Divulgado nos últimos dias de 2022, o acordo de leniência firmado pela BRF com a CGU rompe paradigmas, mostra que as autoridades estão mais sensíveis à condição econômica das companhias na hora de estabelecer os mecanismos de pagamento e abre possibilidades importantes para um maior equilíbrio entre a sanção aplicada e a continuidade dos negócios
No final de 2022, a Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou três notícias em seu site dando conta de fechamentos de acordo de leniência com base na lei anticorrupção. Um desses três comunicados, todos divulgados no dia 28 de dezembro, tratava do acordo de leniência de R$ 584 milhões formado pela autoridade brasileira com a gigante do setor de alimentos, BRF, por violações à Lei Anticorrupção investigadas pela operação Carne Fraca, um esquema de fraudes laboratoriais no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e irregularidades cometidas por frigoríficos de grandes companhias em 2017, e da sua terceira fase, chamada de Operação Trapaça que em 2018, levou a prisão preventiva de ex-executivos da BRF. De acordo com a PF, laboratórios credenciados ao ministério e setores de análises da BRF fraudavam resultados de exames. As irregularidades teriam sido cometidas entre 2012 e 2015 com conhecimento de executivos da empresa, de acordo com denúncias de uma ex-funcionária. Entre os presos estavam o ex-presidente da BRF, Pedro de Andrade Faria, e o ex-vice-presidente Hélio Rubens Mendes dos Santos Júnior.
A Carne Fraca teve enorme repercussão, envolveu outras empresas do setor, detonou uma crise de confiança nos consumidores e fechou a porta de alguns mercados internacionais importantes para o País. Mas, passada a repercussão inicial, que foi realmente danosa à imagem do setor como um todo, a verdade é que o caso acabou caindo no esquecimento.
De volta ao acordo da BRF, além do alto valor, o que o coloca no rol das maiores sanções já aplicadas pela CGU, a grande novidade foi a forma utilizada para estabelecer a forma de pagamento da multa. Pelo que foi firmado no acordo, a companhia fará o acerto em cinco parcelas anuais, com início em 30 de junho deste ano, e para isso, poderá se valer, até o limite de 70% do total da multa, do saldo de créditos de prejuízo fiscal e base negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) na apuração do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e da CSLL. Quando a empresa tem prejuízos em um ano fiscal, ele gera créditos para que, no próximo exercício no qual ela tiver lucro, esses créditos sejam utilizados na horta de fazer o acerto com o Leão e ela não precise pagar todo o valor de imposto que seria devido por conta do seu lucro. No caso da BRF, a companhia reportou R$ 3,1 bilhões de prejuízo no último ano. Desse valor, R$ 356 milhões são referentes ao acordo, mas não tem efeito sobre o caixa, justamente pela forma como o acordo será pago.
A empresa também poderá se valer de créditos e de precatórios detidos pela empresa contra a União, o que representa também uma grande novidade no caso dos acordos de leniência com base na Lei Anticorrupção. Apenas no caso da soma desses instrumentos não atingir o valor total de cada parcela é que a empresa precisará fazer o desembolso de dinheiro diretamente do seu caixa ao Tesouro Nacional. Mas de acordo com a empresa, isso não é esperado. Para validar o acordo, a BRF se comprometeu a oferecer garantias na forma de fiança bancária, depósito em conta vinculada, garantia real ou seguro-garantia em montante equivalente a uma parcela do total devido, cerca de R$ 116 milhões.
O modelo de pagamento foi proposto pela própria BRF, que vinha negociando desde 2018, quando procurou a CGU e a AGU e passou a colaborar com as investigações para a mitigação das sanções a serem aplicadas em decorrência dos ilícitos praticados. Antes disso, em 2017, a empresa também já tinha dado início às tratativas com o Departamento de Justiça (DoJ) e a Comissão de Valores Mobiliários (SEC) dos Estados Unidos, onde a empresa obteve um declination – quando o governo recebe todas as informações e documentações sobre como a empresa lidou com o malfeito e opta por não abrir um caso contra a companhia -, já em 2021. De acordo com a plataforma FCPA Clearinghouse, da escola de Direito da Universidade de Stanford, os custos relacionados com as investigações internas e contratação de serviços legais para o caso consumiram cerca de US$ 47 milhões do caixa da dona das marcas Sadia e Perdigão.
Atual secretário de Integridade Privada da CGU, pasta que hoje responde pelos acordos de leniência, Marcelo Pontes Vianna, lembra que embora nunca tivesse sido utilizada como opção de pagamento até então, o uso de créditos fiscais e tributários, de diferentes naturezas – além dos próprios precatórios -, para quitar dívidas da empresa com a União é algo constitucional. “O uso desses créditos é algo pacificado hoje”, diz o secretário.
O próprio decreto 11.129, o mais recente a versar sobre a Lei Anticorrupção, reforça a possibilidade de flexibilidade na pactuação do pagamento das dívidas das empresas com o setor público. “Claro que existem parâmetros, mas no conceito amplo de acordo existe a possibilidade de se buscar formas diferentes para essa pactuação entre as partes”, reforça Michel Sancovsky, sócio da área de Compliance do escritório Tauil & Chequer/Mayer Brown. Dentro desse escopo, o advogado diz que as discussões se tornam um pouco mais amplas, esbarrando inclusive em temas tributários. Aliás, em muitos casos, o uso desse crédito como forma de pagamento pode demandar a aprovação de outros órgãos, inclusive da própria Receita Federal.
Acerto de contas
A lógica desse tipo de negociação é relativamente simples: faz-se um encontro de contas entre o que a empresa tem a receber do Estado e o quanto ela tem de obrigações a pagar aos cofres da União. Segundo Pontes Vianna, essas opções de pagamento já vinham sendo estudadas em outros acordos da CGU. E os créditos utilizados podem ter origem diversas. Um muito comum, por exemplo, são aqueles gerados pelo seguro de exportação firmado como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Ou os próprios créditos tributários. Uma das grandes novidades do caso da BRF é justamente a possibilidade de uso de créditos oriundos de prejuízo fiscal. “Isso foi uma inserção recente na norma, algo específico da legislação tributária que previu que pessoas jurídicas e pessoas físicas pudessem fazer um procedimento fiscal para abater desse crédito gerado as dívidas que ela tenha com a Receita Federal ou com a AGU”, explica Marcelo Pontes Vianna, dizendo que esse dispositivo costuma ser mais comumente usado para acertos em processos de dívida ativa. Já no caso dos precatórios, para serem aceitos, é preciso que eles já tenham passado por todas as etapas para que sejam validados como de pagamento líquido e certo. “Nesse estágio final, uma vez reconhecida a dívida pelo Estado, o precatório já pode ser utilizado para fins de abatimento, ainda que o seu pagamento só venha a ser feito no futuro. Ao invés de fazer o dispêndio desse valor no futuro, a União e a empresa resolvem com esse crédito uma situação atual”, reforça o servidor da CGU.
O uso de nenhum desses créditos é feito sem a validação perante os respectivos órgãos com os quais a dívida está relacionada. De agências reguladoras a ministérios, eles precisam reconhecer e validar que a dívida é legítima e, em alguns casos, referendar o seu uso como forma de pagamento. No caso da BRF, para concordar com o uso dos créditos oriundos de prejuízo fiscal, a CGU foi até o Fisco e pediu que o órgão concordasse com o seu uso no pagamento antes de selar o acordo.
Sócia da área de Compliance e Investigações da banca Machado, Meyer, Juliana Sá Miranda participou do fechamento de um dos primeiros acordos de leniência firmado pelo CADE no início dos anos 2000 (o modelo do acordo utilizado pela autoridade de defesa da concorrência foi praticamente replicado na Lei Anticorrupção). Hoje, ela vê a CGU, após dezenas de acordos já negociados, muito mais madura para tratar desses acordos.
Embora no início desse processo, até por conta da curva de aprendizagem, existisse muito espaço para negociar, a verdade é que muitos dos primeiros acordos talvez tenham sido fechados sem uma análise real da capacidade de caixa das empresas em honrar com os valores celebrados em um momento de grande pressão da sociedade. No caso da CGU, em boa parte dos casos envolvendo a Lava Jato, o acordo de leniência assinado com a pasta considerou o valor das multas acertado anteriormente com o Ministério Público Federal. “Vimos empreiteiras se comprometerem com pagamentos que elas não conseguiram honrar. Celebraram acordos com base em faturamentos anteriores, sem levar em conta que a crise de reputação vivida por elas afetaria o faturamento, ainda mais nos dias de hoje, com a área de Compliance muito mais forte”, lembra Juliana. Isso tem levado muitas dessas empresas a buscar renegociar as parcelas devidas, o valor aplicado e, em casos mais extremos, a suspensão do pagamento. Por isso, a sócia do Machado, Meyer acredita que a negociação com a BRF demonstra também a maturidade da CGU. “Pensaram numa alternativa, a ideia de se fazer um pagamento diferenciado que fosse possível e mais segura de se garantir o cumprimento do acordo”, emenda Juliana Sá Miranda, que acredita que parece ser um consenso no mercado de algum tempo para cá que as autoridades estão mais abertas para ouvir as empresas. “Na prática, propor um acordo de leniência não é diferente de propor outro acordo qualquer. As duas partes têm a possibilidade de negociar dentro dos limites e parâmetros existentes”, emenda. A sócia do Machado, Meyer acredita que o uso da compensação de créditos fiscais representa uma inovação bem-vinda. “Em tese, estamos negociando com o mesmo dono do cofre, que é o Estado. Se funciona para a autoridade, o Tesouro e se a CGU, que representa o governo na negociação, entendeu que seria uma alternativa possível, por que não? No final do dia, o que a autoridade quer é o pagamento. Sobre como pagar, acredito que exista essa liberdade por assim dizer”, diz.
Ao proporcionar à BRF a possibilidade de usar créditos ao invés de “meter a mão no bolso”, a CGU estaria, de alguma forma, recompensando à conduta da companhia, que realizou as investigações e remediações internas de forma adequada (tanto que obteve o declination nos Estados Unidos), procurou e colaborou com as autoridades locais logo no início do processo, mas, que dada a responsabilidade objetiva da nossa lei e a multa mínima obrigatória de 30%, acabaria sofrendo uma penalidade alta de qualquer jeito, como de fato os cálculos da multa apontaram? Segundo Pontes Vianna, definitivamente, esse não é o caso. “Não consideramos isso como uma concessão. Nem condicionamos a ser um acordo de colaboração mais ou menos efetivo do que outro acordo qualquer. Compreendemos que para a empresa poderia ser um meio melhor de pagamento. E, no final das contas, trata-se de uma previsão legal que nós não teríamos condições de não aceitar naquele momento, em especial no caso do precatório”, reforça o secretário.
Para Michel Sancovsky, é difícil avaliar o que motivou a decisão sem entender o contexto de negociação desse acordo. “Identificar a capacidade de pagamento de uma empresa é algo que se olha caso a caso. Mas, não tenho dúvidas de que para o mercado privado abre-se uma possibilidade importante de não-dispêndio. O que é melhor: receber em crédito tributário ou a companhia ter dificuldade de pagamento?, questiona o advogado. “Temos inúmeras manifestações sendo feitas de que a multa não pode quebrar a empresa. A partir do momento em que a autoridade entende a capacidade de pagamento de quem está celebrando o acordo, sensibilidade é importante”, emenda
Menos litígio, mais acordos
O uso desses novos instrumentos faz sentido dentro de um contexto de redução de litigiosidade que vem sendo levado a cabo em várias frentes, em especial na discussão de questões tributárias, mas não só. “Além da redução da litigiosidade, temos outra agenda, que é a da redução da dívida pública. Existe um volume astronômico de precatórios que são devidos pela administração pública, muitos com vencimentos em 2026”, lembra Sancovsky, do Tauil Chequer/Mayer Brown. Ao aceitar créditos devidos às empresas para que elas paguem suas multas, por exemplo, o governo tira essas dívidas – cujo pagamento nem sempre é certo, já que existem centenas de bilhões de reais em dívidas das empresas sendo discutidas nos tribunais -, do seu balanço.
Trata-se também de buscar um melhor equilíbrio no que diz respeito ao nível e às formas de responsabilização da pessoa jurídica. “Tal qual não temos pena de morte para pessoa natural, não temos pena de morte para Pessoa Jurídica. É lógico que a lei trouxe uma sanção para casos extremos. Mas fora desse cenário, temos que ter penas dissuasiva, proporcional, que garanta o caráter pedagógico para que as empresas não voltem a praticar o ilícito, mas ao mesmo tempo, que permitam a continuidade dos negócios”, lembra Pontes Vianna. Esse entendimento, embora seja algo distante (e porque não dizer, injusto), da perspectiva do público em geral, está sedimentado dentro da CGU e de outros órgãos de controle do Estado.
Para as empresas, não precisar tirar do caixa o valor da multa, em especial em momentos de dificuldade (e é essa a situação de muitas empresas no momento em que acertam a leniência) é um benefício e tanto. No caso dos precatórios, por exemplo, embora no geral, a União seja considerada uma boa pagadora, são muitos os casos de portadores desses títulos há anos aguardando para receber o valor. Com a Lei dos Precatórios, sancionada no ano passado para permitir encaixar as contas do governo dentro do orçamento e que limitou o montante destinado ao pagamento desses títulos a cada ano, as perspectivas de pagamento ficaram menos certas.