Discorremos anteriormente sobre qual fora o espírito do legislador ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a responsabilização objetiva administrativa e civil da pessoa jurídica por atos de corrupção. A análise dos antecedentes e das motivações que ensejaram a criação da norma (interpretação histórica) evidenciou que sua gênese e alcance guardam íntima e específica correlação com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção, não se desdobrando, portanto, para condutas outras alheias a essa temática.
E não haveria como ser diferente. Na medida em que as leis são pensadas para organizar a sociedade de seu tempo, estabelecendo direitos, obrigações, proibições e punições, não há como dissociar sua interpretação do contexto em que emana a vontade do legislador. O mais antigo código de leis, o Código de Hamurabi, surgido em 1.800 a.C. na Babilônia, possuía 282 artigos e, muito embora buscasse equalizar valores e equilibrar ações e consequências, a parte das leis criminais permaneceu baseada no princípio do Talião (sinônimo de retaliação), mais conhecido como a lei do “olho por olho, dente por dente”, fazendo com que a pena de morte fosse largamente aplicada. Hamurabi era um grande guerreiro, conquistador de povos, sendo natural que sua vocação se refletisse nas leis que promulgou, daí porque se diz que a lei está no espírito do legislador. A título de exemplo e distinção, esse código previa que “Se uma casa mal construída causa a morte de um filho do dono da casa, então o filho do construtor da casa será condenado à morte” (seção 230), enquanto que o Torah, provavelmente escrito no século XII, que deriva da palavra em hebraico yãrãh – instrua, dirija, mostre, previa que “Pais não devem ser condenados à morte por conta dos filhos, e os filhos não devem ser condenados à morte por conta dos pais” (Deut. 23:15).
Portanto, desde os primórdios, as leis refletem o momento, a cultura e as necessidades de determinada sociedade, que compõem o espírito do legislador em sua gênese, daí porque, até os dias de hoje, é ele regra indelével de hermenêutica do âmbito de tutela de qualquer lei, sendo sua interpretação histórica fundamental, não podendo ser diferente com a Lei 12.846/13 que, não por menos, foi por todos alcunhada de Lei Anticorrupção. Mas o que isso tudo tem a ver com a Lei Anticorrupção? Com o desvirtuamento que está sendo promovido na aplicação do inciso V, do artigo 5º, que prevê o embaraço à fiscalização. Diversos órgãos de controle, fazendo mais valia de uma interpretação meramente gramatical da (imprecisão da) norma, vem sustentando cuidar a lei de quaisquer atos potencialmente lesivos à administração pública, mesmo sem a prática de algum ato concreto de corrupção ou o envolvimento de agentes públicos.
Realmente, isso é uma impropriedade, que não pode prevalecer e tornar-se regra geral! Vejam que, partindo-se de uma interpretação sistemática dos dispositivos da Lei Anticorrupção, que propugna conciliar cada parte, cada fração, com o todo normativo, verifica-se que basicamente são duas as espécies de atos lesivos autônomos tipificados no seu artigo 5º: a corrupção em sentido estrito, caracterizada pela promessa, oferecimento ou dação de vantagem indevida a agente público (inciso I), e as fraudes em licitações e contratos administrativos (inciso IV). Já os demais incisos do artigo 5º preveem condutas dependentes dessas anteriores, e que, portanto, não existem delas desvinculadas. Logo, o ato lesivo de dificultar atividade de fiscalização ou investigação previsto no inciso V não pode ser interpretado isoladamente, sem conexão com o todo logicamente articulado na Lei Anticorrupção, e que, pois, atrela o embaraço à prática da corrupção ou à apuração de fraude nas licitações e nos contratos administrativos.
Do mesmo modo, analisando-se, à luz de uma interpretação sociológica, as relações sociais contemporâneas que ensejaram a idealização da Lei Anticorrupção, tem-se que sua finalidade foi incrementar, por meio de regras inovadoras de responsabilização, o combate à corrupção empresarial no seio da sociedade brasileira – em que o jeitinho, todos sabemos, afigura-se quase como axioma cultural –, percepção essa inclusive corroborada pelas operações policiais de enfrentamento da corrupção nos anos que se seguiram à sua promulgação. Daí porque sustentar que a Lei 12.846/2013 encamparia no inciso V de seu artigo 5º qualquer agir que trouxesse óbice à fiscalização ou à investigação de agentes públicos fora de um cenário envolvendo corrupção, carece de sentido, pois a não apresentação de um documento a uma agência fiscalizadora, por exemplo, nem se vincula ao combate à corrupção almejada pela sociedade com a criação da norma, nem está ela normativamente desamparada, pois outras normas sempre existiram no ordenamento a punir eventual embaraço fiscalizatório.
Um quinto método de interpretação, o teleológico, preconiza investigar o fim do preceito normativo para encontrar seu verdadeiro significado. Aqui, mais uma vez, considerando que o objetivo da Lei Anticorrupção não é criar uma norma geral de combate a atos ilícitos contra a Administração Pública, mas sim daqueles que envolvem particularmente a corrupção de agentes públicos por intermédio de empresas, é um tanto evidente que não tem guarida a interpretação elástica de que o tipo de embaraço à fiscalização abrange a de natureza tributária ou de trânsito, por exemplo, exceto, claro, se se almejar obstaculizá-la mediante o oferecimento de vantagem indevida ao agente fiscalizador.
Portanto, resta claro que a pretensão de alguns órgãos de controle de responsabilizar pessoas jurídicas no âmbito da Lei Anticorrupção, submetendo-lhes às graves penas nesta previstas, em casos que não versam sobre corrupção ou compreendam condutas dessa natureza, resulta de uma interpretação deturpada da norma e contrária aos métodos hermenêuticos que a orientam.
Ademais, admitida essa interpretação, estar-se-á em muitos casos punindo-se duas vezes o mesmo fato pela mesma razão, o que não só implica em preterição ao princípio da especialidade, de larga aplicação no direito administrativo sancionador, como viola a proibição do bis in idem.
Logo, é preciso racionalizar o emprego da Lei Anticorrupção sob pena de uma aplicação desvirtuada e descontextualizada de seu espírito criador culminar em sua deslegitimação.