No coração da política fiscal brasileira pulsa um tema sensível e, ao mesmo tempo, estratégico: como garantir o controle efetivo do volume de produção de bebidas — setor historicamente vulnerável — sem sufocar a inovação, nem inverter o papel do Estado?
Assim como o setor de tabaco, este é um dos chamados “setores do pecado”, cujos tributos representam parcela significativa da arrecadação nacional. Mas o debate vai além da fiscalização tributária. Ele revela uma metáfora poderosa sobre o Brasil que estamos construindo: um país que ainda busca amadurecer seu diálogo público-privado, enquanto tenta fortalecer seu ambiente institucional, suas políticas públicas e a confiança entre Estado, empresas e sociedade.
A resposta para essa equação não está apenas na tecnologia. Está na governança do processo, na ética das relações institucionais e na capacidade de escuta ativa entre os atores do ecossistema.
O pano de fundo: obrigação legal, inovação tecnológica e mudança institucional
A legislação brasileira — por meio de norma específica — determina que a Casa da Moeda do Brasil instale equipamentos de medição de volume de produção nas fábricas de bebidas, como forma de garantir o controle fiscal do setor.
Por anos, essa obrigação foi cumprida por meio do SICOBE – Sistema de Controle de Produção de Bebidas, sob supervisão da Receita Federal. Embora o sistema tenha sido concebido apenas para fins fiscais — e não como substituto dos controles internos dos fabricantes —, questões relacionadas ao compliance institucional levaram à sua desativação.
Em substituição, a Receita passou a adotar soluções alternativas, como o Bloco K do SPED, baseado na autodeclaração das empresas. O Bloco K integra a Escrituração Fiscal Digital (EFD-ICMS/IPI) e busca monitorar a produção e o estoque industrial de forma estruturada, embora ainda com limitações.
Paralelamente, a transformação digital e a experiência adquirida com novas fontes de dados impulsionaram a criação do programa Rota Brasil, uma iniciativa voltada à evolução da rastreabilidade fiscal com base em inovação aberta e participação multissetorial.
Esse tema foi abordado por mim no Volume 5 da coletânea Compliance Mastermind – Compliance 2030: Tendências, Desafios e Inovações, da LEC.
O impasse atual: TCU, Receita Federal, STF e as múltiplas teses em jogo
O debate ganhou novo fôlego quando o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a reativação do SICOBE. A Receita Federal, por sua vez, sustenta que o sistema está obsoleto e que o modelo evoluiu: hoje, utiliza-se algoritmos e cruzamentos massivos de dados (volume de produção – Bloco K; vendas – NF-e; estoques – SPED; créditos tributários – DCTF e EFD-Contribuições, entre outros).
A Receita alega, ainda, que a eventual reimplantação do SICOBE, na forma determinada pelo TCU, pode representar perdas bilionárias para os cofres públicos, ao invés de aprimorar a arrecadação.
Enquanto isso:
- Fabricantes operam com modelos autodeclaratórios, o que desafia a consistência dos dados fiscais;
- A Casa da Moeda mantém a responsabilidade legal pela instalação dos equipamentos;
- A Receita Federal contesta a decisão do TCU;
- E o Supremo Tribunal Federal analisa o mérito jurídico do impasse no Mandado de Segurança nº 40.235, sob relatoria do ministro Cristiano Zanin, que em abril de 2025 concedeu liminar suspendendo os efeitos da decisão do TCU que determinava a retomada do sistema.
Esse cenário multifacetado ilustra os dilemas enfrentados em diversos setores da economia: como evoluir modelos, escutar os atores do ecossistema e fortalecer o controle fiscal, sem retroceder em conquistas fundamentais? Especialmente em áreas onde dados, rastreabilidade e confiança institucional são ativos estratégicos de soberania nacional.
De um lado, a Receita Federal defende que a atual sistemática:
- Permite auditoria cruzada entre estoque, produção e notas fiscais;
- Auxilia na detecção de subfaturamento e omissão de receitas;
De outro, o modelo vigente pode apresentar limitações relevantes:
- Baseia-se na autodeclaração, o que pode dificultar a detecção imediata de fraudes e carregar um risco estrutural de conflito de interesses.
Diante desse impasse, três reflexões centrais se impõem para a evolução do debate:
- A quem interessa?
Reflexão: A escolha de um modelo não pode ser capturada por interesses setoriais. Precisa atender ao interesse público com base em evidências, governança e pluralidade de vozes. - Por que evoluir o modelo atual?
Reflexão: Sob a ótica da integridade fiscal e do compliance, o atual sistema baseado na autodeclaração poderia comprometer a eficácia do controle, mesmo com avanços tecnológicos e cruzamento de dados? - Nem retorno ao passado, nem permanência no modelo atual. Evoluir é necessário.
Reflexão: Se o modelo anterior não atende mais às exigências contemporâneas e o atual pode apresentar oportunidades de melhoria, o desafio estaria em construir a evolução? Um modelo que una:
- Know how dos players envolvidos
- tecnologia auditável,
- rastreabilidade em tempo real,
- e arquitetura de compliance com governança pública robusta.
A luz que se acende: escuta institucional como prática de integridade
Num movimento necessário e emblemático, a Receita Federal promoveu uma audiência pública para ouvir o mercado. Soluções tecnológicas inovadoras foram apresentadas por empresas de diferentes perfis e portes.
A diversidade técnica, a abertura ao contraditório e o esforço coletivo para modernizar o modelo revelaram o potencial transformador da escuta pública como ferramenta de integridade institucional.
Escutar com critério, sem abdicar da soberania decisória, é exercício de maturidade democrática.
Da mesma forma, o setor privado, quando se organiza com ética, pode enriquecer o debate sem capturar o processo.
O risco da clusterização desregulada
Esse caso também expõe os perigos da clusterização desregulada: quando grupos ou entidades privadas se articulam sob a aparência de coletividade, mas com interesses particulares não transparentes.
O problema não está na defesa de interesses — isso é legítimo.
Está em fazê-lo sem governança, sem pluralidade de vozes e sem compromisso com o bem comum.
A clusterização sem freios pode:
- Gerar assimetrias de acesso;
- Distorcer políticas públicas;
- Sufocar a inovação;
- E comprometer o papel do Estado como guardião do interesse coletivo.
O futuro da política fiscal depende da escuta que fazemos hoje
O debate sobre rastreabilidade fiscal no setor de bebidas não é apenas uma disputa jurídica ou tecnológica. É um exemplo concreto de como RIG, compliance e inovação, quando bem estruturados, podem transformar a integridade de uma indústria inteira.
A regulação é necessária. A evolução também.
Se queremos um Brasil com ambiente de negócios forte, confiável e inovador, precisamos de instituições que saibam escutar com responsabilidade e de empresas que saibam dialogar com ética.
O Estado deve exercer sua autoridade — mas com humildade estratégica.
E a sociedade precisa entender que dialogar com o poder público exige transparência, técnica e propósito.
Da superfície ao profundo — qual é o nosso compromisso com o futuro?
Relações Institucionais e Governamentais (RIG), compliance e o diálogo público-privado não são muros. São pontes.
Instrumentos capazes de:
- Estruturar soluções sustentáveis;
- Proteger a integridade das instituições;
- E promover o bem coletivo.
Esse tema, aliás, ganhou destaque com painel próprio no 12º Congresso Internacional de Compliance da LEC — o maior ponto de encontro da América Latina para profissionais de integridade setorial.
Porque, no fim das contas, a integridade também se constrói a partir do que decidimos escutar.
As opiniões contidas nas publicações desta coluna são de responsabilidade exclusiva do Autor, não representando necessariamente a opinião da LEC ou de seus sócios.
Imagem: Canva