A Lei 12.846 é popularmente chamada de Lei Anticorrupção. Isso pode ser um dos fatores que torna desconhecida do público a amplitude de casos que podem ser punidos com base nela.
A legislação central no arcabouço de combate à corrupção no Brasil, a Lei 12.846/2013, ganhou um nome da sociedade que não representa toda a sua amplitude. É o que pensa o Promotor de Justiça do Espírito, Marcelo Zenkner.
Doutor em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa, Zenkner atuou como Secretário de Controle e Transparência do Espírito Santo, a primeira pasta estadual a criar uma estrutura administrativa e a aplicar sanções administrativas com base na Lei Anticorrupção Empresarial. Nessa entrevista, ele explica porque acredita que a lei deveria ter uma outra nomenclatura e que poderia, inclusive, ser aplicada contra as empresas envolvidas com a recente greve dos caminhoneiros que parou o Brasil.
Por que você acredita não ser adequado tratar a Lei 12.846/2013 de “Lei Anticorrupção Empresarial”, como ela é popularmente conhecida? Isso faria alguma diferença?
A Lei 12.846/2013 ficou conhecida no Brasil como “Lei Anticorrupção Empresarial”, mas muito melhor seria fosse adotada a tradução da nomenclatura utilizada pela comunidade jurídica internacional: Brazilian Clean Companies Act – BCCA –, ou Lei das Empresas Limpas. Isso porque a lei, em primeiro lugar, não incide apenas sobre as sociedades empresárias brasileiras, mas também sobre as sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou do modelo societário, fundações, associações de entidades ou pessoas, e sociedades estrangeiras que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
Além disso, os ilícitos nela descritos não guardam subsunção apenas com o crime de corrupção, possuindo uma abrangência muito maior. O objetivo central da lei, aliás, é fazer com o que o ambiente negocial brasileiro evolua até a chegada do momento em que as próprias companhias passarão a investir estrategicamente no aprimoramento de seus sistemas de integridade diante da percepção dos benefícios que são gerados não apenas a partir do cumprimento de regras e regulamentos, mas, principalmente, de uma nova cultura calcada em valores enraizados na corporação. Por isso, a nomenclatura mais adequada para tratar essa lei é Lei de Integridade das Pessoas Jurídicas – LIPJ –, pois só assim se pode associar a ela seu verdadeiro sentido e de forma absolutamente positiva.
O mercado não costuma dar atenção a amplitude da Lei nº 12.846. Tão pouco, as autoridades fazem uso de todas as possibilidades que ela oferece em termos de punição. É uma questão de falta de clareza do Poder Público, ou é uma questão de tempo até novas punições começarem a surgir?
Penso que é apenas uma questão de tempo. Todo novo corpo normativo precisa de certo grau de maturação para que passe a produzir os resultados que dele se esperam. Com a Lei 12.846/2013 não será diferente, até porque está ela embasada em uma política internacional de combate à corrupção que ainda não havia sido experimentada no Brasil, voltada muito mais na prevenção que na repressão. É fato que o Poder Público ainda tem mostrado certa lentidão na aplicação de suas diretrizes, o que se dá por uma série de razões diferentes:
- ausência de regulamentação no plano estadual ou municipal;
- falta de implementação de estrutura administrativa que permita aos órgãos de controle interno iniciar uma investigação ou um processo administrativo de responsabilização;
- investigações ou processos que, apesar de iniciados, se arrastam por um longo período, indefinidamente e sem qualquer conclusão, etc.
Por outro lado, constatada a omissão das autoridades administrativas máximas de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário quanto à responsabilização administrativa das pessoas jurídicas envolvidas em atos lesivos, a Lei de Integridade das Pessoas Jurídicas dá expressa autorização para que as sanções administrativas nela listadas sejam aplicadas no âmbito de um processo judicial que pode ser deflagrado, inclusive, pelo Ministério Público. Nesse sentido, se houver o devido engajamento dos membros do Ministério Público em relação a essa importante questão, a Instituição poderá funcionar até mesmo como uma mola propulsora na implementação da lei no plano administrativo.
Ela poderia abarcar, por exemplo, punições contra as empresas de transporte envolvidas nas greves dos caminhoneiros?
Sim, aliás é esse um excelente exemplo para demonstrar que a Lei 12.846/2013 não é voltada apenas para o enfrentamento à corrupção, mas sim para a integridade empresarial. O locaute nada mais é que a paralisação das atividades de produção ou de trabalho por iniciativa dos empregadores ou com seu apoio, os quais agem motivados por interesses próprios e sem expressa autorização de Tribunal competente de modo a impedir que os trabalhadores realizem suas habituais atividades laborais.
Em tais casos pode perfeitamente ser invocada a aplicação da Lei 12.846/2013, que prevê no inciso III do seu artigo 5º, que “constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: […] comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.”
Note-se que, neste ato lesivo em particular, a lei nem sequer exige o conhecimento ou consentimento da pessoa física ou jurídica no esquema engendrado, razão pela qual, em qualquer das hipóteses elencadas, a pessoa jurídica vinculada à ocultação ou dissimulação de seu interesse (ou de sua identidade), deverá ser devidamente responsabilizada. Por isso, havendo comprovação de que as empresas de transportes rodoviários se valeram dos trabalhadores para pressionar o governo federal e, sub-repticiamente, alcançar os benefícios fiscais que lhes foram concedidos, poderão incorrer em sanções proporcionais à gravidade do ato que praticaram, como multa de até 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, suspensão ou interdição parcial de suas atividades e até mesmo a proibição, pelo prazo de até cinco anos, de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público.
E como fica a responsabilização nesse caso? É necessário comprovar factualmente que as empresas se beneficiaram do movimento, correto?
Como a lei em questão está calcada em um sistema de responsabilidade objetiva, não há a necessidade de demonstração do dolo ou mesmo da culpa para que haja a devida responsabilização da pessoa jurídica. Basta a demonstração de que houve a prática de um ato lesivo, que ele tenha sido praticado por empregado da pessoa jurídica acusada ou terceiro que age em seu nome e que a conduta tenha se dado no seu interesse ou benefício, exclusivo ou não. Esse regime já supera aquele indicado na Lei 8.429/92 (Lei de Defesa da Probidade Administrativa), o qual sempre exigirá a demonstração de dolo em relação a estas e o envolvimento de pelo menos m agente público para fins de aplicação das sanções ali estabelecidas.
Não restam dúvidas, por isso, de que a Lei 12.846/2013 estabelece, a partir do regime de responsabilidade objetiva, um novo cenário de riscos de sancionamento para o empresariado. O grau de exposição às punições, entretanto, variará de acordo com o comportamento que será adotado por cada corporação, sendo maior para aquelas que não se preocuparem com a implementação de sistemas de integridade para orientar, controlar e, eventualmente, punir os seus próprios funcionários, e menor para as empresas que investem na prevenção, procedem de forma correta e têm a integridade como valor ínsito aos negócios.
A Lei 12.846/2013 também poderia ser aplicada em outros crimes empresariais, como formação de cartel e dumping?
Sim, mas desde que o ato lesivo esteja diretamente relacionado à uma atividade de interesse do Poder Público. Isso porque ela estabelece que deve ser sancionada a conduta de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público.
É interessante notar o ato lesivo da Lei 12.846/2013 em muito se assemelha àquele previsto na Lei 12.529/2011, ou seja, “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma, preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública” (art. 36, § 3º, inciso I, alínea “d”). Entretanto, conforme previsão constante da própria Lei Antitruste, a repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (art. 35), mesmo no plano meramente administrativo, como acontece em relação àqueles previstos na Lei nº 12.846/2013.
Os verbos nucleares do tipo da Lei de Integridade das Pessoas Jurídicas são frustrar e fraudar, os quais possuem significados bastante diferentes: enquanto o primeiro pressupõe a ideia de impedir ou obstar, o segundo passa a ideia de criar um engodo ou burlar, mediante expediente ardiloso, o caráter competitivo da licitação. Assim, são consideradas ilícitas tanto a conduta de combinar preços, com a formação de cartel (bid rigging), como também a de apresentar dados ou informações incorretas ou documentos material ou ideologicamente falsos.
Como se daria, nesse caso, a aplicação de multas pela CGU? Como evitar um potencial conflito com outros órgãos, como CADE e AGU, na aplicação das multas, ou mesmo em eventuais negociações de leniência?
A tramitação dos processos administrativos de responsabilização, que podem gerar a aplicação de multas, tem se concentrado principalmente no Ministério da Transparência (CGU), que já evoluiu bastante nesse campo e, por certo, evitará o bis in idem. Por outro lado, o sistema de leniência da Lei 12.846/2013 ainda representa um problema diante da pulverização da competência administrativa para a celebração de acordos dessa natureza, ao contrário do que fez a Lei n.º 12.529/2011, que estabeleceu competência exclusiva nesse sentido para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
De acordo com a Lei de Integridade das Pessoas Jurídicas, “[a] autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo” (art. 16, caput). Por esse motivo, é profundamente recomendável que Estados e Municípios, ao regulamentarem a Lei 12.846/2013, restrinjam a abrangência legal dessa competência administrativa, preferencialmente indicando a autoridade máxima do órgão de controle interno como sendo a responsável, com exclusividade, para celebrar acordos de leniência.
Pelo menos no âmbito do Poder Executivo federal, o legislador, ainda que contrariando aquilo que previu no caput, estabeleceu, no § 10 do mesmo art. 16, que a CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência, inclusive no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira, observado o procedimento estabelecido nos arts. 27 a 37 da Portaria CGU n.º 910, de 7 de abril de 2015. O melhor sistema, entretanto, é aquele que seja capaz de gerar o envolvimento de todos os órgãos estatais na elaboração do acordo de leniência: Advocacia-Geral da União, Ministério Público, Tribunal de Contas da União e CGU, pois, assim, haveria, ao mesmo tempo, segurança jurídica, possibilidade de concessão de maiores benefícios e afastamento dos riscos de impunidade. É nesse sentido que a legislação e as instituições precisam avançar.
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Publicado originariamente na Revista LEC, edição nº 22, com o título: “Por que limitar?”.
Imagem: Freepik