Alta performance e a obsessão por dados
Estamos em um momento fortemente marcado por exigência de performance, uso intensivo de dados e automação acelerada de processos. Ferramentas digitais, inteligência artificial e dashboards em tempo real já fazem parte da rotina de muitas empresas. No compliance, esse movimento se reflete na busca constante por indicadores, evidências documentadas e sistemas integrados que comprovem a efetividade do programa.
Essa lógica, no entanto, traz uma questão importante: a de desvalorizar aquilo que não cabe na planilha. Ou, pior, tratar como secundário o que não pode ser automatizado, quantificado ou transformado em KPI (indicador de desempenho).
A entrega que não aparece no gráfico
Grande parte do que sustenta um programa de compliance no dia a dia está fora dos relatórios. É o apoio a uma liderança em uma decisão difícil. É a escuta atenta que identifica um desalinhamento antes que vire crise. É a leitura de contexto que evita um movimento precipitado. É a conversa que ninguém queria ter, mas que precisava acontecer.
Essas entregas exigem proximidade, preparo técnico e sensibilidade. Não geram alertas no sistema nem ocupam espaço nos relatórios de desempenho, mas fazem diferença real no comportamento da organização e na forma como riscos são gerenciados.
E, acima de tudo, envolvem pessoas. O compliance vive e também se sustenta na cultura organizacional e nas relações interpessoais. Não há programa efetivo sem diálogo, confiança e capacidade de influência. Não basta ter regra: é preciso construir adesão.
Formação crítica, visão estratégica e cultura como alicerce
Para que o compliance avance como função estratégica, é preciso investir na formação das pessoas. Não basta capacitar para seguir fluxos ou preencher relatórios. É essencial desenvolver uma base conceitual sólida, visão crítica, compreensão regulatória e capacidade de análise estratégica.
Quando o compliance se transforma em listas de verificação e métricas operacionais, deixamos de ter o olhar sistêmico. E, com isso, perde-se também a capacidade de ler o ambiente organizacional, identificar riscos que nascem das relações humanas e orientar comportamentos de forma efetiva.
Para que isso aconteça, é essencial que a organização promova um ambiente de confiança e segurança psicológica. Sem ela, não há espaço para dúvidas, questionamentos ou alertas e o compliance acaba isolado, mesmo quando formalmente estruturado.
Profissionais que operam ferramentas sem interpretar contexto, dificilmente contribuem para decisões relevantes. E programas que não integram a cultura e nem se conectam com as dinâmicas reais da organização, raramente se sustentam.
O desafio do reconhecimento
O problema é que essas entregas, justamente por não serem visíveis ou fáceis de mensurar, correm o risco de serem subestimadas. Em estruturas que valorizam apenas o que é rastreável e comparável, tudo que foge à métrica tende a parecer intangível e, na verdade, pode ser o que irá sustentar a maturidade do programa de compliance.
Um exemplo frequente está nos treinamentos: será que, quando 100% da equipe participou de uma ação de capacitação, houve realmente entendimento? A linguagem foi adequada ao público? O modelo foi acessível? Houve alguma forma de medir a assimilação real do conteúdo?
Participação não é sinônimo de aprendizado. E sem aprendizado, não há mudança de comportamento. O número final pode parecer satisfatório no relatório, mas sem análise crítica, temos o risco de validar um esforço superficial e perder a chance de impacto real.
Cabe também à liderança de compliance, qualificar essas ações:
- Documentar, sempre que possível.
- Dar contexto.
- Compartilhar reflexões com base em fatos concretos.
- Criar uma cultura interna que reconheça a importância de decisões bem embasadas, mesmo que nem todas elas gerem “indicadores bonitos”.
Equilíbrio entre estrutura e inteligência contextual
Programas estão em constante desenvolvimento e podem combinar automação e análise, mas não sem precisar abrir mão da inteligência humana. A capacidade de interpretar ambientes, dialogar com a liderança, construir relações de confiança e antecipar riscos que ainda não se materializaram é o que transforma o compliance em ativo estratégico.
Sim, os indicadores continuam sendo importantes e devem existir. Eles ajudam a organizar, monitorar e comunicar a atuação da área. Mas não podem ser o único critério de valor. O impacto que o compliance gera na prática, mesmo quando não se traduz imediatamente em número, também precisa ser reconhecido. São essas entregas não quantificáveis, mas altamente relevantes, que sustentam o programa ao longo do tempo, trazem inteligência competitiva, orientam a redefinição de caminhos e fortalecem a capacidade de análise setorial e estratégica da organização.
Compliance não se resume ao que pode ser medido. Ele acontece também e, principalmente, nas decisões cotidianas, nos alertas antecipados, nas conversas difíceis e nas orientações que moldam comportamentos.
Desenvolver profissionais com visão do todo, capacidade crítica, sensibilidade para relações humanas e leitura estratégica do contexto é o que permite que o compliance deixe de ser apenas mais uma etapa no processo e se torne parte ativa das decisões que definem o futuro da organização.
Se tudo isso não estiver na planilha, tudo bem. Ainda assim, pode fazer toda a diferença.
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