A IA no Compliance veio para ficar? Profissionais da área acreditam que sim, para ajudar nas questões quantitativas
A Inteligência Artificial (IA) tem se consolidado como uma ferramenta essencial em diversos setores. Na área de Compliance, seus impactos são notáveis, de acordo com os profissionais que atuam nesse mercado, em especial nos aspectos que envolvem a automação e o aprimoramento de processos para garantir a conformidade regulatória e mitigar riscos operacionais das empresas. Os benefícios potenciais alcançados pela integração de tecnologias avançadas de análise de dados pelo aprendizado de máquina e pela automação de processos, ainda que hoje tenham uso relativamente restrito, já é um dado da realidade. Dessa forma, empresas, consultorias e escritórios de advocacia conseguem identificar padrões de comportamento suspeitos, realizar auditorias em tempo real e atender às exigências de órgãos reguladores de forma mais eficiente. E tudo isso compõe boa parte do trabalho mais operacional de uma área de Compliance.
Nesse contexto operacional, a IA possibilita uma gestão mais ágil e precisa do grande volume de informações que as organizações precisam monitorar. Quando usadas de forma inteligente e criteriosa, as ferramentas de IA permitem ganhos bastante efetivos. Fazer a triagem de grandes quantidades de dados para identificar padrões de fraude ou corrupção com o apoio dessas tecnologias reduz a carga de trabalho manual e erros humanos, além de aumentar a capacidade de resposta da área de Compliance diante de um ambiente regulatório dinâmico e voltado a responder às áreas de negócios em tempo cada vez mais exíguo.
A análise automatizada de documentos, transações e interações corporativas permite a detecção de irregularidades de forma mais rápida e precisa. Não é um conhecimento novo necessariamente, mas à medida que as empresas que oferecem ferramentas de tecnologia para o mercado de Compliance sofisticam o uso e as possibilidade de aplicação dessas novas tecnologias, mais acessíveis (do ponto de vista da usabilidade e também do custo) elas se tornam, aumentando seu grau de aderência pelos profissionais da área.
Alessandro Gratão Marques, sócio-líder de serviços de Compliance & Forensic na firma de auditoria e consultoria Grant Thornton, ressalta que o setor tem designado a IA como suporte ao Compliance, hoje, principalmente em funções mais operacionais. Mas ele é otimista em relação à maior adoção de ferramentas e soluções baseadas na nova tecnologia, até porque a quantidade de tecnologias emergentes de IA disponíveis hoje, para diversas funcionalidades, e principalmente a capacidade de processamento, atingiu patamares nunca antes vistos. “Pode-se fazer uso da IA desde as atividades mais simples, como a criação de um texto ou uma imagem aplicável em determinado contexto, ou para apoiar soluções complexas, como predição de cenários a partir de hipóteses, variantes e dados históricos agrupados ou clusterizados”, diz Gratão.
Segundo o especialista, um ponto positivo para as empresas é que, quanto mais é utilizado, melhor a qualidade do prompt (um comando em linguagem de texto responsável por solicitar ao sistema a execução de uma tarefa específica). Isso permite ir refinando os resultados a partir do treinamento do algoritmo, trazendo um nível de precisão cada vez maior. “Considerando esses aspectos e o perfil da maioria das equipes de Compliance no Brasil, que atuam com contingente reduzido, pode-se dizer que a IA veio para ficar”, afirma.
Na prática, a teoria é outra
Verdade seja dita: por mais que hoje pareça algo trivial, a implementação da Inteligência Artificial pela área de Compliance não está isenta de desafios operacionais. Um dos maiores obstáculos costuma ser a integração dessa tecnologia com os sistemas e processos já existentes nas organizações, o que demanda tempo, recursos financeiros e humanos, e uma adaptação cultural. Além disso, a dependência de algoritmos pode levantar questões sobre a transparência e a possibilidade de vieses nos resultados produzidos pela IA. Na visão de grande parte dos profissionais que atuam nesse segmento, a supervisão humana continua sendo mandatória para garantir que as ferramentas automatizadas sejam usadas de forma ética, em conformidade com as normas de proteção de dados, e que não gerem insights que levem os tomadores de decisão a definir as questões com dados obtidos a partir de questões e premissas não necessariamente as mais adequadas àquela situação. E quem estabelece essas premissas e formula as questões não é a IA, mas sim os Compliance Officers. Por isso, sua aplicação deve ser acompanhada de uma gestão criteriosa e até mesmo cautelosa. “A aplicação responsável e eficaz da IA exige que as organizações estejam atentas aos seus limites, como a necessidade de informações de qualidade e o risco de vieses algorítmicos”, reconhece Flávia Melo, diretora associada da Hect, uma consultoria especializada em Compliance.
Para Caroline Brossa, Latam Compliance Officer de Health Care Compliance da gigante da área de saúde J&J Innovative Medicine, a IA vai ser uma realidade na qual os profissionais da área serão chamados a assumir os riscos na sua implementação. “Na minha opinião, ela não vai substituir por completo a análise e a tomada de decisão dos profissionais de Compliance; vai ser uma bússola para que a área trabalhe de forma mais efetiva, focada em riscos, e decida onde alocar mais recursos, ajudando a documentar a evolução do programa. No entanto, é preciso que exista um plano de monitoramento e revisão constantes para garantir sua eficácia e utilidade”, diz a Compliance Officer.
A executiva da J&J aponta que o setor ainda está em uma fase inicial de implementação de IA na cultura empresarial. “É preciso entender que, para garantir seu funcionamento adequado, há um trabalho considerável nos bastidores de uma equipe multidisciplinar. Então, além do quesito humanização, a IA ainda precisa do trabalho humano para funcionar, e a empresa deve analisar se o investimento vai de fato gerar o benefício esperado e ser sustentável em longo prazo”, acrescenta.
Na visão da diretora da Hect, a capacidade de as ferramentas baseadas em IA automatizarem tarefas e analisarem dados, como a detecção de anomalias em e-mails, registros financeiros e mídias sociais, permite que os profissionais se concentrem em atividades mais estratégicas. Por isso, embora ainda não se conheça todo seu potencial, a IA tem se tornado uma ferramenta relevante para os profissionais em temas críticos do dia a dia, como as operações de due diligence de Integridade, uma prática essencial para a gestão de riscos de terceiros que abrange uma variedade de temas e que vem se ampliando para além da corrupção e da lavagem de dinheiro, como aspectos ambientais, sociais, direitos humanos, privacidade e outros temas de governança (ESG). A especialista lembra que a due diligence apresenta desafios, demandando significativos recursos humanos e financeiros que podem levar à morosidade e ao custo elevado. “A IA pode auxiliar na superação dessas dificuldades, por meio de plataformas de gerenciamento de riscos, ferramentas de análise de dados para PLD e outras soluções que agilizam o processo e reduzem os custos”, afirma Flávia.
Sergio Alberto Pinto, diretor de Compliance para América do Sul da companhia norte-americana de agronegócio CHS, alerta que o algoritmo ou o programa de IA deve ser preparado por pessoas com expertise no negócio (processos) e também com conhecimento de Compliance. Para ele, ainda há alguns limites que devem ser observados. “Na minha opinião, pode haver sempre uma solução híbrida, ou seja, a gente pode usar a IA para analisar as informações, tendências e usar isso tudo para uma análise mais quantitativa e, com isso, dar inputs para pessoas realizarem o atendimento e a análise qualitativa da questão e tomar a decisão final, com evidências mais robustas”, sugere. “Para mim, tem ajudado muito na parte de preparação de materiais de Compliance, apresentações, tradução de políticas e preparação de estudos de casos”.
Além do trabalho operacional “mais pesado”, como due diligence e gerenciamento de riscos de terceiros, análise de contratos e de grandes volumes de dados financeiros, por exemplo, a IA vem ajudando em outros campos. Ela está sendo aplicada para criar programas de treinamento personalizados e interativos que ajudam os funcionários a entender e a cumprir as políticas corporativas de Compliance. “Chatbots com IA podem responder a perguntas dos funcionários sobre o código de conduta, políticas de conflitos de interesse, presentes e hospitalidade ou fornecer orientações sobre como relatar uma violação”, exemplifica Flávia, da Hect.
Já na gestão do departamento, a especialista acredita que a IA pode automatizar relatórios, dashboards e indicadores, como o número de denúncias recebidas e a taxa de conclusão de treinamentos, reduzindo erros, agilizando o processo e fornecendo dados atualizados sobre o desempenho do programa. “A IA em Compliance está apenas começando. Outras aplicações, como o desenvolvimento de perfumes personalizados, a composição de músicas e roteiros de filmes, e a geração de receitas culinárias revelam potencial da tecnologia para superar limitações e desafios e impulsionar a inovação em diversas áreas”, conta Flávia. “À medida que a tecnologia evolui, podemos esperar uma revolução na forma como as empresas gerenciam seus riscos e garantem a conformidade dos processos. Nos próximos cinco anos, a IA será primordial para o sucesso das organizações. Aquelas que a incorporarem em suas estratégias e se adaptarem às novas demandas estarão mais bem posicionadas para inovar em diversas áreas, incluindo a área de Compliance”, conclui a especialista.
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Artigo publicado originalmente no Anuário Compliance On Top 2024 com o título “A IA no Compliance veio para ficar?”.
Imagem: Canva