Um panorama da área de RIG no ambiente corporativo brasileiro na avaliação dos seus próprios gestores
Desde que a sociedade passou a se organizar sob o guarda-chuva de regimes políticos, sejam eles quais forem, existem pessoas e grupos que se organizam para, de alguma forma, tentar influenciar os processos de decisão daqueles que detêm o poder, buscando preservar seus interesses.
Claro que existiam as cerimônias de “beija mão” ou equivalentes, nos quais a população se dirigia ao mandatário diretamente.
Como exemplo, no início da democracia norte-americana, por muitos mandatos a população teve condições de ir até o presidente em Washington na busca por resoluções de problemas que eram de alçada federal,
como a construção de obras públicas e disputas de terras. Tanto que dentre as variadas histórias relativas à adoção do termo “lobistas” para identificar as pessoas que vão até um agente público ou a uma instituição do Estado para expor e defender seus interesses, uma das mais comuns é atribuída ao presidente Ulysses Grant, que governou os Estados Unidos de 1864 até 1869. O mandatário – que nas noites costumava frequentar um hotel da capital para beber e fumar charutos – era constantemente abordado no lobby do estabelecimento.
“No dia seguinte, ao iniciar os despachos na Casa Branca, a dois quarteirões do hotel, Grant se referia genericamente àquelas pessoas como ‘os lobistas do hotel Willard’”, escreveu o jornalista Iuri Dantas, em texto de 2006 para o jornal Folha de São Paulo. Daí para frente, o termo teria pegado, embora só tenha vindo a ser empregado formalmente como sinônimo para a defesa de interesses específicos junto aos agentes públicos no início do século XX, pelo cientista político Arthur Bentley, no seu livro The Process of Government – A Study of Social Pressure.
Mas as bases para a prática das Relações Institucionais e Governamentais tal qual a conhecemos hoje é bem mais
recente. A primeira regulamentação governamental sobre o tema no mundo viria apenas em 1946, com a publicação do Federal Regulation of Lobbying Act, editado justamente para aumentar a transparência ao prover aos congressistas norte-americanos informações sobre quem eram os lobistas que os abordavam e o quê e a quem defendiam.
Como em qualquer outro lugar, no Brasil a busca por influenciar as pessoas com poder de decisão no Estado também era comum. Desde a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, quando o País passou a ter realmente um centro de poder político, grupos procuraram influenciar a tomada de decisão do monarca, buscando estabelecer canais com seus assessores mais próximos ou, no caso dos mais privilegiados, “comprar”, de alguma forma, o carinho e o acesso aos poderosos da Corte (incluindo os próprios mandatários) no que pode ser considerado um embrião do capitalismo de compadrio que nos acompanhou por mais de dois séculos, “valorizando” os cidadãos e empresas não necessariamente pelo mérito, mas pelo grau de acesso, amizade, “auxílio financeiro” e influência sobre o governante de turno.
Por muito tempo convivemos no Brasil com uma atividade de lobby muitas vezes descasada das boas regras do capitalismo e da livre competição.
Ainda no regime militar, um bom trabalho de relações governamentais resumia-se a, basicamente, encontrar o acesso certo às pessoas que tinham o poder: um assessor de ministro, um militar que fora colega de turma, ou um amigo particular de quem podia tomar alguma decisão. A partir do processo de redemocratização, especialmente com a formação da assembleia constituinte, a defesa de interesses por diferentes grupos, muitas vezes antagônicos, passou a acontecer de fato. Como lembra Antonio Marcos Umbelino Lobo, fundador da consultoria que traz o seu sobrenome e um dos mais antigos profissionais de Relações Institucionais e Governamentais (RIG) em atividade, aquele momento serviu como uma espécie de ensaio do que viria a seguir. “Ali você tinha todos os grupos de interesse fazendo lobby de forma explícita, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) até a União Democrática Ruralista (UDR), estava todo mundo lá dentro para defender seus interesses”, lembra o empresário.
Foi a Constituição de 1988 que introduziu conceitos importantes no ordenamento jurídico e regulatório nacional, como os processos de audiência e consultas públicas, que permitiam a participação formal e o engajamento dos diferentes atores da sociedade interessados em tomar parte nas discussões sobre temas e projetos que pudessem lhes interessar. Foi um movimento essencial, que permitiu o início de uma maior profissionalização do mercado de Relações Institucionais e Governamentais no Brasil e serviu de base para o crescimento sustentado pela área nos últimos anos, tanto com aumento do número de consultorias especializadas, como na maior atenção que as empresas têm dado não ao tema em si – até porque ele sempre esteve na agenda – mas à forma como tratam do papel dessa área dentro da sua estrutura corporativa.
Nesse ponto, também é inegável que os desdobramentos da Lava Jato, a partir de 2014, e de outras operações de destaque no combate à corrupção que se seguiram à ela e envolviam, entre muitos descalabros, supostas “compras” de medidas provisórias e de mudanças regulatórias, gerou reflexos importantes ao chamar a atenção na forma como as empresas corriam riscos, muitas vezes desnecessários, por não adotar estratégias claras e transparentes para se relacionar e influenciar o poder público em relação a temas de interesse que, muitas vezes, não eram só dela, mas também de parcela importante da sociedade.
Hoje, é possível dizer que a área de RIG está no meio de um processo de grande transformação, especialmente dentro das empresas e entidades de classe setoriais. Esse momento de intensa mudança é corroborado pelos resultados colhidos pela pesquisa realizada para o Anuário ORIGEM 2019, respondida por mais de 300 gestores e líderes da área de RIG de empresas de diferentes setores da Economia brasileira.
Iniciativa inédita das empresas Consult-Master, LEC – Legal, Ethics, Compliance e VITTORE Partners, em corealização com Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (ABRIG) e o Instituto de Relações Governamentais (IRELGOV), o Anuário ORIGEM traz o mais amplo retrato do mercado brasileiro de RIG a partir da visão de quem lidera a área no ambiente corporativo brasileiro.
REPENSANDO A ATIVIDADE
Ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a área de Compliance, que a partir da Lava Jato apareceu quase
que por osmose em muitas empresas – até porque se tratava de uma atividade realmente nova dentro do ambiente corporativo brasileiro – as empresas sempre se relacionaram com o poder público em diferentes níveis e graus de intensidade.
Na prática, o que se tem é uma área que está sendo repensada, tendo o seu escopo de atividades redesenhado para atender a uma nova realidade, tanto na forma como as empresas pensam e agem em relação ao poder público nas suas diferentes esferas, como, cada vez mais, na atuação junto a outros stakeholders da sociedade civil organizada, hoje, um relacionamento tão importante e eventualmente complexo quanto o com políticos e servidores.
É importante ressaltar que em muitos casos a área de RIG ainda está acoplada a outras áreas da empresa, como Assuntos Corporativos, Comunicação, Jurídico ou Compliance. A tendência é que, com o tempo, cada vez mais o RIG
seja uma área autônoma e independente no organograma das organizações.
ONDE O RIG ESTÁ MAIS AVANÇADO
Apesar do grande avanço, a área de Relações Institucionais e Governamentais não está disseminada por empresas de todos os portes. Companhias de grande porte, multinacionais e de capital aberto representam a grande parcela da amostra da pesquisa. O que não chega a ser uma novidade. Afinal, as grandes corporações globais estão mais expostas e sujeitas a regras de governança e conformidade muito mais severas, inclusive em seus países de origem.
Dos profissionais de empresas que responderam a pesquisa, 65,42% atuam em companhias multinacionais e 67,29% deles em companhias com o seu capital aberto.
Em termos de porte, cerca de três quartos dos respondentes atuam em corporações com faturamento superior a R$ 1 bilhão. Percentual ligeiramente superior lidera a área em empresas com mais de mil funcionários em seus quadros, sendo que em mais de 48% dos casos, essas companhias contam com mais de cinco mil colaboradores. As empresas participantes estão espalhadas por 16 unidades da Federação, cobrindo todas as regiões do Brasil.
Em termos de setores, as empresas do agronegócio e do setor farmacêutico estão entre as que mais investem na área, além das companhias de bens de consumo (incluindo alimentos e bebidas).
São negócios que, por diferentes motivos, tem na área de RIG um parceiro estratégico, seja para tratar de garantir acesso de produtos aos programas de compras do setor público (Farmacêutico), garantir condições para a presença em mercados internacionais (no caso do Agro) ou participar da criação de políticas públicas que vão impactar não só os negócios, mas também a percepção da sociedade sobre as marcas e produtos do dia a dia. Além disso, cerca de um quarto dos profissionais respondentes atuam em empresas que geram vendas em nível relevante para o governo e nas quais a área de RIG participa de alguma forma desse processo.
COMO O RIG ESTÁ ESTRUTURADO NAS EMPRESAS
Embora tradicionalmente tenha sido exercida por profissionais com linha direta ao comando da empresa, via de regra, a antiga atuação do profissional de RIG se dava de forma mais tática e pontual. Claro que existiam empresas que tratavam da área de forma estratégica, especialmente as com presença em setores alvo de muita intervenção ou em áreas de negócios que operam sob muito escrutínio do setor público.
Nessa nova fase do RIG nas empresas, a ação é estratégica e diretamente alinhada aos objetivos do negócio. A ligação direta com o comando da empresa continua em boa parte dos casos. A diferença agora é que essa comunicação se dá de forma muito mais transparente para um número maior de colaboradores na empresa, visando um alinhamento de agenda e interesses. A principal linha de reporte da área se dá, majoritariamente, para o principal executivo da companhia.
Esse é o caso de 46,73% dos respondentes. Outros 30,84% respondem à vice-presidência ou à uma diretoria regional de RIG. No caso de reporte secundário, o que acontece com cerca de 55% dos entrevistados, existe uma inversão. A maior parte das linhas de reporte indireto (conhecidas como “pontilhadas”) está direcionada à vice-presidência ou à diretoria regional de RIG e, em segunda instância, ao principal executivo da operação local.
Além disso, aproximadamente metade dos gestores que responderam a pesquisa diz compor a diretoria ou o comitê executivo da empresa. O suporte da alta administração se faz presente e é referendado pelas respostas dos gestores da área. Mais de 70% dizem ter total suporte da alta administração da empresa. É um dado bastante otimista, a partir da visão de quem está dentro do negócio. A percepção de quem olha de fora, entretanto, não é necessariamente a mesma. Quando considerado a percepção do suporte da alta administração na área nos seus clientes, os profissionais de consultorias especializadas e escritórios de advocacia com atuação na área de RIG é um pouco menos efusiva. 48,48% deles dizem que os seus clientes têm total suporte da alta administração. Outros 37,88% pontuam que existe um bom suporte, mas não no nível que eles consideram ser adequado.
Outro aspecto importante nessa nova fase do RIG no ambiente corporativo é que, por estar mais próximo da estratégia e dos negócios, o comando da área passa a estar menos em Brasília e mais nas sedes das companhias. Praticamente a metade das empresas respondentes tem presença na capital federal, seja em escritório próprio, ou com profissionais lotados lá e atuando em home office ou escritórios compartilhados. Ainda assim, 70,09% dos gestores de RIG que responderam a pesquisa têm sua base na sede da empresa.
Apenas 17,76% têm como base a capital federal. Outro ponto que ajuda a explicar essa migração é o grande número de consultorias e escritórios especializados em RIG, que têm em Brasília, justamente, o seu grande palco de operações. Dos profissionais de consultorias e escritórios que participaram da pesquisa, mais da metade atua em empresas que tem o Distrito Federal como sede. No total, mais de 80% delas tem presença física em Brasília, o que faz com que na prática eles funcionem muitas vezes como os “olhos e ouvidos” dos clientes na capital do País.
MAIS GENTE DEDICADA
Como o momento da área de RIG hoje é de transformação, muitas empresas ainda estão consolidando suas estruturas.
Por isso, era de se esperar que a maior parte das empresas contasse com poucas pessoas dedicadas exclusivamente aos temas de RIG. Em 18,18% dos casos, apenas o gestor da área lida com o tema na companhia; e em outras 20,10% das situações o líder da área é secundado por apenas mais uma pessoa.
Mas as estruturas mais robustas, tendo como base o número de colaboradores, também se fazem presente em bom número. Na verdade, cerca de um terço das empresas contam com uma estrutura com cinco ou mais profissionais dedicados à área.
Em muitas empresas o chapéu de RIG ainda está atrelado a alguma outra área e é comum que o executivo responsável por esse guarda-chuva mais amplo tenha embaixo de si um diretor ou, principalmente, um head/gerente respondendo diretamente pelo tema. A metade dos profissionais com responsabilidade de liderar a área nas empresas respondentes tem sob o seu comando direto um profissional nessas posições.
O nível médio de maturidade da área nas empresas, de acordo com as repostas dos próprios gestores de RIG foi de 3,7, numa escala que vai de 0 a 5. A maior parcela dos participantes, 39,13%, se concedeu um nível de maturidade 4, enquanto outros 32,07% avaliaram a maturidade da área na sua empresa com o nível 3. Com a nota 5 foram 20,11% dos participantes.
TRABALHANDO COM TODO MUNDO
“Estou completando 30 anos de atuação na área e, desde cedo, pude entender duas coisas sobre o seu papel. Uma é que o RIG deve ser tratado de forma estratégica pela empresa; a outra é que é uma área transversal. Além de precisar conhecer um pouco sobre tudo, é preciso falar e envolver todo mundo, todas as áreas da empresa para movimentá-las e, com isso, atingir o seu objetivo”, lembra Rodrigo Navarro, presidente da ABRAMAT e um dos idealizadores do Anuário ORIGEM.
De fato, a área de RIG demanda essa capacidade de envolver as outras áreas da empresa, seja para prover aos diferentes stakeholders informações técnicas sobre um mercado, estabelecer acordos com organismos do terceiro setor, ou engajar funcionários e parceiros numa política pública encampada pela empresa.
De acordo com os gestores de RIG, os setores da empresa mais acessados são o Jurídico, o Regulatório, o Compliance e a Comunicação Externa. Mas o leque de áreas acessadas é gigantesco e envolve com frequência também áreas distintas como Pesquisa & Desenvolvimento, Financeiro/Tributário, Engenharia e Logística.
A transversalidade de atuação da área ganha mais destaque nesse novo momento do RIG. Embora estabelecer relacionamento com governos e agentes públicos ainda configure a principal tarefa, desafio e preocupação dos gestores de RIG, o leque de atividades e temas com os quais a área precisa lidar hoje é bem mais extenso e cada vez mais relevante. Trataremos desses aspectos um pouco mais à frente.
Publicado originalmente no Anuário Origem 2019: “Uma área em transformação”
Imagem: Freepik