O Compliance abraçou a causa da D&I como poucas áreas na empresa o fizeram. Mas, olhando para o que acontece dentro dos departamentos, a distância entre o discurso e a prática é grande
Profissionais de Compliance gostam de dizer que a área deve servir de exemplo para toda a empresa, como uma vitrine de conduta ética. “Por sua natureza, a área de Compliance desempenha um papel crucial na promoção da ética, transparência e responsabilidade dentro das empresas, e isso inclui a responsabilidade de promover a diversidade e a inclusão”, acredita Paulo Roberto de Menezes Vilhena, gerente Jurídico e de Governança Corporativa da SAE Towers, fabricante de torres para transmissão de energia. No caso da agenda de diversidade e inclusão, não se pode dizer que hoje o Compliance seja essa vitrine, em que pese o fato, extremamente importante, de as mulheres terem superado os homens na base da pesquisa. “A área de Compliance tem a responsabilidade de liderar pelo exemplo, mas a paleta de diversidade nas equipes ainda é restrita”, lembra Camila Silvestre de Melo, Diretora de Auditoria, GRC, E&C da varejista GPA.
As discussões mais sérias nos altos escalões corporativos em relação à agenda de D & I são relativamente novas. Mas essa agenda explodiu com a pressão exercida por movimentos da sociedade civil organizada – da qual o Black Live Matters é o mais conhecido –, após o brutal assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio de 2020. O fato trágico jogou todos os holofotes, ao mesmo tempo, para o assunto, em especial à questão da relação das empresas norte-americanas com a população negra. Isso as obrigou a sair do armário para tomar posições públicas de apoio à comunidade negra e sua inserção nas empresas em um contexto mais amplo.
Estimativas de uma grande indústria de beleza apontam que, até 2040, dois terços da população mundial devem ter a pele rica em melanina (o que engloba, além das pessoas negras, grandes populações na Índia e no Sudeste asiático, por exemplo). A necessidade de atender a essa população para dar conta do seu próprio crescimento futuro tornou esse assunto uma pauta de negócios para muitas grandes multinacionais da área de bens de consumo. Isso tem feito com que elas passem a usar mais pessoas negras em sua comunicação, alardear suas políticas de diversidade, adequar produtos à fisiologia ou à cultura e aos gostos desse público. Mas essa inserção apenas na seara do consumo deixou de ser suficiente. As empresas estão sendo pressionadas a trazer a D&I para dentro de casa. Em um país como o Brasil, essa questão é ainda mais crítica, e também mais complexa.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A frase célebre de Joaquim Nabuco no livro Minha Formação, no final do século XIX, segue lamentavelmente real e atual. “Acredito que a agenda de diversidade e inclusão ainda seja uma questão incipiente nas organizações brasileiras. Embora seja um assunto bastante debatido em Compliance e nas mídias em geral, ações concretas e avanços significativos nos números que demonstram mais igualdade são ainda uma meta a ser alcançada”, reconhece Roberta Guasti Porto, gerente de Auditoria e Compliance da Fundação Renova, de Minas Gerais.
“Sou uma profissional de Compliance e mulher negra. Na maior parte das organizações em que trabalhei, a única negra era eu. Em um local o desconforto foi tão grande que não conseguia entender se eu tinha sido contratada por ser boa, ou por cota… E, sim, entendo que não estamos dando bons exemplos em termos de diversidade de inclusão”. O depoimento acima é de Luana Alves Candida, Gerente de Riscos e Compliance da Bezz, uma fintech que atua na concessão de crédito direto para o mercado condominial. Luana é uma das pouquíssimas pessoas negras a figurar entre as lideranças da área no Guia de Profissionais do Compliance ON TOP 2024.
Aqui no Brasil, as áreas de Compliance corporativo, institucionalmente, abraçaram fortemente a agenda de D&I, mesmo que, em muitas empresas, já existam cadeiras dedicadas exclusivamente a essa agenda. Afinal, não se pode falar em integridade em um País de maioria formada por pessoas negras sem que essas mesmas pessoas tenham um mínimo de representação em posições com algum poder de decisão nas empresas. De acordo com a pesquisa do Compliance ON TOP 2024, 47,4% dos respondentes que atuam nas empresas afirmam que o Compliance está atuando ativamente em relação a essa agenda, ainda que não a esteja liderando (apenas 6,8% das lideranças de Compliance dizem que é a área quem lidera a agenda de D&I nas empresas). Já 36,2% dizem que a área apoia essa agenda apenas quando é demandada, numa posição mais passiva em relação ao tema.
Agora, se em relação à diversidade e à inclusão como causa, o apoio do Compliance é forte, ao olharmos o exemplo dentro dos próprios departamentos, sua efetividade é bastante limitada. É verdade que parte disso é uma questão institucional e estrutural do Brasil, com reflexos em todo o ambiente corporativo. Mas para quem se quer como exemplo e vitrine de conduta para a empresa, é de se esperar que as áreas de Compliance tenham a capacidade de fazer mais do que tem feito em relação à D&I dentro das próprias áreas. “Algumas empresas e fornecedores de serviços de Compliance têm tomado iniciativas para promover a diversidade, como fomentar programas de inclusão e parcerias com instituições focadas na capacitação de grupos marginalizados, e implementar políticas de contratação mais inclusivas. Contudo, essas iniciativas ainda são exceções e não a regra”, lamenta Paulo Roberto, da SAE Towers.
“O Brasil como um todo ainda precisa evoluir nessa agenda e a área de Compliance precisa ter um papel mais ativo em relação a ela. Não basta cobrar a agenda, é preciso dar o exemplo“, concorda Allexandre Lugão, Gerente de Compliance, Investigações e Auditoria Interna da gestora de recursos Pátria Investimentos. “Já que não existe uma ‘faculdade de Compliance’, porque não começar a formar pessoas de grupos minorizados para atuar na área? Fala-se sempre sobre ter profissionais preparados, então estamos no momento de formar novos profissionais, garantindo a equidade de oportunidades”, emenda o executivo da firma de investimentos.
Na mesma linha, Thiago Jose Peixoto Athayde, diretor de Auditoria e Compliance da empresa de tecnologia VTEX, vê como parte da jornada das lideranças da área ajudar os jovens das minorias a terem acesso ao conhecimento e a oportunidades de ascender na carreira. “No Compliance da VTEX, conseguimos alcançar 50% de pessoas de grupos minoritários, mas somente uma delas em posição de liderança. A jornada é longa, mas produtiva e cheia de desafios”, pontua o executivo.
O quadro exposto por Thiago no Compliance da VTEX é ilustra bem a realidade atual, na qual os dados apontam para uma presença considerável de pessoas negras nos departamentos, mas pouquíssimos com alguma visibilidade por ocupar uma posição de maior relevância. Considerando apenas os respondentes que lideram a área em empresas que dizem contar com cinco ou mais pessoas na equipe de Compliance, 49,7% disseram que sua equipe conta com pelo menos uma pessoa negra. Considerando as respostas de todos os profissionais, independentemente do tamanho da equipe da área, são 35,5% os que afirmam contar com um negro ou uma negra no time de Compliance. Nas consultorias e nos escritórios de advocacia, os números não fogem muito desse percentual, o que faz com que, na soma de todos os segmentos, a presença de pessoas negras atuando com Compliance seja de 35,1%, 3,2 pontos percentuais a menos do que na pesquisa do ano passado. A queda, em certa medida, reflete o aumento na participação de equipes de Compliance menores (com uma, duas ou três pessoas), nas quais a promoção da diversidade tende a ser mais difícil.
A mesma queda foi observada em relação a outros grupos socialmente marginalizados, caso da comunidade LGBTQIA+, que viu sua participação cair de 33% para 31,4%; e das pessoas com deficiência, cuja participação baixou de 18,2%, em 2023, para 15,3%, em 2024. Da mesma forma, a presença desses grupos é bem mais elevada nas equipes de Compliance com cinco ou mais profissionais. No caso de pessoas da comunidade LGBTQIA+, a participação é de 43,8%, enquanto as pessoas com deficiência estão presentes no time de 23,5% dos respondentes que atuam nas companhias com departamentos maiores.
Melhorar o ambiente, tornando-o mais favorável à inclusão, passa também por trazer para o dia a dia algo bastante comentado nos dias de hoje, mas nem sempre praticado: a escuta ativa. Entender a realidade de pessoas de grupos tradicionalmente excluídos é um aspecto básico para que as políticas destinadas à promoção da diversidade e da inclusão sejam efetivas. Com mais recursos e estrutura, além de uma maior pressão para apresentar resultados coerente com seu discurso de D&I, hoje, as empresas maiores tendem a dar mais atenção às questões importantes para favorecer a inclusão. E, para isso, é preciso escutar o que essas pessoas têm a dizer. No SEBRAE-SP, por exemplo, instituição de fomento ao empreendedorismo, são feitas pesquisas internas com os colaboradores que possuem algum tipo de deficiência, para entender suas necessidades e melhorar a experiência deles no dia a dia. Camila Arná Holzer, Compliance Officer da instituição, diz que, nessa pesquisa, descobriu-se que a maior parte dos deficientes visuais não sabia ler braile. “A partir daí, buscamos uma ferramenta que se adequasse melhor à necessidade desse público”, conta. Sem essa escuta, não seria considerada a possibilidade de se investir tempo e recurso para oferecer uma solução que, na prática, só funcionaria aos olhos de quem vê, e não do público ao qual deveria se destinar.
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Artigo publicado originalmente no Anuário Compliance ON TOP 2024 com o título “O exemplo ainda não está dado”.
Imagem: Canva