Mudanças na aplicação do instrumento trazem maior previsibilidade para seus signatários.
A possibilidade de celebrar acordos de leniência na seara anticorrupção foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro pela chamada Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013). Inspirado no modelo norte-americano, esse eficiente mecanismo de colaboração pelas empresas já era utilizado no Brasil para a prevenção e repressão de infrações contra a ordem econômica. Nos seus primeiros anos de aplicação, principalmente no âmbito da Operação Lava Jato, o instrumento gerou inúmeros desafios às empresas potencialmente colaboradoras pela ausência de diretrizes e parâmetros claros para a sua celebração. Somou-se a isso a multiplicidade de órgãos com competência para negociar e celebrar os acordos, o que contribuiu para a instauração de um cenário de insegurança jurídica e de descoordenação institucional.
No entanto, recentemente, vimos importantes avanços na aplicação do acordo de leniência, que contribuem para solidificar o instituto e trazer maior previsibilidade para os seus signatários. Um importante exemplo disso é a maior coordenação entre as autoridades públicas envolvidas no assunto. Nesse sentido, é importante destacar o representativo julgamento dos Mandados de Segurança nº 35.435, nº 36.173, nº 36.496 e nº 36.526, iniciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 26 de maio de 2020. Discute-se no caso a possibilidade de o Tribunal de Contas da União (TCU) declarar a inidoneidade de empresas por fatos já cobertos em acordos de leniência firmados com outras autoridades públicas competentes. No julgamento, atualmente suspenso, o ministro relator Gilmar Mendes reconheceu que os ilícitos admitidos pelas empresas no âmbito dos acordos de leniência são os mesmos que resultaram na declaração de inidoneidade pelo TCU, sendo a duplicidade de sanções incompatível com o princípio constitucional da segurança jurídica.
No seu voto, o ministro Gilmar Mendes ponderou que, se a sobreposição fática entre os ilícitos não for considerada, as empresas poderão ser punidas duas ou mais vezes pelo mesmo fato, o que minaria os incentivos da colaboração no âmbito do acordo de leniência. Caso o argumento prevaleça após os votos dos demais ministros, o julgamento representará importante avanço sobre o tema, evitando que empresas sejam surpreendidas após a celebração do acordo pela imposição de sanções decorrentes de fatos já relatados às autoridades.
Ainda sobre a tentativa de instituir uma atuação mais harmônica entre autoridades, merece destaque o acordo de cooperação técnica firmado em 6 de agosto de 2020 entre o TCU, a Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob coordenação do STF. O Ministério Público Federal (MPF) não assinou o acordo e afirmou que aguarda nota técnica da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão para se posicionar. O documento traz orientações para uma atuação mais articulada entre as autoridades, além de reconhecer que a atual dinâmica para a negociação dos acordos enfraquece a atuação das instituições públicas e cria insegurança jurídica para as empresas. Dentre as diretrizes do acordo, prevê-se a inaplicabilidade de sanções adicionais, a busca de consenso entre as autoridades quanto ao ressarcimento de danos, a objetividade dos parâmetros para fixação de valores e a preservação da empresa.
Também notamos esforços para estabelecer diretrizes mais claras para a celebração dos acordos. O MPF, que já havia publicado estudos e notas técnicas com orientações sobre o tema, recentemente publicou a Nota Técnica nº 01/2020, favorável à adesão de pessoas físicas aos acordos de leniência. Por meio da sua 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, o MPF explicou que as orientações visam resguardar a isonomia na concessão dos benefícios e garantir maior segurança jurídica, já que a Lei Anticorrupção incluiu apenas as pessoas jurídicas como sujeitos aptos a celebrar os acordos.
A Nota Técnica nº 01/2020 ressalta também a importância da centralização de investigações na figura de um só procurador, ainda que sobre fatos ocorridos em diferentes localidades, como medida para uniformizar os acordos de leniência. A 5ª CCR argumenta que, em respeito ao princípio constitucional da unidade do MPF, o acordo celebrado e homologado deve ser observado pelos outros membros da instituição, não cabendo a eles rejeitar a validade e eficácia do acordo, o que é certamente muito bem-vindo nos casos que envolvem fatos de atribuição de diferentes membros do MPF.
Alvissareira também é a constatação de que a negociação e a celebração dos acordos de leniência estão cada vez mais céleres. As informações públicas disponíveis sobre os acordos celebrados em 2018 indicaram uma média de 2 a 3 anos entre o primeiro contato com as autoridades e a sua assinatura. Em 2019, as informações mostram que o intervalo de tempo foi muito menor, caindo para 1 ano ou até menos que isso, em alguns casos.
Embora se reconheça importantes avanços, subsistem questões a serem enfrentadas e que impactam no grau de segurança jurídica dos acordos. Exemplo disso é a questão da independência entre os acordos de leniência e os de colaboração premiada, que provavelmente ganhará destaque após o julgamento da Petição nº 7.003 pelo STF, em que será analisada a eventual rescisão dos acordos de colaboração de executivos da empresa colaboradora. Também subsistem dúvidas sobre a independência entre os acordos de holdings e suas empresas controladas, a compensação de valores pagos em acordos envolvendo mais de uma jurisdição, dentre outras.
Em resumo, desde o advento da Lei Anticorrupção, notamos um efetivo esforço e aprimoramento da leniência anticorrupção, reforçada recentemente pela consolidação de regras e diretrizes que resultam em maior segurança jurídica. Entretanto, apesar dos notáveis avanços, ainda é preciso enfrentar certas questões para evitar situações de insegurança. A atuação cada vez mais coordenada entre as autoridades, a ampliação do diálogo institucional e a definição de regras e diretrizes claras sobre os acordos de leniência são peças-chave, que devem ser priorizadas para se estabelecer uma política de combate à corrupção efetiva no Brasil.
Renato Portella é Sócio do escritório Mattos Filho
Luiza Cattley é Advogada do escritório Mattos Filho
Jaqueliny Guimarães é Advogada do escritório Mattos Filho
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