O COAF, a unidade de inteligência financeira nacional, que é o órgão que recebe boa parte das comunicações que vão dar início (ou fazer avançar) investigações relacionadas à lavagem de dinheiro e aos seus crimes correlatos, teve um ano de 2022 bastante produtivo. De acordo com o relatório de gestão sobre as atividades do órgão no último ano, foram produzidos 13.198 Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s). O avanço de 5,5% na comparação com o número de RIF’s produzidos no ano anterior pode parecer pequeno, mas o número de pessoas físicas e jurídicas relacionadas no conjunto dos relatórios deu um salto gigantesco. Se em 2021, os RIF’s relacionavam-se a pouco mais de 900 mil pessoas, no último ano, os relatórios consolidados apontaram cerca de 1,5 milhão de pessoas. O número de comunicações de operações financeiras provenientes dos setores obrigados consolidadas nos relatórios de inteligência financeira saltou de 479 mil em 2021 para 528 mil em 2022.
A base de dados do Coaf reúne mais de 42 milhões de comunicações de operações, das quais aproximadamente 7,7 milhões foram recebidas em 2022.
Dentre os setores obrigados, o setor de bancos voltou a ser o maior emissor de Comunicação de Operação Suspeita (COS), que são aquelas nos quais empresas e profissionais de setores obrigados percebem em transações de seus clientes indícios de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo ou de outros ilícitos. Neste ano, os bancos realizaram 704 mil COS, um avanço bastante forte frente aos 437 mil COS emitidos em 2021. Embora façam a comunicação ao COAF, os bancos estão sob a supervisão direta do Banco Central. Os notários e registradores, regulados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em 2021 haviam liderado o ranking de COS, viram o número de comunicações sofrer uma ligeira queda, de 526 mil COS emitidos em 2021 para os 510 mil realizados no último ano. Regulado pela SUSEP, o mercado segurados foi o que apresentou o maior crescimento em termos de comunicações de operações suspeitas ao COAF. Se em 2021 o setor emitiu 61 mil comunicados, em 2022 esse indicador saltou para 387 mil COS.
Dos segmentos fiscalizados pelo próprio COAF, os negócios de bens de luxo ou de alto valor foram tanto os que geraram o maior número de COS quanto o que mais cresceu, dobrando o número de reports. Foram 9.212 comunicações realizadas em 2022, ante 4.530 feitas em 2021. Ainda na perspectiva dos setores fiscalizados pelo próprio COAF, em dezembro de 2022, mantinham-se cadastradas no Coaf 18.329 pessoas obrigadas, notadamente jurídicas, que se assumem de modo formal como diretamente sujeitas à supervisão do órgão. Para o COAF, esse contingente se insere em um universo de mais de 200 mil pessoas que o órgão estima que possam estar eventualmente sujeitas à supervisão direta da UIF.
Para dar conta desse universo fiscalizável diretamente (além de toda a análise e produção de inteligência à partir das comunicações recebidas de outros setores) com uma estrutura que ao final de 2022 era composta por apenas 89 técnicos, recrutados de outros quadros do setor público (o COAF não conta com uma carreira própria), a UIF tem adotado como estratégia a intensificação da denominada abordagem baseada em risco (ABR) e do uso de ferramentas tecnológicas. Com isso, o regulador tem conseguido atingir dois objetivos concorrentes: priorizar ações de fiscalização sobre pessoas obrigadas que representem maior risco para o sistema de PLD/FTP, ao mesmo tempo em que mantém a maior presença possível junto aos setores diretamente sujeitos à sua supervisão. Tanto que no último ano, a área de fiscalização do COAF concluiu 248 Averiguações Preliminares Objetivas (APO) e Amplas (APA), enquanto a realização de Avaliação Eletrônica de Conformidade (Avec) alcançou 11.626 pessoas obrigadas dos segmentos de comércio de joias, pedras e metais preciosos; comércio de bens de luxo ou de alto valor; e promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas ou artistas. Foram ainda julgados 27 Processos Administrativos Sancionadores (PAS) pelo Coaf em 2022.
Ainda em relação aos setores supervisionados diretamente pelo próprio COAF, a UIF buscou aumentar a efetividade e a harmonização do seu arcabouço de supervisão com a publicação da Resolução COAF nº 41, de 8 de agosto de 2022, que consolidou disposições anteriores, em cumprimento ao disposto no Decreto nº 10.139, de 28 de novembro de 2019. A nova norma passou a contemplar também obrigações dispostas, em caráter geral, na Resolução Coaf nº 36, de 10 de março de 2021, que disciplina a adoção da política e de correlatos procedimentos e controles internos de PLD/FTP por todas as pessoas obrigadas sujeitas à supervisão da UIF.
Conversando mais
Também o volume de intercâmbios de informação promovidas entre o COAF e outros órgãos do Estado brasileiro avançou em 2022. Foram realizados 18.951 intercâmbios com autoridades nacionais e 383 com UIF’s de outros países. Em 2021, foram realizados 15.461 intercâmbios, o crescimento foi puxado pelo aumento de informações trocadas com as polícias civil, que avançaram de 6.375 em 2021 para 9.189 em 2022. Já com a Polícia Federal,o Ministério Público Federal e a Controladoria-Geral da União, o avanço na produção de intercâmbios em 2022 foi da ordem de 10% (5.579 para a PF; 494 para o MPF; e 111 para a CGU). Na área internacional, foram recebidas de UIF’s no exterior 270 comunicações espontâneas de informação, 251 delas oriundas de países europeus. Já o intercâmbio com autoridades internacionais resultou no recebimento de 75 comunicações, 34 deles de países da América do Sul. Na direção oposta, o COAF fez 16 comunicações espontâneas para seus parceiros mundo afora, enquanto os intercâmbios deram origem a remessa de 22 comunicações.
Um aperitivo do que deve vir por aí
Sem sombra de dúvidas, a Europa é a região mais avançada em termos de leis, compromissos e regulações com a agenda ambiental e de direitos humanos em todo o mundo. Sem entrar no mérito acerca da intenção dos europeus, que ao longo de toda a sua história desmataram a maior parte de suas vegetação natural e consumiram sem limites os seus estoques de recursos naturais em prol do desenvolvimento (e que não se furtaram em desmatar e surrupiar em benefício próprio os recursos naturais de outros continentes como a América e a África), fato é que países como França e Alemanha, para citar apenas os dois maiores, têm estabelecido legislações amplas para garantir que as empresas assumam a responsabilidade para garantir que seus projetos e ações não se convertam em desastres ambientais ou que tenham impacto negativo sobre problemas sociais e direitos humanos dentro e fora de suas fronteiras. Em linha gerais, é isso o que estabelece legislações como o “Supply Chain Act” alemão, que entrou em vigor em janeiro deste ano, e o “Duty of Vigilance Act” francês, de 2017.
Foi com base na lei gaulesa que em 2018, seis grupos ativistas da França e de Uganda entraram com um processo emergencial na corte francesa (por meio de um mecanismo de fast track), contra a petroleira Total Energie, uma das maiores companhias francesas. Para elas, a Total Energie não fez tudo o que podia para proteger as pessoas e o meio ambiente local durante o desenvolvimento do projeto para exploração de petróleo e a construção de um oleoduto da Uganda até o porto de Tanga, na Tanzânia, orçado em US$ 3,5 bilhões. Dessa forma, as ONGs argumentaram que o projeto do gasoduto não cumpriu a “Lei do Dever de Vigilância”, que obriga grandes empresas francesas (com mais de cinco mil funcionários na França ou 10 mil no exterior) a evitar danos graves aos direitos humanos, à saúde, à segurança e ao meio ambiente. Segundo as ONGs, poços de petróleo serão perfurados em um parque nacional, cujo deserto circundante é o lar de hipopótamos, garças, girafas e antílopes. Já o oleoduto passaria por sete reservas florestais e dois parques de caça, correndo ao longo do Lago Vitória, uma fonte de água potável para 40 milhões de pessoas. A Total Energies afirma que o design de última geração do oleoduto garantirá a segurança por décadas. Além disso, desde que a ação foi impetrada em 2018, a empresa diz que foram publicados três novos planos de compliance, para corrigir eventuais problemas e mitigar os riscos no processo.
A Total Energies também argumentou que uma corte francesa não teria jurisdição sobre as atividades da subsidiária da empresa na Uganda. Ao mesmo tempo, as autoridades do país africano veem o projeto de perfuração de petróleo e o oleoduto como chave para o desenvolvimento econômico, dizendo que a riqueza do petróleo pode ajudar a tirar milhões da pobreza. Alguns chegam a ver a condenação internacional do gasoduto como um atentado à soberania do país.
Mas o tribunal disse que nada impedia a França de promulgar leis que regem as atividades no exterior de empresas presentes na França – um ponto que especialistas jurídicos disseram estabelecer um precedente importante, se aplicado nos casos futuros.
O julgamento da ação, realizado no último dia 28 de fevereiro em um tribunal de Paris, gerou grande expectativa no ambiente corporativo local por ser o primeiro envolvendo essa lei. Outras grandes empresas são alvo de processos que têm como base a mesma lei, cujo escopo e abrangência é bastante amplo. Multinacionais francesas, incluindo EDF, Suez, BNP Paribas e Danone foram processadas em casos de reivindicações tão diversas quanto à poluição por plásticos, condições de trabalho na França e no exterior, empréstimos a empresas que contribuem para o desmatamento e conflitos de terra com populações indígenas.
Apesar da ansiedade, o resultado do julgamento não permitiu tirar considerações mais efetivas sobre como a Justiça francesa abordará a lei, uma vez que o tribunal considerou o caso “inadmissível”, dizendo que os demandantes não seguiram corretamente os procedimentos judiciais contra a gigante francesa de energia. Segundo a agência de notícias Reuters, o tribunal civil de Paris teria afirmado que apenas um juiz que analise o caso de forma mais aprofundada poderá avaliar se as acusações contra a companhia petrolífera foram fundadas e, em seguida, proceder a uma auditoria das operações no terreno.
Para os advogados Hugues Boissel Dombreval e Jean-Yves Trochon, da firma de serviços legais germânica Rödl & Partner, os resultados desse primeiro caso permitem estabelecer algumas observações importantes. A primeira é que a “Lei do Dever de Vigilância” francesa é largamente ineficaz pela falta de um regulador e, também, pela ausência de um benchmark relevante. “A Lei Sapin II, aprovada alguns meses antes, estabeleceu um regulador, a AFA, que definiu um conjunto de diretrizes muito preciso, para que esta lei pudesse ser aplicada de forma eficaz e impactar substancialmente as práticas das empresas em termos de conformidade anticorrupção”, dizem os advogados, reforçando que a Sapin II é especificada por um quadro de referência destinado a orientar as empresas na implementação da lei, com controles por parte da AFA, recomendações e advertências se necessário, além da possibilidade de recurso ao comitê de sanções do órgão.
Dombreval e Trochon também lembram que embora o “Supply Chain Act” seja fortemente inspirado pela “Lei do Dever de Vigilância”, os legisladores alemães tomaram cuidados para tornar sua aplicação às empresas mais efetivas. Entre as medidas que os germânicos tomaram e que devem fazê-los evitar uma situação como o julgamento de 28 de fevereiro em Paris, está o estabelecimento de um regulador para monitorar a implementação da lei, colocado sob a supervisão do Ministério da Economia e com poderes para impor sanções administrativas em caso de não-cumprimento da lei.
Por fim, os advogados acreditam que a solução para os franceses pode estar na nova diretiva europeia. “O Supply Chain Act” da União Europeia está sendo desenhado e espera-se que ele ajude a preencher as lacunas da legislação francesa, embora se espere que não imponha obrigações excessivamente restritivas às empresas. A esse respeito, a entrada em vigor da nova diretiva para os reportes corporativos de sustentabilidade (CSRD) poderá aumentar os encargos (e os custos associados) para as empresas, em particular para aquelas que anteriormente não estavam obrigadas a publicá-los. No entanto, alertam os advogados, as empresas não devem esperar até 2025 para se preparar para as mudanças esperadas da diretiva europeia e da CSRD e implementar planos de ação dedicados à preparação para esta transição. “Isso é ainda mais verdadeiro para as empresas que atualmente não estão sujeitas à lei do dever de cuidado”, finalizam.