A adoção do conceito de Cultura Justa pode representar uma evolução natural para as áreas de Compliance
Se existe algo líquido e certo nessa vida é a de que no decorrer dela iremos cometer alguns erros. Na verdade, muitos erros. Errar é parte inerente ao aprendizado e fundamental para os processos de criação e inovação, demandas cada vez mais presentes no ambiente corporativo. Por isso, é importante que as empresas possam entender e tratar o erro não apenas da perspectiva do ato consumado em si, mas sob um olhar mais amplo e que pode ter, inclusive, o errante como uma segunda vítima.
O mesmo vale para as consequências, as medidas disciplinares, que as companhias aplicam a quem erra. Claro que quando o erro é intencional – uma violação às regras feita de caso pensado – não existe muito que se discutir em relação às consequências. Afinal, o profissional agiu com dolo e precisa ser punido e arcar com as consequências legais do seu ato. Mas, esse não é o caso da gigantesca maioria dos erros cometidos nas empresas, inclusive das violações de Compliance. E, mesmo em casos dolosos, é preciso entender se aquela violação não foi “incentivada” por falhas ou pela inexistência de processos adequados e capazes de coibi-la.
A punição pura e simples, via de regra, pode até funcionar no curto prazo, inclusive ao estabelecer uma referência factual, para que outros funcionários não cometam o mesmo erro (cabeças de inimigos do rei espetadas em lanças, embora seja uma imagem muito exagerada, serve como uma boa ilustração). Isso pode chamar a atenção dos funcionários e deixá-los temerosos e pressionados para não cometer aquele ou outro erro, sabendo do destino de quem erra naquela companhia. Mas, apenas a punição não costuma ser capaz, sozinha, de mudar a forma como as coisas são feitas nas empresas.
Num ambiente policialesco que inflige o medo, os funcionários tendem a não reportar erros que cometeram, identificaram ou podem ter visto acontecer. E, isso é um grande problema para a governança das empresas por vários motivos. Em muitas situações, esse medo pode levar o funcionário, inclusive, a tentar esconder algum deslize cometido – ainda que pequeno e não intencional –, levando a uma situação que pode descambar num problema bem mais grave e, nesse caso, intencional. “Quando você está em um ambiente que só pune, as pessoas não querem relatar os erros por medo de que isso se volte contra ela ou que possa prejudicar alguém”, conta Gustavo Lucena, sócio da área de Risk Advisory da Deloitte. Sentindo-se inseguros, o número de denúncias, reports e alertas feitos por colaboradores aos gestores, ou mesmo no canal de denúncias, tende a ser menor. E, nesse caso, a oportunidade para que os erros e falhas sejam conhecidos caem na mesma proporção. “Por isso, muitos relatos acabam chegando na forma de boatos, fofocas que tratam muito de supostos erros de conduta, mas que pouco contribuem para a melhoria dos processos”, emenda o sócio da Deloitte. Ao simplesmente punir qualquer erro sem olhar para o que o gerou, as empresas perdem a oportunidade de entender que a falha pode estar mais nos seus processos (ou na falta de comunicação deles) e menos no funcionário que errou.
Erro não é igual a dolo
Todo e qualquer profissional está sujeito a erros. Isso vale tanto para o estagiário ainda em processo de aprendizagem, como para profissionais experientes que ocupam o topo do mundo corporativo e, todos os dias, têm de tomar decisões que expõem suas empresas e eles mesmos a diferentes níveis de riscos. Erros podem ser gerados por diferentes motivos – da falta de conhecimento sobre um determinado processo, pela falta de informações adequadas para a tomada de uma decisão, ou até pela pessoa estar numa função para a qual não tinha todas as competências e habilidades necessárias.
A Cultura Justa, modelo de governança que tem como um dos seus princípios o fato de que nem todos os erros ou violações de conduta são fruto de má intenção, busca estabelecer um ambiente no qual o relato de erros e outros eventos adversos é favorecido e incentivado. Com a sua adoção, entre outras coisas, busca-se a criação de um círculo virtuoso, no qual os funcionários se sentem impelidos a reportar erros e falhas de processos nas diferentes áreas da empresa, que assim, terá condição de aperfeiçoá-los, evitando que por conta dessas falhas, erros não intencionais sejam cometidos e que as brechas para a prática de erros intencionais sejam diminuídas.
Trata-se de um modelo mais comum na área operacional de setores como o hospitalar e o da aviação, nos quais o impacto de qualquer erro pode ser literalmente fatal. “A questão da Cultura Justa é bem estabelecida quando você lida com processos clínicos, experiência do paciente e evento de risco”, diz Vivian Sueiro, Compliance Officer da AACD, instituição filantrópica que atua na área hospitalar. A executiva lembra que no início dos anos 2000, a culpabilização das pessoas em relação à avaliação de eventos adversos estava em alta. Depois, o cenário foi para o outro extremo. Como o avião não costuma cair por um único motivo, muitas vezes, não se apontava o responsável ou os responsáveis pelo problema, uma vez que o cometimento do erro era apresentado de forma um tanto quanto difusa. “A Cultura Justa vem como um ponto de equilíbrio entre esses dois extremos. Você vai falar de prestação de contas e separar o que é um comportamento imperito, displicente em relação ao erro do que é um erro não intencional”, reforça Vivian.
Não quer dizer que os erros não intencionais devam ser isentos de gerar consequências para quem os cometeu, longe disso. A Cultura Justa trata da responsabilidade sem punibilizar, porque antes, é preciso entender tudo o que aconteceu para que aquele erro acontecesse. Por isso, é importante que esse modelo de governança não sirva de pretexto para que não se aponte, ou mesmo que se punam erros cometidos, sob um uso errado de que quem errou é sempre uma segunda vítima. É importante inclusive ter clareza sobre quais tipos de erros – ainda que perpetrados de forma não intencional – são considerados muito graves e que demandam consequências igualmente graves por parte da empresa para com o funcionário.
A Cultura Justa e o Compliance
Relativamente novo aqui no Brasil, o modelo da Cultura Justa começa a avançar de áreas operacionais mais específicas e passa a permear a gestão corporativa das empresas de setores nos quais o modelo já é empregado. Isso passa pela área de Compliance e exige uma mudança de abordagem por parte dos profissionais da área, uma vez que a Cultura Justa traz aspectos que, na prática, conflitam com uma visão mais comum de Compliance.
Por mais que os profissionais da área adorem dizer que Compliance não é polícia, na prática, a visão de muitos deles ainda é sim muito orientada para uma abordagem mais policialesca, de moralismo e punitivismo. Em geral, o Compliance Officer tende a partir da premissa de que uma vez que o erro foi cometido, existe um culpado. Esse objetivo acaba por nortear o processo de investigação, por exemplo, que tende a olhar mais para quem errou (em geral, partindo do princípio de que houve dolo) e menos para o contexto no qual o erro foi gerado. No afã de mandar uma mensagem inequívoca de que desvios de conduta de qualquer natureza não serão tolerados, as empresas acabam se precipitando e tomando decisões desproporcionais quando se olha para os casos sob um olhar mais amplo. “Como falta método para interpretar as denúncias a primeira reação é essa: mande embora”, pontua Lucena, da Deloitte, esclarecendo que a Cultura Justa traz os métodos de interpretação das denúncias para o jogo. “Quando olhamos pela lente da Cultura Justa a premissa, em geral, é a de olhar para o erro, se aprofundar e investigar se aconteceu um comportamento inseguro. A lente do Compliance é o contrário, ele primeiro vai avaliar se existe a culpa, para só depois descartar isso”, corrobora Vivian, da AACD.
A abordagem menos punitivista da Cultura Justa, é importante inclusive para evitar que as empresas tenham que demitir funcionários competentes e sem históricos de falhas de conduta, por pequenos erros ou desvios, cometidos muitas vezes de forma inocente, sem dolo. Na Cultura Justa, parte-se do início para o fim. Ou seja: o que aconteceu para aquele erro ter acontecido e o entendimento de todo o contexto para então avaliar a atuação do funcionário. “Quando o funcionário tem a atitude de assumir o risco, num comportamento imprudente, aí você está numa questão de accountability, de responsabilidade da pessoa que assumiu aquele risco mesmo sabendo da existência de uma política clara de que ela não poderia tê-lo feito daquele modo”, conta Vivian Sueiro. Mas, muito dos erros são decorrentes de um problema básico, embora ainda bastante comum nas empresas brasileiras: a baixa qualidade dos processos.
Redefinindo os papéis
“O meu maior trabalho é encontrar erros, falhas nos processos e não punir pessoas”, explica Vanessa Torres, gerente de Compliance do Hospital Albert Einstein, um dos mais renomados do País. Para ela, quem erra precisa aprender enquanto quem viola precisa ser punido. Como a estrutura de Compliance do hospital é relativamente nova – foi estabelecida há cinco anos –, ela já nasceu tendo como premissa o modelo de Cultura Justa, que já estava incorporado à gestão do hospital.
A Cultura Justa muda também a forma como as próprias denúncias recebidas pelo canal devem ser encaradas e tratadas. Sob esse modelo, o canal de denúncias é, antes de tudo, uma fonte de informação para a melhoria de processos. E isso é fundamental para mudar a percepção das pessoas sobre a importância de elas reportarem os erros. “Quantas denúncias resultaram em novos treinamentos e melhorias de sistemas?”, questiona o sócio da Deloitte. Para ele, ao trazer esse approach, começa a ficar claro para o público interno de que o canal é de fato feito para gerar melhorias. Por isso, é importante gerar mensagens positivas de que os relatos melhoram o ambiente e a cultura da empresa, e, também, recompensar quem faz os relatos de erros que acabam gerando melhorias de processos. Pode ser com um dia de folga, ou mesmo com um reconhecimento público. O importante é que as pessoas compreendam o valor dos relatos e, mais ainda, que não se trata de uma caça às bruxas.
Na prática, é comum os profissionais de Compliance reclamarem de que a maior parte das denúncias recebidas não são “efetivas”, sem se dar conta de que garimpando nessa montanha de relatos, é possível encontrar muita coisa boa quando o material é tratado de forma efetiva. Especialmente porque a Cultura Justa estimula a comunicação dos erros e não só de desvios de conduta. E, sob essa perspectiva, quanto mais, melhor. “Quanto mais eu relato, mais eu tenho a possibilidade de transformação na empresa. Recebemos 1800 relatos, só 1% relacionado com condutas indevidas. Só que todas as outras foram importantes, porque ajudaram a melhorar processos, resultaram em investimentos, em treinamento e em contratações”, conta Gustavo Lucena, que exemplifica dizendo que enquanto no histórico de uma empresa que tem a Cultura Justa sobem mais de mil relatos, nas que não tem você vai ter duzentos relatos, principalmente questões relacionadas à conduta.
Erros iguais, consequências diferentes
Um ponto extremamente importante para os gestores de Compliance num ambiente de Cultura Justa é entender que erros equivalentes podem ter consequências bem diferentes, justamente por conta do contexto no qual eles foram perpetrados. E, isso implica uma estratégia de comunicação bastante específica, uma vez que também é lugar comum nas empresas dizer que o Compliance é igual para todos: do chão de fábrica ao presidente todos estão sujeitos às mesmas regras.
Do ponto de vista do senso comum da massa de funcionários, se as regras são iguais, os erros devem ser punidos de forma equivalente. Agora, imagine uma situação na qual por um erro parecido, um funcionário de nível médio é punido severamente e um diretor da mesma companhia não. Como explicar para os funcionários os motivos dessa decisão? “É preciso comunicar para as pessoas sobre os porquês de existirem consequências diferentes, justamente para que não exista a percepção de que alguém foi favorecido em função do seu cargo”, concorda Vivia Sueiro. Isso precisa ser feito na medida em que a Cultura Justa é implementada na empresa, que tem realizado pesquisas internas, a partir de benchmarks internacionais que trazem perguntas relacionadas às consequências do erro. Segundo a executiva, os índices de entendimento sobre o assunto vêm melhorando, mas ainda é preciso trabalhar mais para mudar a percepção das pessoas.
Para Vanessa, a Cultura Justa não anula, de forma alguma, a afirmação de que o Compliance na empresa é igual para todos. “O que podemos dizer é que a regra é igual para todos, mas que intencionalidades diferentes vão ter consequências diferentes”, afirma a gerente de Compliance do Einstein, que neste momento, está revisando o manual de medidas disciplinares da companhia para convertê-lo numa politica, de caráter mais institucional, que vai definir as medidas punitivas que podem ser aplicadas. Entre as definições que a nova política deve trazer, estão, por exemplo, a definição do que pode ser considerado um erro grave, aquele que mesmo não intencional, representa uma falta grave e que precisa ser punida como tal. A adoção dessa nova política deve fazer com que em 2020, a área de Compliance do Einstein esteja bastante engajada na comunicação e no treinamento dessas medidas, o que só vai reforçar o entendimento do modelo de Cultura Justa no que diz respeito a sua aplicação no Compliance entre os funcionários do hospital.
Na AACD, mesmo quando não existe uma consequência formal escrita em política, olha-se sempre para a jurisprudência interna da instituição, observando, por exemplo, as prerrogativas de quem cometeu o erro. “Por exemplo, olhamos se o risco foi assumido num nível que ele poderia ser assumido. Se o profissional no nível de cargo A tinha prerrogativa para assumir um risco e o de nível B não tinha. Isso faz toda a diferença na hora de entender a situação e aplicar as medidas disciplinares”, explica Vivian. Inclusive, muitas empresas já contam com modelos de árvore de decisão, que estabelecem procedimentos claros para a tomada de decisão, inclusive no que diz respeito ao nível hierárquico nos quais a decisão deve ser tomada. Na AACD as decisões sobre casos específicos dessa natureza são comunicados nas alçadas responsáveis e mais diretamente envolvidas com a situação, como o Jurídico, o RH e os comitês Bioética.
Humildade para assumir as falhas
Por fim, é preciso ter clareza de um aspecto importante: na Cultura Justa, todos, incluindo os profissionais de Compliance, devem ter a humildade para reconhecer que, eventualmente, os erros podem ter sido gerados por uma falha no seu processo. É importante que nesse caso em particular, a liderança da empresa apoie o processo deixando claro que o objetivo é perseguir as melhorias nos processos da companhia e não as pessoas. “Envolver a liderança e fazer com que elas assumam o papel de fazer o chamamento, para que se abram os escaninhos da empresa, implica em canais de comunicação melhores, não apenas o de denúncias, mas também a comunicação direta dos funcionários com os seus líderes”, explica Lucena. Caso contrário, os gestores podem, também por medo, não dar espaço para escutar e aplicar correções nas falhas de processos eventualmente identificadas, o que poderia ser encarado naquele ambiente como uma presunção de culpa que poderia levá-lo ao cadafalso. “Recentemente, o presidente do nosso Conselho reforçou o pedido, para que as recomendações de melhorias sugeridas em todos os casos que estão no Compliance estão sendo vistas, porque esse deve ser o resultado final: melhorar os processos e melhorar a governança como um todo”, finaliza Vivian, da AACD.
Publicado originalmente na revista LEC nº27, “Mais do que punir, é preciso entender o erro”.
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