A comunicação das consequências por violações ao programa de Compliance gera um desafio para os profissionais em relação à construção da imagem da área junto ao público interno
O Compliance está na boca do povo. A área ganhou destaque ao longo dos últimos anos, se posicionou como protagonista de um processo de transformação cultural e, agora que se colocou em evidência, é cobrada pelos funcionários, principalmente por quem faz algum tipo de denúncia relacionado a assédio moral (a maioria) e sexual (que no Brasil, configura crime), para agir. Mas, por diferentes motivos, independentemente da medida tomada, nem sempre a ação da empresa em relação à situação é comunicada de forma transparente, de acordo com o que de fato aconteceu, para que se chegasse naquela decisão. Isso pode dar a muitas pessoas a percepção de que mesmo quando desligada da companhia, o profissional denunciado foi “premiado”.
Como o leitor da LEC bem sabe, não é papel do Compliance aplicar as sanções ou realizar a demissão de um funcionário da empresa, ainda mais de um gestor. A área simplesmente faz as recomendações na medida em que a investigação do caso leva a conclusão de que a consequência à infração cometida pede o desligamento. Mas, a sensação de justiça ou injustiça é um componente importante na formação da percepção de imagem da área de Compliance das empresas e que não pode ser ignorada. Ainda que equivocada, a imagem sobre a atuação da área de Compliance que se forma para a população interna a partir de situações como essa, pode colocar em cheque a reputação da área sobre a sua capacidade de garantir que o ambiente da empresa seja de respeito e boas condutas. Seria um retrocesso após anos de construção. Em tempos de sociedade civil atenta e redes sociais barulhentas, poderíamos ver mais funcionários vítimas de assédio por seus empregadores ou pares a levar a denúncia diretamente às autoridades e ao público, sem que a companhia tome conhecimento prévio a respeito.
CAUSA E EFEITO
Em empresas mais evoluídas, as consequências a cada tipo de ato costumam ser claras e objetivas, para que não reste muita dúvida e espaço sobre a ação a ser tomada. Se existe uma acusação de racismo praticada por um funcionário da empresa, confirmada pelas investigações e se essa infração é categorizada como grave e a sua consequência é o desligamento do funcionário, não tem porque fugir do que está previamente acordado. Se o caso é de demissão, que o cidadão seja demitido.
Na companhia do segmento de healthcare Fresenius Medical Care, o framework de medidas disciplinares é divulgado para toda a força de trabalho. Racismo e corrupção, por exemplo, são casos sérios, de demissão. Já violações das políticas e do programa de Compliance são analisadas caso a caso. Muito do sucesso depende da estrutura da empresa para tomar as decisões de casos complexos e importantes, particularmente tirando-as de quem não pode ser imparcial. “A percepção da área para o publico interno depende muito de cada empresa, se os processos são claros, equitativos e transparentes. Se a empresa os segue, as coisas vão bem. Caso contrário, é natural que as pessoas achem que não funciona”, diz Renata Afonso, vice-presidente e Regional Compliance Officer para América Latina da companhia.
Agora, a adoção da medida disciplinar é suficiente? Num primeiro momento, deveria ser. Afinal, a pessoa perdeu o seu emprego e a depender do contexto, sequer sabendo oficialmente o porquê. Mas, a depender do tom do comunicado de despedida emitido pela empresa, de como ele é tratado pela liderança da companhia, os valores envolvidos na sua rescisão e, mais importante, a forma com essa informação vai ser propagada pela “rádio peão”, podem tornar a demissão insuficiente sob a ótica dos funcionários em relação ao que eles podem considerar a efetividade do programa de Compliance.
É importante que as empresas e seus profissionais passem a dar mais atenção para a comunicação das consequências por violações ao programa da Compliance, ao mesmo tempo em que precisam pensar em formas de dar mais transparência para os processos de tratamento e investigação das denúncias, incluindo aí a própria finalidade do canal de denúncias.
DANDO UM PASSO ATRÁS
Desde que ganharam mais espaço no ambiente corporativo brasileiro, os gestores de Compliance passaram a cantar aos sete ventos sobre as glórias dos seus canais de denúncias, trabalhando arduamente para que eles se tornassem conhecidos pelo público interno, explicitando a segurança do sistema, a política de não retaliação e, particularmente, a possibilidade de anonimato na comunicação das denúncias. “Usem o canal de denúncias”, diziam, de diferentes maneiras, todos os profissionais da área. E isso de fato aconteceu. Agora, é importante focar na efetividade, não só do processo de investigação, mas também assegurar que não é representar uma barreira à construção de uma cultura de integridade na empresa e a confiança do público interno nas instâncias responsáveis por aplicar as sanções.
O canal de denúncias se popularizou, mas em alguns casos, isso tem representado uma banalização da ferramenta. “As pessoas precisam entender que canal de denúncias não é dedo-durismo”, alerta Ricardo Viveiros, jornalista e presidente da agência de comunicação corporativa que leva o seu nome e que soma quase 35 anos de atuação no negócio de comunicação corporativa, incluindo aí a gestão de muitas crises. “Quando acontece um problema, é preciso muito rigor na apuração. Porque tem uma questão emocional muito forte, que às vezes atropela o racional”, diz o jornalista.
Ter o canal de denúncias bombando, ao contrário do que muitos pensam, não deveria ser motivo de comemoração por profissionais de Compliance. Significa dizer que os outros mecanismos para que as pessoas conversem sobre o que está acontecendo, inclusive buscar resolver a questão junto aos seus superiores, o RH, ou mesmo acionando diretamente a área de Compliance para conversar, podem não estar funcionando. “Não acredito que um aumento no número de denúncias queira dizer que o canal está funcionando melhor, porque temos outros mecanismos de comunicação anteriores dentro desse pilar. Fico muito mais satisfeito quando as pessoas trazem os casos para mim, porque acreditam que podem confiar no Compliance para ajudar a resolver a questão”, afirma André Cruz, diretor de Compliance da Alubar, maior fabricante de cabos elétricos de alumínio da América Latina. O executivo reforça que uma das premissas da área de Compliance da empresa é a de que o canal de ética é a última instância de comunicação, tendo antes as possibilidades de falarem diretamente com os seus gestores ou com a área de Compliance, caso sintam-se confortáveis. “Não inibimos o uso do canal, pelo contrário, damos a possibilidade adicional de a pessoa vir conversar com a gente. Passar a confiança de que podem contar conosco, é fundamental.”, diz Cruz, que tenta reforçar por meio de seus gerente e coordenadores, a primeira linha de defesa, de lembrar aos funcionários que eles podem acionar o Compliance diretamente.
Um aspecto importante para tornar o uso do canal de denúncias mais assertivo pelos funcionários é justamente deixar mais claro o processo de tratamento das denúncias pela empresa e não só de que o canal é seguro e anônimo. Quem faz uma denúncia por meio do canal, nem sempre entende muito bem o processo que se inicia á partir daquele relato. Mas muitos do que o fazem esperam que aquela denúncia seja o início de um processo duro, quando não de “justiçamento”, sobre o seu suposto algoz. Isso porque eles não conhecem o contexto, que existem limites para a atuação da empresa na investigação da denúncia. Nesse processo é preciso explicar, inclusive, como funciona a investigação, quais os limites da empresa nesse processo e de que é preciso encontrar evidências de que aquela infração tenha, de fato, acontecido, e que ainda assim, a sanção pode não ser aquela esperada pelo denunciante. “Não vejo isso muito divulgado. Acho que temos de dar um passo atrás. Quando divulgamos nossos canais, falta apresentar um fluxo que demonstre aos denunciantes quem cuidará daquela sua denúncia. Se for uma questão de assédio o RH é o principal spoonsor, se for imperícia médica, será a área Médica; acusações de fraudes vêm para o Compliance…”, lembra Renata. Para a executiva, essa transparência sobre quem faz o quê melhoraria o uso do canal dando aos funcionários uma possibilidade de buscar resolver a sua questão no lugar correto. “Isso ajudaria numa melhora das denuncias que entram no canal e, na medida em que isso melhora, a resposta melhora também”, emenda a VP da Fresenius.
CASOS DE ASSÉDIO E O COMPLIANCE
Denúncias de assédio moral sempre representaram o grande volume de ligações para o canal de denúncias. Tradicionalmente, os profissionais de Compliance não tinham muito problema em lidar com isso. Fosse um caso de assédio moral, com raras exceções, seria tratado como uma questão de RH. Alegações de assédio sexual, ato criminalizado pela legislação brasileira, até poderiam ser tocados pelo Compliance, embora não fosse regra e, tão pouco, algo comumente denunciado. Só que o mundo vive uma transformação significativa. Denúncias de assédio hoje constituem uma preocupação diferente para a sociedade e, por consequência, para as empresas.
Com os canais operando quase sempre com a possibilidade do anonimato, mais e mais pessoas passaram a se sentir seguras para usá-lo. Independentemente da gravidade da situação relatada, quem o fez costuma esperar uma posição severa contra aquele que é supostamente seu algoz. Supostamente, porque é preciso, antes, investigar.
Nesse contexto, Andre Cruz diz que não é possível dar a impressão aos denunciantes de que o uso do canal tem uma relação de causa e efeito direto. Para assegurar que os usuários não vejam o canal como uma ferramenta para promover a demissão de outros funcionários – e garantir também a proteção das partes envolvidas dentro desse processo de apuração –, sem nunca deixar sem resposta quem fez a denúncia, na Alubar, opta-se pelo uso de termos genéricos nas interações sobre o andamento do caso, mas isso também precisa ficar claro antes e para todos. “O acordado não sai caro. O funcionário precisa saber que vai receber uma resposta mais genérica sobre o caso – mesmo quando já existe uma decisão tomada – e ele precisa confiar que nós nos preocupamos com a denúncia dele e que vamos seguir com as medidas adequadas, que podem inclusive ser a de não tomar nenhuma ação contra o acusado, caso não seja possível comprovar a sua conduta naquele caso”, conta Cruz. Em linha com essa estratégia, quando a situação leva a demissão do funcionário, a empresa pode inclusive dar um espaço de tempo, se a gravidade do caso assim o permitir, entre a decisão a partir da conclusão das investigações e o efetivo desligamento, o que é importante para evitar um “falso empoderamento” do denunciante, no sentido de a denúncia (e não o processo de investigação e os códigos da empresa) ditar os rumos da companhia.
O canal de denúncias traz grandes paradoxos, especialmente para os falantes latino-americanos. Um deles é o grande volume de denúncias pouco fundamentadas ou mesmo de má fé. “O próximo passo é encontrar uma solução para gerenciar denúncias de má fé e de uso indevido do canal”, acredita Renata. É um desafio considerando que a grande maioria das companhias adota o princípio da não retaliação aqueles que fazem denúncias de boa fé (ainda que não tenha como provar), mas não costuma trazer de forma objetiva o tratamento que poderá ser dispensado a quem faz denúncias de má fé.
Daí, mais uma vez, de reforçar a comunicação sobre os processos que se iniciam após uma pessoa fazer uma denúncia no canal, e com maior importância agora, como funcionam os processos de apuração e investigação das denúncias. É uma forma de deixar mais claro de que denúncias de má fé não são um fim em si mesmo. Isso é importante de ser dito, porque mesmo sendo tratado com todo o respeito por investigadores hábeis e imparciais, qualquer profissional costuma se sentir muito mal quando se vê investigado por algo infundado.
Nesse particular, denúncias de assédio moral no Brasil e na América Latina trazem um componente de dificuldade adicional. Mais melindrosos e recebendo as críticas de forma mais pessoal do que profissional, os latino-americanos são mais suscetíveis de encararem como assédio moral uma cobrança mais dura ou uma reprimenda por algum erro profissional da parte dos seus superiores. Isso dá muito margem a denúncias que se não são de má fé, são infundadas. Como a percepção interna acerca da efetividade do canal de denúncias está muito mais ligada a questões de assédio do que a fraude ou corrupção, lidar com esse desafio acaba sendo natural.
O DESAFIO DA TRANSPARÊNCIA TOTAL E O CONTROLE DA NARRATIVA
Em situações cuja denúncia culmina na demissão do funcionário, a forma como ele é desligado e a comunicação interna sobre o corrido traz um dilema para as empresas. Afinal, é melhor usar o caso de exemplo e divulgar o ocorrido para os funcionários, como uma ação educativa; ou tentar botar panos quentes, para que a situação se encerre com a demissão e ninguém mais se lembre ou fale daquilo? As empresas ainda relutam muito, e por diferentes motivos, em dar mais transparência para o público interno sobre o processo que culminou na decisão, ainda que essa comunicação pudesse servir tanto para ilustrar a situação em si, dando um exemplo concreto de que a empresa não tolera aquilo, bem como para construir a reputação do programa de Compliance da empresa perante a população da empresa. Então, porque não fazer isso? “Infelizmente, as empresas ainda não estão preparadas para falar das suas feridas, correndo o risco de quebrar a confidencialidade do caso”, lamenta Renata Afonso. Além disso, a depender do nível do profissional, as demissões são acompanhadas de termos de sigilo ou pagamentos extras, como uma cláusula de não competição, que fazem sentido para a empresa num contexto mais amplo – inclusive do ponto de vista jurídico –, mas que dificilmente serão compreendidos pela força de trabalho. Muito menos por quem fez a denúncia. Um outro ponto de preocupação é que a exposição ao empregado desligado poderia ensejar pedido de indenização por parte deste ex-empregado.
Ainda assim, não deixa de ser um avanço o fato de que funcionários com condutas inadequadas, especialmente nos altos escalões, estejam sendo desligados das empresas. Ricardo Viveiros vê outra evolução grande, com as empresas perdendo o medo de se exporem. “No começo e durante muito tempo, a ideia era esconder o fato, ‘coisa feia se esconde’. Os comunicadores foram demonstrando ao longo do tempo que isso não funciona”, conta Viveiros. Para ele, quando você recebe uma denúncia, investiga e pune, isso tem que ser informado. Até porque não adianta tentar tratar o sol com a peneira, a informação vai correr e vai correr sem controle, ainda mais se o caso for grave ou envolver alguém do alto escalão da companhia. “A verdade sempre vai prevalecer e se ela é dita por quem está envolvido, você ganha consistência, agora, se ela é descoberta por terceiros, você perde o controle”, afirma o jornalista. “Não se pode encobrir crimes. Esse tipo de coisa vaza. Só tem uma solução: falar a verdade com absoluta transparência dentro dos parâmetros legais. Se a empresa montou uma área de Compliance porque entende que isso é parte da administração moderna, ela sabe que o Compliance bem feito vale mais do que qualquer sigilo”, emenda.
O sonho de consumo da maior parte dos profissionais de Compliance, certamente, é o de conseguir operar na empresa com esse grau de transparência sobre as medidas disciplinares aplicadas em cada caso. O mundo perfeito talvez aponte para isso, assumir que o mais importante é ser transparente e, se for o caso, bancar o litígio depois para fazer valer sua convicção. Mas, a realidade de quem gere a área de Compliance no dia a dia, traz entraves consideráveis a essa abertura total e educativa de informações. São questões de ordem trabalhista, jurídica, financeira e de imagem que levam as empresas em muitas situações a não divulgarem para os seus funcionários as medidas corretas que adotaram contra quem violou as políticas e códigos da companhia. “Eu posso desligar um funcionário pego em fraude ou que cometeu assédio moral e não preciso dar uma satisfação a ele sobre o porquê. Precisamos evoluir nisso, concordo, mas antes de tudo, queremos resolver a situação e adotar os controles necessários para que o fato não volte a ocorrer. É como aquele dito popular sobre ‘ser feliz ou ter razão’. Eu não quero ter de enfrentar um litígio arrastado, expondo em um tribunal documentos (confidenciais) da empresa relacionados à investigação…”, pontua Cruz, da Alubar.
Enquanto as empresas não encontram um equilíbrio, o mais próximo do ideal possível em termos de transparência na comunicação das consequências, talvez o melhor mesmo seja ser feliz.
A necessidade de acompanhamento
A qualidade das ferramentas disponibilizadas pelo canal de denúncia é essencial para gerenciar o grau de interação dos denunciantes, particularmente quando eles são anônimos. Saber se a pessoa tem acessado a plataforma em busca de respostas sobre o seu relato é um indicador importante para saber se a denúncias questão é realmente importante para quem o fez, se foi feita ao acaso, ou mesmo no intuito de prejudicar alguém. Isso levou a Alubar, de André Cruz, a trocar o fornecedor de serviços de canal de denúncias por uma nova plataforma, que permitisse o acompanhamento dessa interação. “Preciso saber se o denunciante acessou e acompanhou o desenrolar do caso, se interagiu, buscou uma resposta ou se ele fez uma denúncia bomba e nunca mais olhou”. Esse é um ponto muito relevante em relação à responsabilidade do canal.
Outro desafio para os gestores de Compliance é o de dar respostas a denúncias que não trazem evidências suficientes para seguir com a investigação, especialmente quando feitas de forma anônima. Ainda assim, mesmo com limitações de informação, sempre se busca tentar algo. Todos os relatos fomentarão ajustes e melhorias nos controles da empresa, mesmo quando não se confirma nada. “Partimos do princípio de que onde há fumaça, há fogo. Se a pessoa que fez o relato enxergou ali algo que deveria ser comunicado, significa que outras pessoas podem estar vendo daquela forma e que podemos estar falhando em algum ponto”, conta. André se lembra de uma denúncia sobre uso de atestados médicos falsos, sem indicações de nomes, departamentos ou quando ocorreu o fato. “Foi um relato de apenas uma frase: “Tem gente fraudando os atestados médicos”. Apesar de extremamente difícil, nos debruçamos sob o caso, investigamos e no final conseguimos provar que duas pessoas estavam utilizando atestados falsos.”, recorda o executivo. “Essas duas pessoas foram desligadas, mas até hoje não sabemos se quem fez o relato desejava apontar para aqueles que conseguimos provar que estavam fraudando”, completa.
Artigo publicado originalmente na edição 32 da Revista LEC.
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