A tragédia envolvendo o povo yanomami por conta da exploração do garimpo ilegal em terras indigenas, que veio a tona no inicio do ano, além de toda a violência humana e ambiental, jogou muitas luzes sobre um outro aspecto da atividade criminosa: como o ouro obtido de forma flagrantemente ilegal acabava sendo ‘lavado” e depois, colocado no mercado oficial. E aí ganhou destaque um agente do sistema financeiro que exerce papel central na cadeia do ouro: as DTVMs.
Sigla para distribuidora de títulos e valores mobiliários, as DTVMs nada mais são do que empresas responsáveis pela intermediação de ações, títulos de dívida, moedas estrangeiros e fundos de investimento entre outros ativos financeiros. Os maiores nomes do setor estão ligados às grandes instituições financeiras, que administram fundos de centenas de bilhões de reais (no caso do Banco do Brasil, de mais de um trilhão). Por conta da sua natureza, elas são reguladas, prioritariamente pelo Banco Central (BC), que tem na sua Circular nº 3978 o principal regramento para fins de prevenção à lavagem de dinheiro ao qual estão sujeitos as DTVMs.
Mas as DTVMs atuam com negócios de diferentes naturezas, o que dá a elas interface com outros reguladores, como a CVM ou, no caso específico das operações de compra de ouro oriundas de áreas de garimpo, a Agência Nacional de Mineração (ANM).
Publicada apenas em fevereiro deste ano, a resolução nº 129 da ANM veio disciplinar como mineradores de pedras e metais preciosos que atuam na atividade de extração mediante autorizações via Guia de Utilização, de Portaria de Lavra, de Manifesto de Mina e de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) devem agir em relação à prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo em seus negócios. O movimento é parte de um esforço do COAF, a unidade de inteligência financeira brasileira, para fazer avançar a regulamentação da lei de lavagem em setores que têm órgãos reguladores, mas ainda não estavam devidamente regulamentados.
Em larga medida, a resolução da ANM emula a circular do BC, ao determinar como procedimentos de controle mínimos a serem realizados pelos produtores a diligência dos clientes e demais envolvidos nas operações de intermediação de pedras e minerais preciosos, a identificação de pessoas politicamente expostas (PEPs) envolvidas nas operações, consultas a listas restritivas, além da manutenção do registro de clientes e operações e do devido monitoramento, seleção e análise de operações e situações atípicas ou suspeitas com as devidas comunicações ao COAF. Os processos de “Conheça o seu cliente” (KYC) devem ser estendidos aos colaboradores de modo geral e também aos cooperados e parceiros do detentor de PLG. Além disso, as operações de um mesmo cliente no período de um mês, que envolvam o pagamento ou recebimento em espécie de valor igual ou superior a R$ 50 mil devem ser comunicadas ao COAF.
Entre as situações que configuram indícios de lavagem de dinheiro, de acordo com a portaria da ANM, estão operações realizadas em municípios localizados em regiões de extração mineral consideradas de alto risco de ilegalidade, aumentos substanciais no volume de operações sem causa aparente, resistência ao fornecimento de informação ou prestação de informação falsa ou de difícil verificação por parte de cliente ou demais envolvidos; tentativa de burlar controles e registros exigidos pela legislação de PLDFT mediante fracionamento das operações, recebimento em espécie, por meio de cheque emitido ao portador ou de terceiros e envolvimento de PEP.
Adicionalmente, os mineradores classificados como de médio ou grande portes – pessoas físicas ou jurídicas com faturamento anual superior à R$ 16.8 milhões -, precisam definir em política os papéis e responsabilidades em relação à PLDFT, a promoção de cultura organizacional e a contínua capacitação de funcionários sobre o tema, diretrizes para implementação de procedimentos e controles de KYC. O comprometimento formal da alta administração com a efetividade e a adequação da política, dos procedimentos e dos controles internos que versam sobre o tema também são exigências da nova regulação aos produtores.
A regulamentação da ANM não atinge diretamente os processos das DTVMs. A sua importância é a de estabelecer os mecanismos de PLDFT para quem está no processo de extração do ouro, ou seja tudo o que acontece antes dele chegar até a DTVMs para ser convertido em ativo financeiro, ou mesmo para a sua negociação como mercadoria, para uso industrial, por exemplo, algo que está totalmente fora da alçada do Banco Central. “O ouro é um dos poucos bens físicos que podem ter duas naturezas jurídicas, a mesma barra pode ser ativo financeiro e pode ser metal”, diz Yuri Sahione, sócio do escritório Cescon Barrieu nas práticas de Compliance, Penal e Gerenciamento de Crises. No caso do ouro como ativo financeiro, o dono de um direito minerário, seja uma mineradora ou um garimpeiro, vai lavrar o ouro, fazer o mínimo beneficiamento e vender para uma DTVM, que, via de regra, irá mandar esse ouro para uma fundição transformá-lo em barras e deposita-lo em um banco autorizado a fazer a custódia. “A ANM só regula o produtor, mas isso é fundamental, justamente, porque conecta as duas pontas da cadeia de produção”, explica o sócio do Cescon Barrieu.
Trata-se de um processo novo para quem está acostumado a outra dinâmica de operações, sem quase nenhum controle de Compliance. O garimpo, ou mesmo pequenas mineradoras costumam ser pouco organizado em termos de estrutura administrativa. A regulamentação vai exigir que esses donos dos direitos minerários passem a ter esse tipo de cuidado. Além disso, o garimpo tem uma particularidade: em alguma medida, ele é equivalente a uma unidade de agricultura familiar. Na legislação, portanto, o garimpo se diferencia da mineração por estar limitada a extração, ao menos em tese, de um pequeno volume e com baixo impacto ambiental.