O avanço nas investigações internacionais por agências de diferentes nações traz a necessidade de os programas de Compliance globais darem conta de responder às exigências de um número muito maior de atores internacionais
Por décadas, os norte-americanos se comportaram como uma espécie de “xerifes do mundo”, ao menos quando o assunto é a corrupção internacional. Os procuradores do país têm o mandado para defender a aplicação das leis dos Estados Unidos mesmo fora de suas fronteiras quando há a aplicação do FCPA. Com isso, o alcance de uma legislação como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), estabelecida na década de 1970, deu aos americanos as condições para investigar a corrupção de agentes públicos de qualquer rincão do mundo por empresas e seus parceiros, independentemente da nacionalidade de qualquer uma das partes. Bastava estabelecer algum mísero vinculo do caso em questão com os Estados Unidos, o que pode ser configurado pela presença da empresa no mercado local, por uma ligação de um quarto de hotel em solo americano, ou que, de alguma forma, qualquer centavo ligado à operação tenha passado pelo sistema financeiro do país em algum momento. E isso tudo só no âmbito do Departamento de Justiça (DoJ), que processa crimes corporativos na esfera criminal. A SEC, reguladora do mercado de valores mobiliários de lá, tem a obrigação perante os investidores do país de investigar violações dessa natureza em qualquer empresa que esteja sob as suas regras, não importa em qual lugar do mundo a propina tenha sido paga.
De fato, por muito tempo, os americanos foram os únicos a bancar essas grandes investigações transnacionais. E o bancar aqui deve ser entendido tanto do ponto de vista Político (ao impor suas investigações contra empresas não-americanas, em território não-americano), quanto pelo aspecto do dinheiro mesmo. Investigações dessa natureza custam caro e demandam recursos humanos, operacionais e financeiros substanciais. As despesas relacionadas com uma investigação interna de corrupção internacional numa grande corporação facilmente superam as dezenas de milhões de dólares. Não são raros os casos nos quais os custos ultrapassam os US$ 100 milhões. Isso dá uma ideia do orçamento necessário para manter centenas de casos ativos no mundo inteiro, ainda que os custos relacionados com a investigação em si recaiam sobre as empresas.
Os enforcements constantes geraram um volume considerável de multas, que ao contrário do que acontece aqui no Brasil, são revertidas à própria operação do DoJ, servindo para aprimorar sua máquina de investigações. A consequência disso foi fazer do FCPA o “padrão ouro” em termos de leis anticorrupção no mundo inteiro, transformando-o na base para os programas de Compliance globais de companhias multinacionais ao redor do mundo.
Embora ainda seja a mais proeminente, no decorrer da última década uma série de leis anticorrupção com alcance internacional surgiram no horizonte. Junto com essas leis, os países aperfeiçoaram ou criaram agências dedicadas a investigar e a processar crimes dessa natureza. Agora, os Estados Unidos não são mais o único regulador a “tomar conta” desse tipo de caso. “Faz sentido migrar para algo menos centralizado, com regras menos ditadas pelos Estados Unidos. Acredito que isso vai acontecer mais até pela preocupação e a pressão que os países, principalmente os mais desenvolvidos, têm recebido de atores multilaterais e da própria sociedade para demonstrarem o seu compromisso e exercerem seu papel no combate à corrupção internacional”, explica Cynthia Catlett, vice-presidente da consultoria norte-americana de Riscos e Compliance, Charles River Associates.
Coincidentemente, essa profusão se deve muito a pressão de Washington no decorrer das últimas décadas para que outros países estabelecessem mecanismos legais para punir suas grandes multinacionais pela corrupção de agentes públicos no exterior. É sempre importante lembrar que até bem pouco tempo, muitos países europeus permitiam que pagamentos realizados a servidores estrangeiros fossem lançados nos balanços das companhias sem que isso configurasse qualquer problema.
Um dos atores por meio do qual os americanos buscaram pressionar esses países foi a OCDE, a organização para cooperação do desenvolvimento econômico. A Convenção da OCDE sobre o Combate ao Suborno de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, assinada por todos os membros da entidade (basicamente, os países desenvolvidos) e outras nações em desenvolvimento, caso do próprio Brasil, está em vigor desde 1999. “A OCDE assumiu um papel de liderança ao estimular os países a aprovar leis, fortalecer regulamentações e fortalecer suas capacidades de aplicação dessas leis para cumprir com a convenção”, explica a advogada Maria Gonzalez Calvet, sócia e co-líder da prática de Anticorrupção e Risco Internacional no escritório de Washington da banca norte-americana Ropes & Gray. Pouco tempo depois, em 2003, a ONU lançou a sua Convenção contra a Corrupção, que vigora desde 2005 e, até hoje, já foi assinada por 187 nações.
Aliada aos esforços das entidades multilaterais pela globalização nos esforços de combate a corrupção, os próprios agentes dos Estados Unidos treinaram seus pares de outras jurisdições. “Os norte-americanos ajudaram as agências e agentes estrangeiros sobre como processar esse tipo de conduta com base em suas próprias legislações locais”, lembra Judith Aron, sócia no escritório de Berlim (Alemanha) e co-head da prática de Compliance na Europa do britânico Dentons, maior banca de advocacia do mundo.
Antes uma lei, agora várias
Nesse novo cenário global, tendo que dar conta não mais de uma ou duas leis, mas sim de várias, os atuais programas e políticas globais de Compliance de grandes empresas multinacionais conseguem harmonizar os requisitos principais das legislações anticorrupção de diferentes países, particularmente daqueles mercados relevantes do ponto de vista econômico e político perante stakeholders de todo o mundo?
Em linhas gerais, a resposta mais comum é que sim.
O fato de muitos países terem estabelecido suas legislações anticorrupção a partir dos esforços da OCDE e da própria ONU, além de já terem no FCPA uma referência de sucesso, fez com que esses novos textos legais nascessem sobre bases comuns, particularmente no que diz respeito à corrupção de agentes públicos no exterior. “Na medida em que as obrigações de Compliance previstas na lei anticorrupção francesa de 2016, conhecida como Lei Sapin II, foram inspiradas pelos melhores padrões internacionais da área, sua implementação é compatível com os requisitos das principais leis anticorrupção, em particular com a convenção da OCDE”, diz a brasileira Izadora Zubek, chefe da área de Relações Internacionais da Agência Francesa Anticorrupção (AFA).
Os desafios mais visíveis de harmonização aparecem de forma mais proeminentes em outros aspectos, talvez mais afeitos a execução do programa do que a sua concepção em si. “A capacidade de fiscalização e a política (dos países) é onde realmente vemos algumas diferenças”, aponta Aron. Para ela, a maioria das variações está relacionada a quem a lei alcança, no seu escopo jurisdicional e nas penalidades, na exigência de provar a “intenção corrupta” ou no ônus da prova, além dos mecanismos de defesa e nos fatores atenuantes de multas e outras sanções. “Mas a maioria das leis geralmente proíbe conduta semelhante. E, como existem linhas comuns, é possível criar um programa anticorrupção que abranja uma organização multinacional. Mesmo que certos aspectos do programa precisem de algum grau de ajuste, eles podem seguir os princípios globais estabelecidos”, emenda a sócia do Dentons.
Na mesma linha, Nick Berg, sócio da área de Anticorrupção e Risco Internacional no escritório de Chicago do Ropes & Gray, também vê poucas diferenças importantes entre os regimes anticorrupção dos principais mercados internacionais. “E onde elas diferem, os clientes geralmente optam pela abordagem mais restritiva”, diz o advogado.
Embora essa seja uma decisão sensata e aparentemente fácil de ser tomada, a depender da forma como a empresa faz negócios, ela pode não ser tão simples assim. Os fundamentos podem ser semelhantes e, portanto, propensos a serem harmonizados, mas não se engane, as diferenças existem. Podem até parecer pontuais frente ao conjunto de ordenações e regras de cada uma delas, mas é justamente nesses pequenos detalhes que se escondem os grandes problemas.
Por conta desse cenário global multi-regulatório, um olhar verdadeiramente global para os riscos legais enfrentados pela empresa nos seus mercados mais relevantes deve substituir uma visão de Compliance centrada só na perspectiva dos Estados Unidos, preocupando-se apenas em responder as questões do FCPA. Segundo todas as fontes ouvidas para esta matéria, isso começa a acontecer de forma mais frequente, com mais empresas atualizando seus programas e começando a incorporar itens relacionados a outras legislações. “Nossos clientes notam a pressão das várias partes interessadas em lidar com o suborno transnacional e ajustaram seus programas de acordo com essa nova realidade”, diz Judith Aron.
Mais antiga das leis dessa natureza, o FCPA ainda permite os chamados pagamentos de facilitação, um mecanismo que autoriza o pagamento a agentes públicos no sentido de acelerar alguns processos e aprovações. Embora seu uso deva ser feito de forma excepcional e mediante uma justificativa clara quando questionado pelas autoridades, legalmente eles são um instrumento válido pela legislação norte-americana. E sendo válida, muitos profissionais de Compliance de empresas americanas, principalmente nas multinacionais de médio porte, consideram que não existe nada de errado em fazer uso dessa alternativa. O problema é que praticamente nenhuma legislação anticorrupção internacional relevante abre exceções para esse mecanismo. Enquanto os americanos davam as cartas sozinhos, esse talvez fosse um desconhecimento (ou um risco) aceitável. Agora não mais. Seria curioso ver o regulador francês ou alemão (países que viram suas grandes companhias tomarem algumas das maiores multas por violação ao FCPA) punirem uma grande companhia norte-americana por violações da sua lei anticorrupção local por uma propina paga em algum país estrangeiro.
Mas este talvez seja um exemplo extremo. Vamos a outro envolvendo as legislações de três países: Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, dado pelo sócio do Ropes & Gray:
Pelo FCPA, (o Estado) deve fazer a demonstração da intenção corrupta ao mover acusações contra empresas e indivíduos que pagam subornos a funcionários de governos estrangeiros, direta ou indiretamente, para promover ou reter negócios. Posterior ao FCPA, o UK Bribery Act também proíbe o suborno ativo e passivo na esfera corporativa, mas, ao contrário da lei americana, impõe responsabilidade estrita às empresas que não têm um programa de conformidade adequado em vigor. A legislação britânica também criminaliza o suborno privado e não abre exceções para os pagamentos de facilitação. Já o Brasil, ao contrário do Reino Unido e dos Estados Unidos, não estabelece a responsabilidade criminal das empresas por suborno corporativo, embora as empresas possam ser punidas por uma ampla gama de violações nas esferas cível e administrativa. No País, a corrupção privada não é regulada.
“Uma empresa que opere nos três países teria muita dificuldade, do ponto de vista prático, de tentar aplicar esses padrões conflitantes caso a caso. Seria necessário se envolver numa análise jurídica altamente específica para cada questão potencial antes que um pagamento seja feito. Muitas vezes, isso será impossível do ponto de vista prático e exporá a empresa e seus funcionários a potenciais responsabilidades criminais desnecessariamente devido à falta de orientação clara”, pontua Nick Berg.
Uma empresa precisa visualizar seus riscos num quadro global e, em seguida, desenvolver um programa de conformidade para atender a esses riscos. “É normal adotar uma abordagem mais rígida por causa dos riscos dos Estados Unidos, mas é importante comunicar a justificativa e ajudar as pessoas de fora do país a entender como essa abordagem é consistente com o que a lei local exige, que os riscos locais são semelhantes e as razões pelas quais a empresa está optando por adotar essa abordagem globalmente”, acredita a sócia do Dentons. “O que não pode existir é uma prepotência da Cynthia, que por ser americana e trabalhar no Brasil, de achar que consegue endereçar questões culturais e legais na Franca, na Malásia ou em qualquer outro território”, reforça Catlett.
No caso da lei francesa, as grandes empresas (ou todas aquelas que cumpram os critérios determinados pelo artigo 17 da Lei Sapin II), são obrigadas a implementar oito medidas e procedimentos destinados a prevenir e detectar a realização de atos de corrupção e de tráfico de influência, na França ou no exterior. O rol de obrigados pelo regulador francês engloba empresas constituídas no país que empreguem mais de 500 funcionários e com faturamento acima de 100 milhões de euros, todas as subsidiárias de uma matriz constituída na França e afiliadas com um grupo de mais de 500 funcionários no total e receita consolidada superior aos 100 milhões de euros. Acredita-se que mais de duas mil companhias em operação no país sejam obrigadas a contar com código de conduta, sistema interno de denúncia de irregularidades, mapeamento de riscos, procedimentos para avaliar a integridade de terceiros, controles contábeis, sistema de treinamento, um regime disciplinar e um dispositivo interno de controle e avaliação de todas essas medidas. Para a executiva da AFA, as empresas aconselhadas ou monitoradas pela agência estão se esforçando para implementar programas de acordo com a Sapin II. “Em nossa experiência, o FCPA não é a única referência para a Compliance anticorrupção no setor empresarial, embora permaneça influente devido ao seu alcance extraterritorial e impacto sobre muitas multinacionais”, reforça a chefe de Relações Internacionais do órgão francês.
Via de regra, as multinacionais estão mais preocupadas com o alcance global de seus programas de conformidade e estão tomando medidas proativas ao adaptá-los para cumprir as regulamentações específicas de cada país. “As autoridades estrangeiras normalmente avaliam os programas de conformidade à luz de suas próprias regulamentações locais”, reforça Gonzalez Calvet. Segundo a sócia do Ropes & Gray, entre essas ações proativas estão, nos casos de fusões e aquisições, compradores exigindo que os vendedores cumpram as leis anticorrupção regionais e tenham um programa de Compliance eficaz durante as negociações da transação , até mesmo como condição precedente para o fechamento. “Esta tendência é cada vez mais importante por conta da potencial responsabilidade corporativa para matriz, subsidiárias e afiliadas (dependendo da jurisdição), que pode colocar as empresas adquirentes, e mesmo investidores, em risco”, acrescenta seu colega do Ropes & Gray.
Menos estrela solitária
O compromisso demonstrado por diferentes autoridades nacionais em trabalhar além das suas fronteiras territoriais na punição por violações às suas leis anticorrupção é um lembrete bastante claro de que elas não vão ficar de fora do tabuleiro. “A aceleração da globalização não é apenas relevante para as atividades e negócios das empresas. Ela também se reflete na cooperação reforçada entre as agências de fiscalização”, aponta Aron.
“O fortalecimento da cooperação entre as autoridades anticorrupção favorece a promoção de uma cultura de Compliance transnacional”, concorda Zubek, da AFA. Além das diferentes organizações multinacionais que lidam com o tema, ela dá como exemplo desse aumento de cooperação à Rede de Autoridades de Prevenção da Corrupção (NCPA), entidade que reúne cerca de 30 órgãos nacionais de diferentes partes do mundo, incluindo a AFA e a CGU, em torno de questões operacionais de interesse comum. “O trabalho da Rede pode contribuir para o surgimento de uma visão global de integridade, enriquecida pela diversidade de experiências nacionais”, reforça a executiva da agência francesa.
Como já foi dito, os próprios norte-americanos têm trabalhado de forma mais cooperativa, inclusive abrindo mão da liderança de investigações nas quais tinham interesses a defender. Um bom exemplo é o recente acordo fechado com o gigante da aviação europeia Airbus, que no início de 2020 fechou deferred prosecution agreements (DPA’s) com promotores nas cortes francesas, britânicas e norte-americanas. O acordo encerrou anos de investigação por violações as leis anticorrupção desses países. “(Neste caso), a investigação não foi iniciada pelo DoJ, mas sim pelo SFO, a agência de combate a fraudes do Reino Unido, após uma autodenúncia da fabricante de aviões sobre pagamentos irregulares feitos a terceiros e o potencial uso desses recursos de forma questionável por esses consultores”, lembra Gonzalez Calvet, do Ropes & Gray. O DoJ transferiu para os reguladores da França e do Reino Unido a coordenação dos esforços de resolução “para justificar seus respectivos interesses”. Embora privada, a Airbus tem os governos da França, Alemanha e Espanha como acionistas relevantes e divide quase todo o seu processo de inovação e produção entre a Inglaterra e a França. Segundo Berg, o Departamento de Justiça reconheceu que a jurisdição territorial dos Estados Unidos sobre a conduta corrupta era limitada e que “os interesses da França e do Reino Unido sobre a conduta relacionada à corrupção da Empresa e as bases jurisdicionais para uma resolução [eram] significativamente mais fortes”, conforme observado em um comunicado para a imprensa emitido pelo DoJ. “Se o aumento da fiscalização por órgãos reguladores de outros países ainda não fez com que as empresas considerassem a reavaliação de sua função de conformidade com uma lente multinacional, deveria”, explica o sócio do Ropes & Gray em Chicago.
Essas agências nacionais estão assumindo uma posição de liderança em investigações globais de corrupção relevantes. E a tendência é que isso só cresça daqui para frente. “Nossa equipe de conformidade global, incluindo nossos profissionais nos Estados Unidos, tem dito há anos que qualquer programa de conformidade com base em riscos bem executado deve se concentrar nas leis com maior probabilidade de serem aplicadas à empresa. Isso é determinado por onde a empresa faz negócios, como opera em cada território e quão ativas as agências de fiscalização de um país é na aplicação dessas leis”, reforça Judith Aron. Antes de tudo, isso exige que o profissional de Compliance conheça muito bem o negócio da empresa, só que agora, sob uma perspectiva também global. Para a sócia do Dentons, o olhar sobre o programa de Compliance deve partir da mesma perspectiva com a qual a empresa vê os seus negócios, com os recursos focados onde a necessidade é maior e o retorno sobre o investimento é mais significativo.
Como se fosse pouco, as empresas ainda precisam lidar com um maior escrutínio de organizações multilaterais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Berg lembra que ambos vêm adotando medidas coercitivas contra empresas multinacionais nas atividades financiadas por essas instituições.
Cobrando as leis nacionais
Além da necessidade de abarcar nos seus programas globais situações previstas em um número muito maior de legislações anticorrupção, as multinacionais começam a ter de lidar com o fato de que ter como base do programa uma lei que não a do seu país de origem pode ser um problema, a depender das exigências e da política do regulador local. Para as empresas que conceberam seus programas de integridade da segunda metade da década para cá, é natural que ‘elas tenham levado em conta as legislações locais como base para as políticas, já que essa costuma ser a área de risco de execução mais significativa a ser tratada. “No caso da França, por exemplo, a AFA considera que, se uma abordagem diferente das suas diretrizes for usada para aplicar a lei Sapin II, a empresa deverá justificar sua escolha e demonstrar como ela cumpre a lei francesa”, explica a sócia do Dentons.
As obrigações anticorrupção definidas pela Sapin II aplicam-se às empresas multinacionais. A matriz e todas as suas subsidiárias são obrigadas a adotar medidas e procedimentos para prevenir e detectar a corrupção, e isso se aplica tanto as pessoas jurídicas quanto às físicas (os dirigentes das empresas), cabendo a AFA monitorar o cumprimento das medidas. Em caso de falhas, o órgão pode impor sanções administrativas. “Neste contexto, as empresas francesas tendem agora a se referir à Lei Sapin II quando desenvolvem programas de Compliance tanto na França como no exterior”, diz Zubek.
Não se pode esquecer que, em maior ou menor grau, a assumpção das leis nacionais anticorrupção traz junto um aspecto geopolítico importante, que se insere num contexto de soberania nacional, algo ainda mais caro nos tempos de hoje, movidos não só por fatos mas também pela construção de narrativas por um lado e pelo outro. Aron, do Dentons, diz que muito recentemente, tem havido um esforço renovado na França para recuperar o controle de sua aplicação de crimes de colarinho branco com base no princípio de soberania nacional, o que não seria algo inédito no arcabouço jurídico francês. Ela lembra uma situação que pode – ou não – ser tratada como uma “exceção cultural” francesa, a loi de blocage (Estatuto de Bloqueio) francesa de 1968. A lei foi promulgada em um contexto muito específico: uma investigação antitruste dos Estados Unidos contra companhias marítimas francesas. Embora não tenha sido testada muitas vezes em tribunais, ela proíbe qualquer parte francesa de solicitar ou divulgar informações comerciais, na ausência de uma ordem judicial francesa ou fora da aplicação da Convenção de Haia de 1970, ou ainda, na ausência de um Tratado de Assistência Jurídica Mútua.
Ao mesmo tempo em que devem olhar com mais atenção para suas leis locais, os profissionais de Compliance precisam tomar cuidado para não incorrerem no mesmo problema: estabelecer uma única lei nacional como base do programa de Compliance, sem levar em conta como essa lei local se complementa, se choca ou, simplesmente, não cobre pontos importantes das legislações anticorrupção de outros países. Hoje, isso pode deixar uma companhia muito exposta a sanções internacionais.
Peguemos o exemplo da América Latina, região na qual o Brasil costuma responder pela maior operação e, consequentemente, como base para a região e para a execução do programa de Compliance. É verdade que as empresas baseadas no Brasil tendem a usar as leis brasileiras anticorrupção como base dos seus programas, até porque temos um ambiente legal e de Compliance – incluindo os órgãos de fiscalização e investigação – bastante robustos. Além disso, uma série de setores regulados por aqui exige das empresas programas de Compliance. O mesmo vale para certas compras governamentais. É uma realidade bastante diversa da de países como Colômbia e Peru, ainda incipientes nesse desenvolvimento.
Esse contexto faz com que muitos profissionais de Compliance brasileiros acreditem que possam simplesmente pegar o programa daqui, em tese, o mais sofisticado e já topicalizado da região, e replicá-lo nos nossos vizinhos. Trata-se de um grande erro, já que a lei brasileira anticorrupção, embora seja reconhecida internacionalmente como uma boa lei, não abrange tudo. “Imagine, uma multinacional com sede no Brasil e operações em vários países da América Latina. A legislação brasileira não regulamenta a corrupção privada. Se os pontos de contato internacionais da empresa incluíssem o Chile, que criminalizou o suborno entre partes privadas em 2018, com a aprovação da Lei nº 21121, um programa com base somente na lei anticorrupção brasileira não seria amplo o suficiente para proteger a empresa e seus funcionários de irregularidades em seus pontos de contato chilenos”, diz Gonzalez Calvet, do Ropes & Gray.
O valor da comunicação
A longevidade da lei e a extensão dos enforcements e das penalidades aplicadas foram, sem dúvida, fatores muito importantes para dar ao FCPA o status de lei de referência em termos de legislação anticorrupção no mundo. Mas é preciso considerar outro aspecto, tão relevante quanto, para que isso acontecesse da forma como aconteceu: o poder de comunicação dos americanos e a força e clareza com que eles transmitem a mensagem. “Definitivamente, eles sabem se vender”, afirma Catlett, que tem nacionalidade brasileira e americana.
Mesmo em casos nos quais punições fossem aplicadas também por autoridades de outros países, não raro do país sede da empresa sancionada, o foco e os louros do caso costumavam recair sobre Washington, seus agentes e instituições, até pela capacidade de os Estados Unidos se fazerem ouvir ao redor do mundo. Um exemplo dessas mensagens é o comunicado de imprensa de 2019, no qual o DoJ anuncia o acordo de US$ 1 bilhão para encerrar investigações de violação ao FCPA:
“Hoje, a gigante sueca de telecomunicações Ericsson admitiu uma campanha de corrupção de anos em cinco países para solidificar seu controle sobre os negócios de telecomunicações” (…) “Por meio de fundos secretos, subornos, presentes e corrupção, a Ericsson conduziu os negócios de telecomunicações com o princípio orientador de que ‘o dinheiro fala’. A confissão de culpa de hoje e a entrega de mais de um bilhão de dólares em penalidades combinadas devem comunicar claramente a todos os atores corporativos que fazem negócios neste caminho não será tolerado”.
Mensagens desse tipo são emitidas a cada novo acordo fechado. Elas podem ser mais ou menos assertivas na linguagem e nos termos aplicados pelos procuradores, mas o ponto principal, a “intolerância dos Estados Unidos” à corrupção corporativa (que afeta a competição global e coloca em risco os investidores americanos) estará presente. Pode até parecer prepotência, o que não deixa de ser. Mas, inegavelmente, essa comunicação bastante direta e objetiva a cada novo acordo, deixando claro o que aconteceu para que a empresa acabasse naquela situação, resultou na construção da reputação implacável dos yankees. “As leis europeias são mais rígidas e mais fortes que o FCPA. Mas eles fazem menos enforcements, têm menos pessoas trabalhando nas agências e menos capacidade de comunicação, o que acaba pesando na percepção do mercado”, lembra Catlett, da Charles River.
Isso faz com que numa negociação com eles, as empresas muitas vezes tenham receio de adotar táticas de defesa que adotariam sem problemas em outros países e mantem os americanos na posição de “mais temidos” nas investigações que envolvem autoridades de diferentes países. Diz à lenda que, quando as investigações da Lava Jato começaram a chegar perigosamente próximo das empreiteiras, o advogado Marcio Tomaz Bastos teria sugerido aos diretores das companhias um acordo de R$ 1 bilhão com os procuradores para encerrar as investigações. O valor parece pequeno hoje, frente a tantos descalabros, mas na época, seria algo muito provavelmente aceito e comemorado como um marco no combate à corrupção no País. O acordo não teria saído supostamente por oposição de Marcelo Odebrecht, que entendeu que se fizesse o acordo aqui no Brasil, estaria admitindo um malfeito que lhe geraria problemas com as autoridades norte-americanas, o que seria um problema muito maior na sua concepção. Bom, o resultado dessa história o leitor sabe como termina.
Além disso, ao botarem “medo”, no melhor estilo “aqui se faz aqui se paga”, os norte-americanos conseguem estimular aquilo que é a maior fonte de casos para o departamento: a autodenúncia de empresas. Sem ter a quem temer do outro lado, é muito provável que uma empresa pensasse muito mais vezes sobre a conveniência de se autodenunciar. Atualmente, esse processo é desejado por agências de diferentes países, como o SFO britânico, que vem estimulando a autodenúncia e incentivando o fechamento de DPA’s, também um mecanismo disseminado pelo FCPA.
Orientação para o mundo
A força da comunicação americana não se faz presente só nos seus comunicados e discursos.
Há tempos eles entenderam que quanto mais se comunicam com o mercado de forma clara, objetiva e transparente, sobre o que os seus procuradores tem visto, sobre quais condutas e procedimentos são alvos de atenção e punição, é algo que só ajuda no desenvolvimento e no trabalho dos profissionais de Compliance. Os diferentes guias do FCPA publicados pelo DoJ e pela SEC são leituras obrigatórias, comentadas pelos maiores especialistas da área no mundo e nos quais se encontram exemplos, ou ao menos referências, para situações que podem dizer respeito até a uma lei local, para a qual os profissionais não encontram resposta.
Mais recentemente, outras agências anticorrupção passaram a espelhar esse modelo para orientar o mercado sobre a aplicação das suas respectivas leis e esclarecer as dúvidas que foram surgindo conforme elas foram sendo aplicadas. Parte significativa desses documentos ainda está num território mais básico de orientações, tratando sobre frameworks e elementos mínimos que os procuradores de cada país esperam encontrar nos programas de Compliance, caso dos guidances de países como Espanha e Argentina. Nick Berg, do Ropes & Gray, lembra que também a CGU vem publicando vários manuais, vários deles disponíveis em inglês e espanhol, tratando do design e dos critérios de avaliação dos programas de Compliance. Outros atores locais, como o Ministério Público Federal e o CADE (agência de defesa da concorrência) também publicaram guias sobre programas de Compliance e acordos de leniência.
Mas, para o sócio do Ropes & Gray, a realidade é que esses guias só são realmente eficazes quando questões difíceis são abordadas direta e detalhadamente. “Esses guidances geralmente deixam de abordar questões mais espinhosas e aplicações práticas, para o desapontamento dos profissionais e das empresas que regulam”, diz Berg, para quem reguladores de todo o mundo podem fazer avanços significativos no fornecimento desse nível de orientação.
Isso é muito provavelmente uma questão de tempo. Com mais de 40 anos de vida, é natural que o FCPA tenha muito mais respostas e dicas a oferecer ao mercado. O Reino Unido vem publicando guias sobre o UK Bribery Act desde que a lei foi sancionada, em 2011 e o SFO mantém um site atualizado regularmente com os casos e novas orientações. O país também adotou “seis princípios” que norteiam as suas avaliações de Compliance: procedimentos proporcionais, compromisso de alto nível, avaliação de risco, due diligence, comunicação (incluindo treinamento) e monitoramento e revisão. “Todos eles enfatizam a execução, a comunicação e, em última instância, estabelecer uma cultura correta”, explica Berg, do Ropes & Gray.
Na França, em 2019, a AFA e o Ministério Público Financeiro publicaram diretrizes sobre a implementação do acordo judicial de interesse público, o equivalente francês do deferred prosecution agreement introduzido pela Sapin II. Já em 2021, a agência publicou novas recomendações relacionadas com a aplicação da lei. “As novas recomendações levam em conta a experiência adquirida pela Agência nos últimos anos, assim como o feedback dos diversos atores do Estado, do setor empresarial e da sociedade civil, coletado através de uma consulta pública”, conta Izadora Zubek. As primeiras recomendações da AFA foram publicadas em 2017.
No caso francês, Aron destaca que mais do que publicar os guidances atualizados, a AFA vem se engajando em conversas diretas e sessões de perguntas e respostas com advogados e profissionais de Compliance em relação à interpretação desses guias. “há um incentivo claro das autoridades para se engajarem em diálogos construtivos”, acredita a sócia do Dentons.
As principais legislações anticorrupção internacional europeias já estabelecem requisitos detalhados em relação aos programas de Compliance. E o foco é a efetividade acima de tudo, mesmo que o programa não siga exatamente o modelo preconizado pela lei local. “Um representante da AFA disse recentemente que a forma ou formato adotado pelas empresas francesas para seu programa de conformidade não importa: se é eficaz e robusto”, aponta Aron.
Nesse processo de evolução, os europeus se alinham ao que pensam seus colegas norte-americanos: os programas de conformidade devem ser suficientemente adaptados a cada empresa e administrados de maneira adequada. “Tem havido uma polinização cruzada significativa, o que também tem contribuído para o nível cada vez maior de sofisticação que os reguladores europeus têm mostrado em sua avaliação dos programas de conformidade”, acredita Gonzalez Calvet.
A verdade é que os países europeus têm alocado mais esforços e recursos nas suas estratégias de combate à corrupção internacional e na implementação e fiscalização das mesmas. E as empresas do continente vêm respondendo a esse movimento, adotando o Compliance e buscando auditorias independentes para testar seus programas. “Só vejo esse esforço crescendo!”, conclui Aron.
Artigo publicado originalmente na edição 31 da Revista LEC.
Imagem: Freepik