagem publicada originalmente na edição #20 da Revista LEC.