A Nova Lei de Licitações (NLL), Lei 14.133/2021, trouxe uma modernização significativa para o controle e a transparência nas contratações públicas no Brasil. A NLL promove a profissionalização dos compradores públicos, a gestão de riscos e o processamento eletrônico, aumentando a transparência com o Portal Nacional das Compras Públicas (PNCP). Este portal centraliza a publicidade das compras públicas, reduzindo a possibilidade de fraudes e ampliando a participação dos fornecedores..
Com a mudança normativa, temos novo ambiente de possibilidades para implantação de rotinas de detecção automatizada de indícios de ilícitos, assim como, em especial, uma grande oportunidade de incrementar e robustecer práticas que busquem evitar a corrupção e o desvio de recursos.
A nova legislação também possibilita o uso de tecnologias avançadas para a detecção automatizada de fraudes, por meio de ferramentas como o Painel Raio-X do Fornecedor, que cruza dados de empresas para identificar relações suspeitas.
Este artigo destaca o papel que as compras eletrônicas podem desempenhar nesse contexto, em especial nos riscos de publicidade precária. O debate foca na capacidade de prevenção de fraudes em licitações, a partir de ferramentas automatizadas e centralização de dados.
Publicidade Precária: Mais Transparência, Menos Fraude
A publicidade adequada e transparente é fundamental para assegurar a competitividade e a integridade das licitações. A NLL reforça a necessidade de divulgação ampla e acessível das intenções de compra do governo, facilitando o acesso dos fornecedores às oportunidades de contratação. Anteriormente, a falta de informações claras e tempestivas sobre as licitações era uma das principais brechas exploradas para manipular os processos, como apresentado nas três primeiras edições do livro ““Como combater a corrupção em licitações”.
Sob o arcabouço jurídico do passado, o livro mapeou e descreveu diversos esquemas, artimanhas e armadilhas engendradas por fraudadores para esconder editais, ocultar avisos, dissimular os objetos pretendidos, dificultar ao máximo a vida de potenciais interessados.
Era comum encontrar licitações sem a divulgação adequada, fosse em jornais, fosse na Internet. E mesmo quando eram publicados os avisos, podiam vir de maneira pouco atrativa ou compreensível, incluindo cobranças de altos valores para acesso à informação.
Uma forma sofisticada de fraude era a publicação fictícia. Uma reportagem do “Fantástico” da Rede Globo abordou um caso desses. Segundo as investigações, uma prefeitura do estado do Rio de Janeiro conseguia criar aparência de legalidade forjando avisos de licitação num Jornal local. O pulo do gato: o jornal disponível para venda nas bancas não era o mesmo do processo.
A quadrilha criava um jornal de mentirinha, para fingir que dava publicidade à licitação. A página falsa funcionava como evidência de legalidade.
Numa conversa gravada na sede do Jornal envolvido, uma pessoa fingiu que representava o prefeito para dar o mesmo golpe. Funcionários do jornal afirmaram que faziam a edição com a data que o cliente quisesse, “ainda mais que é pro Tribunal de Contas”. Um ex-funcionário da gestão do prefeito confirmou a denúncia, alegando que era gerada uma publicação com data anterior para constar na prefeitura, para apresentar ao Tribunal de Contas, promotoria, para quem solicitasse.
Na prática, apenas os envolvidos no esquema sabiam dos editais do município, que não chegavam ao conhecimento dos leitores. As edições alteradas eram guardadas na sede do jornal e na prefeitura, numa tentativa de respaldar contratos irregulares. (http://extra.globo.com, 17/04/2015)
Outra situação incomodamente frequente era o aviso intempestivo. Publicava-se em véspera de feriado, como na sexta-feira de Carnaval, perto da Páscoa, Natal, Ano Novo, com a intenção de desviar a atenção dos fornecedores e reduzir o prazo útil para tomar conhecimento dos certames. Era possível fazer um combo com exigências absurdas como visita prévia e garantia de proposta muito antes da abertura da disputa, estrangulando prazos efetivos para tomar providências para participar.
Um caso clássico foi chamado de ‘via-crúcis do licitante’, ilustrando como uma empreiteira da capital de um estado teria que se deslocar várias vezes até a Prefeitura, distante 700km, para adquirir o edital mediante pagamento de taxa para reprodução em CD; outra para apresentar dúvidas, recursos ou impugnações; uma terceira para realizar a vistoria prévia obrigatória do local da obra; uma quarta para entregar os documentos de habilitação e proposta de preços; e uma quinta vez para interpor recursos contra o resultado do julgamento. Tudo só poderia ocorrer de modo presencial.
Felizmente, estamos virando essa página. Ou digitalizando, com perdão do trocadilho.
Estudos apontam, de forma consistente, que mais fornecedores disputando uma licitação levam a menores os preços. E para aumentar a quantidade de licitantes e incrementar competição, duas condições gerais devem ser proporcionadas: (1) informação útil, adequada e oportuna; (2) acesso barato à disputa. O fornecedor precisa saber das intenções de compra do governo de forma simples, rápida, ampla, eficaz e acessível, a fim de aproveitar oportunidades a baixo custo de entrada nas licitações.
Estamos falando de publicidade e transparência efetiva das licitações, simplificação e redução do custo de participação.
Essa ideia já constava da exposição de motivos da Medida Provisória nº 2026/2000, que criou o Pregão como modalidade de licitação. Já naquela época o projeto facultava o uso das novas tecnologias eletrônicas para a realização do pregão, na intenção de reduzir custos e facilitar a participação de maior número de competidores e para possibilitar maior transparência, controle social e oportunidades de acesso às licitações públicas.
Desde então, o pregão eletrônico tem avançado fortemente como principal mecanismo de processamento das compras públicas, pelo menos em âmbito federal. Dados compilados pela CGU revelam a evolução da forma eletrônica do pregão em relação às demais modalidades no Comprasnet, de 2001 a 2022, demonstrando a preponderância de uso da plataforma digital.
Esses números ajudam a ilustrar que a melhor forma de promover transparência, controle social e acesso às licitações é digitalizar as compras e, ao mesmo tempo, simplificar a vida do fornecedor. Publicar todas as licitações num lugar só e facilitar o acesso e preparo dos documentos, diminuindo deslocamentos, evitando ações presencias, automatizando procedimentos, reduzindo custos.
Felizmente, essas diretrizes foram incorporadas na NLL, positivando propostas para aumentar a prevenção às fraudes.
A principal medida de fortalecimento da transparência foi a criação do Portal Nacional das Contratações Públicas (PNCP) para: (a) divulgação centralizada obrigatória e (b) processamento facultativo (art. 174).
O Portal Nacional passa a ser o centro único de informação e apoio ao processamento das compras públicas, contemplando ferramentas acessórias de cadastro, pesquisa de preços, catalogação, além da plataforma eletrônica de condução dos certames, de uso facultativo aos entes federativos.
Em termos de combate a fraudes e desperdício, essa é uma das mudanças mais significativas da NLL.
O PNCP centraliza a publicidade das compras, por meio de um único repositório, em dados abertos, aumentando de forma exponencial o poder de controle automatizado, potencializando o controle social e fomentando sobremaneira a participação dos fornecedores nas aquisições do setor público.
No relatório legislativo que deu origem à NLL, podemos ler a intenção do legislador de inaugurar uma nova era de incentivo à adoção de recursos de tecnologia para facilitar o processamento das licitações e potencializar a transparência, materializando essa premissa por meio do Portal, de modo a divulgar os planos anuais de contratações, editais e a integra de outros documentos, disponibilizando diversas funcionalidades voltadas ao processamento das contratações, com o objetivo de reduzir os custos de transação e potencializar a competitividade.
É preciso reconhecer que a implantação efetiva, avançada e completa do Portal ainda está longe, mas os primeiros passos foram iniciados e as perspectivas são alvissareiras. Os desafios, tanto tecnológicos quanto econômicos, além de culturais, não são pequenos, mas o espírito da NLL parece apontar para um futuro promissor.
Em pesquisa realizada junto aos fornecedores em 2017, o Governo Federal identificou que a principal fonte de informação era o Comprasnet, que 80% utilizavam e metade considerava a mais importante. Quase ninguém lia avisos em jornais e apenas 1% considerava essa a forma mais importante de divulgação. E esse cenário foi levantado há mais de uma década, o que remete à hipótese plausível de que a imensa maioria, senão a totalidade dos fornecedores, utiliza a publicação no site de compras para se informar sobre oportunidades de negócio com o governo.
Isso ilustra o enorme potencial que o PNCP tem e a verdadeira revolução que pode representar na gestão e controle das compras públicas.
Obviamente, isso não significa que todos os riscos de fraude sejam eliminados com a digitalização das compras.
Esse movimento inegavelmente reduz, de modo contundente, as chances de corrupção e irregularidades em alguns aspectos das contratações, mas não ataca todos os problemas e também abre espaço para novas formas de esquemas, novos procedimentos indevidamente restritivos ou de direcionamento.
Por isso, é importante continuar defendendo o avanço incremental do Portal Nacional de Contratações Públicas, com a implantação efetiva de seus mecanismos de transparência e apoio às licitações, como o Cadastro Unificado de Fornecedores e o Catálogo Nacional de Compras Públicas, para aumentar padronização, simplificação e digitalização.
Outra proposta é o Protocolo Padrão de plataformas eletrônicas de compras públicas, estabelecendo os requisitos e condições mínimas de funcionamento e obrigação de interoperabilidade com o Portal Nacional de Compras e outros sistemas da Administração Pública, assim como mecanismos de controle. Ainda mais porque a NLL permite expressamente o uso de plataformas privadas (art. 175, § 1º).
Não há registros de iniciativa que tenha se debruçado sobre os riscos – de fraude e outros – relacionados com os diversos sistemas eletrônicos de processamento das compras disponíveis, públicos e privados, uma área que merece preocupação e atuação específica dos órgãos de controle e regulamentação própria.
Essas medidas estão relacionadas com a ideia de ênfase em mecanismos automatizados de prevenção de riscos em compras. É matéria bastante difundida a possibilidade e o potencial de uso de cruzamentos de dados, métodos econométricos e trilhas automatizadas de auditoria no âmbito de licitações.
Com o aumento do “Big Data”, ou seja, a disponibilidade em tempo real de grandes volumes de dados eletrônicos, os caminhos para a análise quantitativa se expandiram bastante. Indicadores quantitativos podem ser usados em combinação com métodos tradicionais de investigação para melhorar a eficácia e aumentar as taxas de detecção. Por exemplo, indicadores quantitativos podem apontar para mercados específicos e empresas onde é mais provável a fraude. Esses indicadores, chamados de red flags, podem direcionar ações investigativas por métodos tradicionais, otimizando os recursos limitados de investigação.
De modo animador, há iniciativas em curso que apontam para essa linha de atuação. Em abril de 2021, foi anunciada a ferramenta Painel Raio-X do Fornecedor, de uso restrito para agentes de contratações e equipe de apoio, com dados de mais de 300 mil empresas, permitindo cruzamento com cadastros de punições e quadro societário para verificar relações indiretas de um fornecedor com outros CNPJ e CPF.
Conclusão
A Nova Lei de Licitações representa um marco importante na luta contra a corrupção em compras públicas no Brasil. Ao promover maior transparência, centralização de dados e compras em formato eletrônico, a NLL não apenas fortalece os mecanismos de controle, mas também aumenta a confiança da sociedade nas instituições públicas. O desafio agora é garantir a implementação efetiva dessas medidas, de modo que seus benefícios sejam plenamente realizados. Com a nova legislação, o Brasil se posiciona na vanguarda da integridade e eficiência nas contratações públicas, criando um ambiente mais justo e competitivo para todos os envolvidos.
Aproveitar esse cenário para melhorar e desenvolver efetivamente o Portal Nacional de Contratações Públicas pode representar um salto inestimável na prevenção das fraudes.
Ter um portal único representa avanço gigantesco nas ferramentas automatizadas de análise e também um ganho imensurável no controle social. Pode-se imaginar um cenário de convergência de esforços e investimentos dos diversos órgãos de controle, de diversas esferas e poderes, para desenvolver e evoluir ferramentas compartilhadas de investigação e, espera-se, de prevenção de ilícitos, seja de licitações, seja de contratos públicos.
Criar e manter portal único, com um catálogo unificado e linguagem padronizada, bem como o uso intenso da base nacional de Notas Fiscais Eletrônicas, possibilitará o desenvolvimento de ferramentas que gerem alertas em casos de indícios de corrupção, servindo de fonte de informações para os órgãos de controle interno e externo.
A análise de grande volume de dados abrirá espaço para uma mudança considerável no monitoramento do gasto público, facilitando de modo nunca visto antes a identificação de casos de potenciais irregularidades que poderão resultar em atuação dos próprios gestores ou investigações de órgãos de controle, permitindo, por exemplo, identificar, de forma automatizada, fornecedores com sócios laranjas, empresas de fachada, grupos atuando em conluio.
Para saber mais sobre como a Nova Lei de Licitações impacta a prevenção de fraudes, consulte a 4ª edição do livro “Como Combater a Corrupção em Licitações – Detecção e Prevenção de Fraudes” de Franklin Brasil Santos e Kleberson Roberto de Souza, que oferece uma análise detalhada das mudanças e suas implicações práticas, incluindo um capítulo específico sobre Gestão de Riscos Antifraude.