O Chile vive momentos de grandes transformações sociais e econômicas e, junto com elas, vem sendo forjada a visão sobre a necessidade da área de Compliance, mesmo no Chile, um país no qual, até ontem, acreditava-se que não existia corrupção.
O Chile sempre foi visto como uma espécie de mosca branca entre os países da América Latina.
Primeiro sul-americano a fazer parte da OCDE, já em 2010, o país sempre foi tido como o mais estável social, política e economicamente dessas bandas (um dos poucos, na verdade) e há tempos ostenta os melhores índices de desenvolvimento humano da região. Embora alavancada pelo comércio de suas riquezas minerais (em especial o cobre, que representa 50% das exportações), a economia chilena é bastante diversificada, com a indústria respondendo por cerca de um terço do PIB, e muito aberta ao comércio global, algo que também destoa do protecionismo que costuma ser adotado nos países do Mercosul, por exemplo. Quarta maior economia da região numa disputa apertada com a Colômbia, o PIB do Chile em 2021 foi de cerca de US$ 320 bilhões. Pouco quando se compara ao US$ 1,6 trilhão do PIB brasileiro. Mas, é preciso lembrar que os 20 milhões de habitantes chilenos representam menos de 10% da população daqui. Isso explica os mais de US$ 16 mil de PIB per capita, que o coloca no topo desse ranking na região, também ao lado dos uruguaios, e muito à frente de países como México, Argentina, Colômbia e o próprio Brasil. Além disso, o Chile soma 75 pontos no índice de liberdade econômica da Heritage Foundation, o que o coloca na 19º posição global (segundo lugar na América Latina), e tem nota 7,65 na classificação do ambiente de negócios, que o coloca também na 19º posição do ranking produzido pela Economist Intelligence Unit. É como se o país estivesse num nível diferente, superior em relação às outras nações da região.
O Chile ainda sustenta todos esses predicados e, certamente, numa análise de contexto sócio-econômico mais ampla, segue sendo o país mais bem resolvido dentre as principais economias da região. Mas, pelo menos desde meados da última década, o país imprensado entre o Pácifico e a Cordilheira dos Andes vem sendo chacoalhado por uma pressão por mudanças vindas da sociedade como há muito não se via. Desde a volta do país à normalidade democrática, em 1990, governos de coalizões de centro-esquerda e centro-direita se alternavam no poder e, em linhas gerais, mantinham as bases do contrato social mais ou menos nos mesmos termos. Em muitos aspectos, em especial os econômicos, esse contrato estava baseado em premissas e modelos desenhados durante o duríssimo regime militar estabelecido com o golpe de 1973 e comandado com mãos de ferro pelo ditador Augusto Pinochet. Para muitos, trata-se do mais bem sucedido plano de adoção de uma economia liberal da região. De fato, esse modelo manteve não só a estabilidade política e econômica do Chile por muitos anos. O país cresceu, conseguiu reduzir a pobreza drasticamente, mas também sustentou algum grau de coesão social em uma nação que é, reconhecidamente, bastante conservadora. Entretanto, passadas quatro décadas, o quadro começou a mudar de forma mais drástica e rápida, o que tem levado o país a discussões profundas sobre a reforma do Estado e a construção de um novo contrato social, que consiga tirar o Chile do status quo no qual o país viveu com relativa tranquilidade, mas que parece indicar não ser mais suficiente para responder aos anseios dessa nova sociedade em transformação.
Podemos traçar um paralelo desse novo choque de realidade pelo qual passa a sociedade chilena em relação à questão do combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no país. Sim, o Chile é de longe o país que dispõe dos melhores índices de percepção da corrupção na América Latina (atrás apenas do Uruguai), com 67 pontos, a mesma dos Estados Unidos. Somado a isso à estabilidade na economia e na política, fato é que o Chile acabava deliberadamente ficando de fora do radar das áreas de compliance globais. Numa região de países maiores e com sérios problemas históricos, caso de México, Brasil e a própria Venezuela, que chegou a ocupar a terceira posição no ranking, porque alguém perderia tempo olhando para o “certinho” Chile?
O país também foi o primeiro a ter uma lei de responsabilização criminal das empresas. Sancionada em 2009, a Lei 20.393 veio na esteira dos compromissos assumidos pelo Chile no seu processo de filiação à OCDE e já abarcava crimes como lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e suborno a funcionários públicos chilenos ou estrangeiros. Para Susana Sierra, CEO da consultoria especializada BH Compliance, com bases em Miami e Santiago, é a entrada em vigor desta lei que deu o primeiro impulso ao tema do Compliance localmente. Isso porque ela também estabelecia a necessidade da criação dos programas de compliance e recomendava que esses mesmos programas fossem certificados por empresas locais credenciadas pela Superintendência de Valores e Seguros do Chile. Mas a verdade é que, por muito tempo, a “lei não pegou”, para usar um eufemismo conhecido dos brasileiros. “É como se fosse uma lei morta, ninguém se preocupava com ela”, lembra Sierra. Porque aí, a autoimagem de que o Chile era um país sério e de que não existia corrupção no seu território não permitia às empresas ver qualquer necessidade de implementar algo nesse sentido. Até que em 2014 e 2015, vieram à tona alguns escândalos de corrupção envolvendo principalmente políticos e o financiamento irregular de campanhas por empresas de diferentes setores econômicos dando um choque de realidade. “Foi quando a sociedade chilena ‘descobriu’ que havia corrupção no Chile”, conta a CEO da BH Compliance.
Os casos de corrupção mais notórios desse período envolvem o esquema de suborno e evasão fiscal do Banco Penta, tido como um ponto de virada nos esforços de combate à corrupção no Chile. Outro caso rumoroso foi o da SQM, companhia de recursos minerais com papéis listados na Bolsa de Nova York. Em 2018, a empresa pagou multa de US$ 15 milhões às autoridades norte-americanas por violação ao FCPA envolvendo doações disfarçadas a políticos e agentes públicos do país. Esse é o único caso recente de propinas pagas no país alcançado pelos norte-americanos. Apenas outros dois casos envolvem o país em violações ao FCPA, sendo que apenas um deles envolve propinas pagas a agentes públicos chilenos, o caso da International Systems & Controls Corporation, de 1979, ainda nos primórdios do FCPA e que não gerou nenhuma sanção pecuniária à empresa que teria pago US$ 23 milhões em propina em vários países. Já a sanção aplicada contra a companhia aérea chilena Latam, foi por um caso de suborno pago na Argentina. Podem parecer situações diminutas quando comparadas ao que se costuma ver nos países latino-americanos, mas para os padrões chilenos, foi um baque. Tanto que é a partir desse ponto da história que o Estado chileno começa a endurecer as normas de combate à corrupção no país. Embora os 67 pontos no índice de percepção da corrupção sejam uma nota bastante alta, em 2014, essa pontuação estava em 73 pontos. Desde então, a pontuação nunca mais voltou a ficar acima dos 70 pontos.
Essa imagem de um país no qual a corrupção não era um problema (porque não se via) deles, sempre foi sustentada pelos próprios chilenos, que se viam como um povo sempre em conformidade com as leis. Alguns Compliance Officers com atuação regional sediados no Brasil, até alguns anos atrás diziam que os profissionais do Chile tinham dificuldade em entender por que precisavam participar de treinamentos de conformidade, se eles já cumpriam com todas as regras.
A perspectiva de um aumento na pressão das autoridades no que diz respeito ao combate à corrupção no país serviu como uma espécie de alerta para as empresas, que passaram a se dar conta de que o mesmo tipo de escândalos envolvendo relações com agentes públicos e políticos poderia acontecer com elas também. Ainda que relutantes, tudo o que eclodiu em 2014 e 2015 fez com que o empresariado local entendesse que precisaria se adaptar para estarem de acordo com a lei, até para se protegerem. “Hoje, posso dizer que ao menos as grandes empresas no Chile têm os seus programas de Compliance”, atesta Sierra. “Não saberia dizer se são os melhores programas, mas ao menos eles já entenderam que não se trata de ter algo só no papel, ou um código de conduta, mas que é preciso estabelecer mecanismos de controle para acompanhar sua execução”, emenda.