Os últimos anos foram de avanços legislativos significativos no reconhecimento da importância dos programas de integridade para a construção de um ambiente de mercado justo e íntegro. Exemplo notório é a introdução na nova lei de licitações de incentivos para a implementação de programas de compliance, cujos efeitos práticos ainda hão de ser observados.
Para o ano de 2024, outra novidade ainda pouco falada se apresentou em um cenário diverso, mas também com impactos significativos. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) federal, a Lei nº 14.791/2023, estabeleceu em seu art. 130, § 14, inovadoras orientações para as agências financeiras oficiais de fomento (AFOFs) de, em empréstimos superiores a R$ 30 milhões, exigirem que os tomadores “tenham políticas de integridade e conformidade estabelecidas e devidamente estabelecidas.”.
A relevância desse novo incentivo para os programas de integridade está refletida, sobretudo, no espaço cada vez maior das AFOFs para o financiamento da atividade empresarial no país, em especial no nível federal, o que resta claro na simples menção a algumas delas: Banco do Brasil S.A.; Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); Caixa Econômica Federal; Banco da Amazônia S.A; etc.
Importa destacar que as AFOFs são instituições voltadas a realizar “políticas publicas de investimento e desenvolvimento, cujo objetivo maior é a propagação do bem-estar social, contribuindo para o desenvolvimento social e econômico dos estados”. Seus recursos derivam do Tesouro Nacional, de fontes próprias ou de “outros meios” (como em captações junto a agentes financeiros, por exemplo).
O fornecimento de recursos públicos às AFOFs é acompanhado de diretrizes, as chamadas “políticas de aplicação de recursos”, especificadas na LDO por força do art. 165, § 2º, da CF. Tais políticas dizem respeito “aos objetivos concretos que o governo espera alcançar com a aplicação das linhas de fomento”.
Ricardo Lobo Torres explica que a LDO é uma lei de natureza formal, que dá “simples orientação ou sinalização” para a elaboração do orçamento, sem criar direitos subjetivos a terceiros. No que concerne às políticas de aplicação das AFOFs, portanto, não cabe à LDO “estabelecer regra instrumentais para as aplicações” dessas agências, o que compete a lei ordinária e a normativos de cada instituição.
Assim, a inclusão de “políticas de integridade e conformidade” dentre as políticas de aplicação das AFOFs evidencia a intenção do governo federal de cada vez mais valorizar, por meio de financiamentos públicos, empresas que adotem essas boas práticas, o que também já vinha sendo demonstrado em outras iniciativas.
Em 02/08/2023, a Controladoria-Geral da União (CGU) firmou com o BNDES o Acordo de Cooperação Técnica nº 29/2023, que prevê colaboração para “definir e elaborar os critérios de implementação e avaliação dos programas de integridade de empresas privadas nacionais de grande porte interessadas em obter financiamento do BNDES”. Na ocasião da assinatura, o atual Presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, explicou que “Todas as empresas com mais de R$ 300 milhões de faturamento terão que ter compliance e nós vamos exigir isso como parte da nossa política de crédito”.
A orientação da LDO, como visto acima, apesar de utilizar outro critério de avaliação (o montante do empréstimo, ao invés do tamanho da empresa), parece ampliar o escopo das exigências pretendidas pela CGU, ao alcançar qualquer financiamento em valor superior a R$ 30 milhões. Ora, apesar de louvável a iniciativa do legislador, são muitas as dúvidas sobre como serão operacionalizadas essas “políticas de integridade e conformidade”, algumas das quais merecem ser destacadas.
Primeiro, indaga-se o que são essas políticas? Seria necessário implementar um programa de compliance robusto, com exigências equiparadas às do sistema da Lei nº 12.846/2013 e do Decreto nº 11.129/2022 no âmbito da CGU, ou apenas iniciativas de baixa complexidade de promoção da integridade? Ainda, qual o escopo dessas políticas, tratando-se apenas de medidas anticorrupção ou alcançando também outros aspectos da integridade empresarial (como, por exemplo, a prevenção ao assédio e à lavagem de dinheiro)?
Além disso, deve-se entender como se dará a avaliação dessas “políticas de integridade e conformidade”. Ou seja, a própria AFOF deverá desenvolver critérios de avaliação dos programas de compliance dos tomadores ou seguirá parâmetros já desenvolvidos por outros órgãos públicos? Ainda, haverá órgão especializado e independente nessas AFOFs para avaliar a regularidade das políticas do tomador?
Somente essas dúvidas iniciais já evidenciam a necessidade de esclarecimentos ulteriores sobre como essa política de aplicação seria verificada na prática, mesmo porque, meses após a vigência da Lei, ainda não parece haver divulgação junto às AFOFs de requisitos para financiamentos associados aos parâmetros propostos pela LDO.
Dessa forma, para evitar que o dispositivo caia no esquecimento ou haja a difusão de orientações contraditórias aos tomadores, alternativa interessante seria a aproximação das AFOFs com as iniciativas já em curso na CGU para a promoção da integridade em financiamentos públicos. Esse trabalho conjunto não só evitaria insegurança jurídica sobre os critérios adotados, mas aproveitaria a expertise da CGU para a promoção, de maneira efetiva e clara, de uma cultura de conformidade nesse novo cenário.