Num acordo anunciado em março e costurado em várias frentes, a gigante da aviação europeia Airbus, aceitou pagar 3.598 bilhões de euros (mais de R$ 20 bilhões pelo câmbio atual) em multas às autoridades francesas, inglesas e norte-americanas para encerrar investigações desses países sobre práticas de corrupção e fraudes nos livros fiscais decorrentes dos atos ilícitos.
Do valor da multa, 2.083 bilhões de euros serão destinados ao Parquet National Financier (PNF), equivalente a procuradoria financeira do governo francês; e 984 milhões ao Serious Fraud Office (SFO) britânico. Os norte-americanos vão receber 526 milhões de euros via o acordo com o Departamenro de Justiça (DoJ) e outros nove milhões de euros para o Departamento de Estado, referente à investigação sobre registros imprecisos e falsos, que violam o Regulamento Internacional de Tráfico de Armas dos EUA (ITAR). Desse montante, 4.5 milhões podem ser usados para medidas de cumprimento corretivas aprovadas.
Com o acordo e sem admitir responsabilidade pelos fatos investigados, a companhia terá os processos contra ela suspensos por três anos. As acusações serão retiradas se a Airbus cumprir os termos acordados com as autoridades ao longo deste período. A indicação de um monitor independente foi estabelecida apenas pela autoridade francesa, que estabeleceu a obrigação da Airbus submeter seu programa de conformidade às auditorias realizadas pela Agência Francesa de Anticorrupção (AFA) por um período de três anos. A luz do monitoramento francês, nem o SFO nem o DoJ impuseram monitores próprios.
Já o acordo com o Departamento de Estado encerra todas as acusações de violações civis do ITAR. Nesse caso, a Airbus concordou em manter um oficial independente de conformidade com foco no controle de exportação. Esse oficial irá monitorar a eficácia das exportações da Airbus, os sistemas de controle e a conformidade com o ITAR.
Para Denis Ranque, presidente do Conselho de Administração da Airbus, os acordos alcançados pela empresa demonstram que a decisão de relatar e cooperar voluntariamente com as autoridades foi a mais correta. “O compromisso da Diretoria e de seu Comitê de Ética e Compliance de fornecer suporte total à investigação e à implementação de padrões de conformidade reconhecidos globalmente abriu o caminho para os acordos de hoje”, disse o chairman em comunicado.
A empresa área também diz ter tomado medidas significativas para garantir que as condutas erráticas investigadas (mas não assumidas formalmente), não ocorram novamente. “Os acordos que alcançamos hoje mudam a página sobre práticas comerciais inaceitáveis do passado. O fortalecimento de nossos programas de conformidade foi projetado para garantir que tal conduta indevida não ocorra novamente”, diz Ranque. O sistema de Compliance, que hoje, tem a supervisão de um painel independente de Conformidade, que funciona como um órgão revisor.
Entendendo a Sapin2
Legislação anticorrupção francesa, a Sapin 2 vem ganhando mais espaço nas discussões entre os profissionais que atuam na área de Compliance. Por ser uma das mais recentes, ela ainda suscita muitas dúvidas sobre o seu mecanismo de funcionamento e sobre como as autoridades da Agência Francesa Anticorrupção vão agir em relação aos programas de Compliance das empresas investigadas.
Por isso, na medida em que as primeiras decisões vão surgindo, os especialistas correm para ler as decisões e buscar mais informações. Foi o que fizeram Xavier Oustalniol e Véronique Chauveau, respectivamente sócio e diretora-gerente da consultoria especializada StoneTurn. Em artigo para o site FCPA Blog, os dois se debruçaram para entender, especialmente, os motivos que levaram a Comissão de Sanções – órgão que opera com independência em relação ao corpo funcional da agência – a não concordar com alegações e recomendações da AFA por supostas violações a Sapin 2 contra a companhia de especialidades minerais Imerys e, antes dela, contra a Sonepar, que atua na distribuição global de produtos elétricos.
No caso da Imerys, a AFA apontou que após uma ampla auditoria, teria identificado três violações em relação ao artigo 17 da Sapin 2. A companhia teria falhado ao tratar dos riscos específicos associados ao setor, à atividade e à localização geográfica da empresa em seu mapeamento de riscos; mantinha um código de conduta desatualizado e inadequado e não levara em consideração os riscos de corrupção aos quais foi exposto nos seus procedimentos contábeis.
Por essas violações, a AFA recomendou que a Comissão de Sanções obrigasse a Imerys a atualizar seu mapeamento de riscos de suborno até 1 de março de 2020 e o seu código de conduta e procedimentos contábeis dos funcionários até 6 de junho de 2020. A agência também solicitou uma multa de um milhão de euros contra a empresa e outra de cem mil euros contra o CEO anterior da companhia. A Imerys questionou as alegações.
De acordo com os especialistas da StoneTurn, após uma longa investigação, a Comissão de Sanções reconheceu que, embora o mapeamento de riscos possa não ter sido realizado com o nível de granularidade adequado e que a metodologia não oferecia tanta consistência, a Sapin 2 não especifica o nível de granularidade apropriado a seguir. Além disso, a lei também não exige que a empresa tenha um plano de ação. A Imerys também recebeu créditos por ter cumprido algumas das etapas da recomendação da AFA para mapeamento de riscos, processo no qual foi auxiliada por um consultor externo especializado.
O ponto de maior concordância da Comissão de Sanções com as recomendações da AFA foi a de que a Imerys precisava atualizar seu código de conduta dos funcionários e melhor integrá-lo a outros códigos de conduta e ao manual de ética da empresa; bem como, atualizar procedimentos e controles contábeis em torno do risco de corrupção. Mas a Comissão deu até 1 de setembro de 2020 e 31 de março de 2021, para que a Imerys faça as atualizações dos respectivos procedimentos.
A Sonepar também foi acusada de ter violado seções do artigo 17 da Sapin 2. Mas, a comissão considerou que os controles e procedimentos da empresa eram compatíveis com o que pedia a lei.
Os dois casos trazem uma visão importante sobre o funcionamento da lei de acordo com os especialistas. Um deles é o de que o ônus da prova recai sobre a AFA. É a agência que tem de demonstrar como a eventual falha de implementar suas recomendações resultaria em uma violação da Sapin 2.
Outro aspecto importante é que as investigações são longas. Isso dá as empresas tempo suficiente entre o anúncio da auditoria e o anúncio das decisões. Com isso, as empresas conseguissem fazer melhorias e seguissem as recomendações da agência, o que lhes concedeu crédito no julgamento. No caso da Sonepar, o prazo da investigação foi de 20 meses e para a Imerys, de dois anos.
O uso de especialistas externos é considerado parte da demonstração de uma abordagem abrangente das avaliações e controles necessários. Em relação ao mapeamento de riscos, embora existam várias abordagens possíveis, as empresas estão recebendo crédito por documentar os seus procedimentos e testes. Por fim é importante mostrar progresso na implementação das recomendações da AFA, em especial no que diz respeito aos controles internos para conter a corrupção.
Onde os problemas acontecem
Grandes projetos de infraestrutura pública costumam ser um prato cheio para aqueles que estão dispostos a ganhar negócios, nem que para isso precisem corromper ou aceitem ser corrompidos. Projetos dessa natureza costumam oferecer muitas áreas escuras, nos quais a corrupção pode acontecer, especialmente nos países em desenvolvimento e com níveis mais elevados de corrupção.
Para a OCDE, avaliações e um gerenciamento de riscos mais abrangentes pode ajudar os gestores públicos a antecipar e mitigar esses riscos. Mas, a organização reconhece que realizar a avaliação de riscos ao longo de todo o ciclo de um projeto de infraestrutura, e não apenas durante a fase de compras, é desafiadora, até pelo número de partes envolvidas e pela próprio complexidade da obra.
Porém, o avanço no uso de dados e ferramentas digitais por cada vez mais governos, criou um aliado importante para avaliar os riscos de fraude e corrupção na infraestrutura. A OCDE tem ajudado a difundir exemplos de como vários países tem usado essas novas possibilidades para melhorar seus processos. Na Coréia do Sul, a Comissão de Comércio Justo usa o Sistema de Análise de Indicadores de Bid-Rigging (BRIAS), para analisar grandes volumes de dados de entidades públicas coreanas e criar uma pontuação de probabilidade para fraudes por área e tipo de obras. Já no Chile, o governo usa a mineração de dados no sistema de compras eletrônicas para evitar conluio e favoritismo.
Esses esforços vêm se desenvolvendo rapidamente nos últimos anos, à medida que os governos adotam estratégias digitais e tiram vantagem das plataformas de dados abertos, big data e análise de dados. No entanto, a OCDE alerta que a confiabilidade e a precisão das avaliações de risco são um problema para as entidades públicas.
Na área de infraestrutura, gerentes de projeto, gerentes de risco, autoridades de compras e órgãos de supervisão geralmente confiam em metodologias qualitativas, como pesquisas e entrevistas para identificação e pontuação de riscos. Abordagens como essas, são um meio de envolver indivíduos de toda a organização no gerenciamento de riscos. Mas elas podem ter muito da percepção de quem conduz os processos estando sujeitas a preconceitos e imprecisões devido a uma série de fatores. É nesse ponto que o uso da análise de dados pode complementar as metodologias qualitativas e melhorar o entendimento dos gestores sobre os riscos, reduzindo os falsos positivos e negativos e permitindo decisões mais bem fundadas em evidências sobre medidas de mitigação. O uso da análise de dados para avaliações de risco pode complementar metodologias qualitativas.
As avaliações de risco de corrupção orientadas por dados também ajudam os gestores públicos a identificar as transações mais arriscadas e a adaptar as atividades de controle ao longo do ciclo do projeto.
Para uma boa análise, dados de qualidade são necessários
Muitos países enfrentam desafios no uso de tecnologias digitais para incentivar a inovação, a transparência e a eficiência no setor público. Por isso, a OCDE acredita que vincular a análise de dados a objetivos mais amplos de gestão de riscos pode ajudar a promover melhorias mais amplas na governança, na infraestrutura de dados e na institucionalização de sua adoção por governos. As idéias podem ser aplicadas ao uso de várias fontes de dados, como dados do governo, dados abertos e big data.
A OCDE lembra que quando o assunto é transformação digital, a “Cultura” é um fator crítico eleva em conta não apenas o comprometimento da liderança, mas também experiências de baixo para cima nos diferentes níveis do projeto. Outro aspecto importante para governos que tem planos de ampliar o uso de dados e tecnologias é estabelecer “vitórias rápidas”, em especial quando se faz uso deles pela primeira vez. Isso é importante para ajudar a promover comprometimento e demonstrar os benefícios de investir em metodologias orientadas a dados, ajudando a definir expectativas realistas sobre o seu valor.
Por fim, é sempre importante deixar claro que a análise de dados é uma ferramenta a mais. Ela não substitui o julgamento humano e o ceticismo profissional de servidores públicos comprometidos e experientes.
Publicado originalmente na edição 28 da revista LEC: “Turbulência em terra firme”
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