Situações do dia a dia muitas vezes caem no lugar comum, mas acabam sendo um desafio enorme para o Compliance. Aparentemente pequenas, elas podem se converter em grandes problemas para as companhias.
As discussões sobre até onde o Compliance deve atuar são comuns entre os profissionais da área e dentro das empresas. Os desafios são inúmeros e os olhos, muitas vezes, acabam se voltando para os temas mais “grandiosos” e complexos do Compliance. Nisso, coisas teoricamente básicas, de dia a dia mesmo, acabam não recebendo tanta atenção da área. São situações recorrentes, rotineiras na operação, mas que podem gerar grandes dores de cabeça.
Sempre um ponto crítico, algumas companhias já têm muito clara a forma de os seus funcionários se relacionarem com agentes públicos. Em vários casos, sempre com alguém do Compliance por perto. Kevin Altit, sócio da área de Compliance do escritório Mattos Filho, acredita que as empresas que se adaptaram às novas realidades de mercado, sob o prisma “práticas de integridade”, certamente possuem políticas de relacionamentos com agentes públicos com a definição de procedimentos para os diferentes nichos de interlocutores. “Programas de Compliance não devem engessar os processos internos, por isso não é típico envolver times de Compliance nas atividades operacionais. No entanto, se bem concebidos, esses programas devem ser capazes de conscientizar, treinar e orientar a melhor forma conduzir os relacionamentos, sem neles intervir”, acredita.
De responsabilidade, sim!
Para Angelo Calori, sócio da empresa da consultoria e auditoria RSM Brasil, é de responsabilidade da equipe de Compliance essa relação, que ele chama de “relacionamento com reguladores”. Porém, com uma ressalva de que devem ser guardados os papéis e responsabilidades das linhas de defesa. “Isso significa dizer que a área de Compliance coordenará esse atendimento, mas é a área fiscalizada ou autuada a responsável por responder ao agente público”, diz o consultor, para quem cabe à coordenação do Compliance auxiliar não apenas na transparência e lisura do processo, mas também para que as respostas sejam entregues com a qualidade e dentro dos prazos necessários. Também é preciso lembrar que nem sempre o relacionamento com reguladores se dá apenas presencialmente, por isso, toda e qualquer demanda dos reguladores devem ser atendidas tendo como base o mesmo procedimento.
Para administrar o tema de forma eficiente, é possível estabelecer uma “agenda de obrigações”, que conterá todas as demandas periódicas e não periódicas dos reguladores para um controle mais seguro. Além disso, as demais áreas, responsáveis diretas pelos processos, devem ser treinadas e orientadas quanto à importância e cuidados na relação com os reguladores. “Além da qualidade e tempestividade nas respostas, a relação deve estar baseada em alto profissionalismo e em bases sempre republicanas, claro”, emenda Angelo.
Com experiência na área de Saúde, Alexandro Guirão, sócio e fundador do Guirão Advogados, atua como consultor de Compliance para algumas empresas importadoras e distribuidoras de produtos do setor. O advogado relata que a interação com agentes públicos e reguladores da área, como um agente da vigilância sanitária do município, por exemplo, normalmente é feita pelo setor regulatório, com o acompanhamento de um profissional deste setor. Mas, se é preciso fazer a verificação de alguma denúncia ou se existe risco da autuação, aí sim acompanhamento é feito pelo Jurídico ou pelo Compliance. “Existe uma política específica para interação com agentes públicos, treinamento específico para os que irão se relacionar com eles e acompanhamento das interações por relatórios. Quando necessário, o caso é levado ao Comitê de Integridade”, conta Guirão. Ele lembra que a maioria dessas empresas aderiu ao Acordo Setorial Ética Saúde (Autorregulação do mercado de saúde) e, portanto, as diretrizes para esses relacionamentos estão previstas nas Instruções Normativas do Instituto Ética Saúde e contempladas nas políticas, reforça.
Os funcionários responsáveis por conduzir o relacionamento com o agente público devem receber treinamento específico, algo que o programa de treinamento de Compliance deve prever. O intuito é que, de alguma maneira, esses funcionários estejam preparados para todas as situações que possam acontecer, como por exemplo, uma ocasião em que o agente público possa estar tentando demonstrar que quer algo a mais para poder conceder uma aprovação. “Em se tratando de relacionamento com o agente público no âmbito da Lei Anticorrupção, além de passar por um treinamento mais robusto e focado, os colaboradores que estiverem em funções suscetíveis a tais riscos, devem obrigatoriamente conduzir estes contatos sempre na presença de outro profissional da instituição, preferencialmente de Compliance ou Jurídico, mantendo a reunião sob agenda oficial e registrando as tratativas em ata a ser formalizada entre os envolvidos”, reforça Angelo, da RSM Brasil.
Na Cervejaria Ambev, que opera uma grande quantidade de unidades fabris por todo o Brasil, é inviável ter alguém da área Compliance sempre presente nos momentos de relacionamento com agentes públicos, por isso existe a preocupação constante de orientar da melhor forma possível todos os times sobre as regras de Compliance. “Os treinamentos gerais que realizamos cumprem papel fundamental na boa condução dessas situações e nos certificam que os funcionários estão preparados para esse tipo de ocasião. Em nossas capacitações, os colaboradores das fábricas têm amplo acesso a orientações de como agir no contato com agentes públicos e os tipos de informações que costumam ser solicitadas, além de outros pontos importantes”, explica Taissa Licatti, diretora de Compliance da Cervejaria Ambev. Os profissionais também são orientados a sempre entrar em contato com o Compliance se tiverem dúvidas ou qualquer tipo de desconforto em relação a alguma solicitação ou situação. “É essencial manter esse canal de contato direto sempre aberto, isso contribui para que eles se sintam ainda mais seguros em sua conduta”, emenda. Na fabricante de cerveja, os funcionários das lideranças e de cargos estratégicos das unidades regionais – responsáveis por conduzir o relacionamento com os agentes públicos – participam de treinamentos presenciais aplicados pelo time de Compliance. “Esse é um momento de capacitação e troca que a gente considera muito bacana, podemos orientar os funcionários das fábricas mais de perto e esclarecer suas dúvidas. Entre os temas explorados está ética no ambiente de trabalho, incluindo a discussão sobre situações, em que o agente pode dar a entender que deseja algo a mais para conceder uma aprovação. Nesse caso, os funcionários são instruídos a sempre rejeitar prontamente qualquer pedido de corrupção.”, reforça Taissa.
Segurando a tentação
Saber lidar com um agente público que talvez esteja disposto a exigir um “algo mais” pode ser mais simples do que parece caso o funcionário esteja bem treinado. Mas e quando a situação é exatamente ao contrário? Ou seja, no caso de o funcionário estar disposto a uma negociação direta com o fiscal por achar que esta seria a melhor solução numa situação em que o agente manda parar a fábrica por causa da falta de um documento.
Alexandre Guirão afirma que, especificamente no setor da saúde, existe um problema recorrente envolvendo o registro de produtos e a certificação de boas práticas de fabricação de fornecedores estrangeiros. “Isso é um gargalo absurdo da ANVISA (reguladora do mercado de medicamentos), que não consegue cumprir os prazos estabelecidos para fazer as verificações devidas”, explica Guirão. Nesse caso, segundo ele, muitas vezes a empresa judicializa a questão – é muito comum a impetração de mandados de segurança para obter os documentos quando a emissão está muito atrasada –, mas não se deve negociar qualquer solução ‘alternativa’ com os agentes”, conta o advogado, que trata dessas situações junto aos seus clientes com exemplos. “Quando ficamos sabendo de algum problema que ocorreu com a concorrência, por exemplo, usamos isso de forma ‘educativa’. Muitos escândalos recentes no setor da saúde foram divulgados na grande mídia, por isso temos material de sobra para demonstrar que não é uma boa solução ‘adiantar’ os processos com suborno ou coisa parecida”, compara.
Na Ambev, uma expressão recorrente, escrita no princípio número 10 da sua cultura organizacional, define bem esse cuidado: “na Cervejaria Ambev, nós não pegamos atalhos – e nada justifica que isso ocorra”. “Preferimos parar uma fábrica ou uma linha de produção, por exemplo, do que conduzir algo de maneira errada”, garante Taissa. Essa mensagem é reforçada constantemente pela alta liderança, tanto em recados quanto nos treinamentos voltados a todos os times, conta a diretora de Compliance. “Quem entra na Ambev já entende logo de cara que essa é uma premissa muito forte e os times das fábricas, consequentemente, têm muito claro esse conceito, que é trabalhado com mais intensidade nos treinamentos de Compliance”, reforça.
Separando as coisas
Outro ponto que também carece de discussão sobre a participação do Compliance em determinadas ações está na relação comercial da empresa com distribuidores e lojistas. Kevin Altit, do Mattos Filho, observa que a história do Compliance entre partes privadas está sendo escrita num capítulo diferente, e evolui mais lentamente. “Enquanto as due diligences de fornecedores e parceiros de negócios caminham rapidamente, me parece que os relacionamentos, em si, ainda não são prioridade. Em geral, as políticas de presentes e entretenimento não diferenciam público e privado”, coloca o executivo. A troca de presentes e entretenimento é um assunto bem delicado no mundo corporativo e deve ser uma preocupação tanto no relacionamento com o agente público quanto nas relações entre empresas privadas. Na Ambev, a orientação geral é que os funcionários não podem aceitar presentes de terceiros, e isso envolve clientes, fornecedores e prestadores de serviços. Angelo recorda que este tema deve ser amplamente tratado no Código de Conduta da instituição e foco de constante treinamento de todos os funcionários. “Antes mesmo de se pensar em estabelecer um valor máximo para essa troca, a orientação que o Compliance deve dar a todos é que a preocupação consiste originalmente na intenção desta troca, sendo o valor apenas uma consequência”, considera o executivo da RSM.
Já em relação às políticas comerciais praticadas, para Kevin, o foco do Compliance deve se ater a preservar a legalidade das ações, sob pena de prejudicar os negócios sociais. “Devem ser observadas, com mais foco, a legislação concorrencial e de contratação com agentes públicos”, acrescenta ele. “Os aspectos comerciais envolvidos na relação com nossos distribuidores e lojistas – que são os clientes do nosso negócio, além do consumidor comum – são guiados por orientações do time de Compliance, tanto sob a perspectiva anticorrupção quanto sob a perspectiva concorrencial”, diz Taissa, da Ambev. A empresa tem um programa de Compliance bastante robusto e o time de Compliance ressalta todos os programas de mercado lançados pelo time comercial, além de reforçar sempre, tanto com o time interno quanto com os parceiros e clientes, que a cervejaria não admite o compartilhamento de informações confidenciais dos concorrentes, por exemplo.
Publicado originalmente na revista LEC nº27, “Sem enroscar no corriqueiro”.
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