Conflitos de Interesses durante o exercício do cargo ou função pública
Sempre que o comportamento de um indivíduo, agindo em consonância com os interesses da coletividade, se demonstra íntegro, adequado, perfilado com os objetivos traçados pela organização (pública ou privada), podemos afirmar que houve CONVERGÊNCIA DE INTERESSES.
Porém, de outra forma, quando há priorização de interesses particulares em detrimento do coletivo, é possível afirmar que o sujeito se afastou da conduta ideal e identificar um CONFLITO DE INTERESSES, com nítido aumento dos riscos de uma organização, pois há um desalinhamento entre o comportamento do indivíduo e os princípios da organização a que ele pertence, seja ela pública ou privada.
No primeiro artigo dessa série a que nos propusemos tratar dos conflitos de interesse envolvendo Agentes Públicos, conceituamos o conflito de interesses segundo a Lei n.º 12.813/2013, pressupondo a honestidade da grande maioria dos Agentes Públicos, como forma de assegurar aos Agentes Públicos honestos, que permaneçam fora do alcance das práticas de corrupção.
Chegou a hora de conhecer o que a Legislação trata como conflito de interesses em dois momentos distintos:
- no exercício do cargo público (inclusive se o agente público estiver no gozo de licença ou em período de afastamento – Parágrafo único do Art. 5º) ou
- depois do exercício do cargo, ou seja, após seu desligamento da função pública.
Vale ressaltar que o conflito de interesses no setor público, como norte, pode ser caracterizado independentemente de lesão ao patrimônio público ou de obtenção de vantagem pelo agente público ou pelo terceiro que o influenciou no desvio (cf. art. 4º, § 2º da Lei 12.813).
Pois bem, seguiremos como roteiro as disposições do artigo 5º da Lei 12813, deixando de fora, apenas, o inciso I, pois o abordaremos num outro momento. Assim, o art. 5º define situações que caracterizam conflito no exercício do cargo:
- II – exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe; ou VII – prestar serviços, ainda que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo ente ao qual o agente público está vinculado.
Uma pesquisa da ICTS apurou que 11% dos indivíduos sempre revelam tendências a cometer fraudes, a buscar favorecimento pessoal, pouco se importando com os objetivos e ganhos da organização. São os incorrigíveis.
Elementos de importância, relevância ou perspectiva individual (variáveis contingenciais, portanto), que deveriam ser secundários, são colocados em primeiro plano pelo tomador de decisão em detrimento de interesses da organização (interesse primário) trazendo prejuízo ou diminuindo a vantagem.
Em situações como as descritas nos incisos II e VII, é possível imaginar que haja alguma relação jurídica, licita, ilícita, explícita ou implícita, direta ou indireta, que justifique o desvio do comportamento do agente público visando benefício seu ou das contrapartes com quem ele mantem as referidas relações jurídicas.
- III – exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas;
Vou referenciar uma situação muito comum, que talvez facilite alguns colegas compreenderem com muita facilidade. O Estatuto da Advocacia (Lei 8906/94), no seu artigo 27 e 28, define que é incompatível com o exercício da advocacia, ocupar “cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público” (inc. III).
Ora, nessas circunstâncias o advogado deve entregar a sua cédula de habilitação profissional. Não pode praticar atos privativos de advogado. E o inciso III do art. 5º da Lei 12813 em comento determina que nem mesmo de forma indireta ele pode exercer essa função incompatível, o que alcança, por exemplo, situação em que o agente público ainda permanece, por exemplo, sócio de uma sociedade de advogados, ou possui interesses representados, a exemplo, por parentes muito próximos (ou cônjuge em alguns casos), na referida sociedade de advogados. Não que isso aconteça com frequência!! E estou sendo irônico para bons entendedores…
- IV – atuar, ainda que informalmente, como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
Essa figura que revela uma infração administrativa que precisa ser combatida, ainda encontra tipificação como crime no Código Penal. No art. 321, “Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário” é crime de ADVOCACIA ADMINISTRATIVA, punido com detenção de 1 a 3 meses e multa.
Também se aproxima do conceito de Tráfico de Influência: Art. 332, do Código Penal: “Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função”, o qual tem penas mais pesadas (Reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa, na figura simples).
- V – praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão;
O elemento emocional é o mais forte fator que revela, nessas relações interpessoais, um risco de influência para o Conflito de Interesses. Desvios de comportamento são identificados envolvendo interesses não apenas (ou exclusivamente) do agente diretamente ligado à organização. Não raro, o motivo do desvio (ou a facilitação dele) está fora da organização, mas ligado a um de seus membros por vínculos familiares e de parentalidade, ou outros vínculos emocionais ou de afinidade.
No Código Civil (BRASIL, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), entre os artigos 1591 a 1595, temos as linhas de parentesco divididas em (i) reta e (ii) colateral, (iii) consanguínea (também chamada de parentalidade natural) e por (iv) afinidade (parentalidade civil, por decorrer de uma das espécies de união civil admitidas ou formatos de família). Na linha reta as pessoas estão ligadas umas para com as outras na relação de ascendência e descendência. Como é possível verificar na ilustração abaixo, a ascendência contempla os pais de um indivíduo, assim como avós, bisavós, tataravós, ou seja, toda linha ancestral. E na linha descendente, estão os filhos, netos bisnetos, tataranetos e até onde mais a natureza permitir alcançar ou identificar a presença.
Importante mencionar que não se contam graus na linha ascendente ou descendente, embora, para efeitos sucessórios, os descendentes preferem aos ascendentes; e os mais próximos excluem os mais distantes.
Na linha colateral ou transversal, as pessoas provenientes de um mesmo tronco, sem descenderem uma da outra, são consideradas parentes até o quarto grau. Veja-se, a exemplo, o irmão. Ele é parente apenas na linha colateral (pois obviamente não são descendentes um do outro) e em 2º grau, pois estão ligados por um grau de ascendência comum. Tio e Tia são parentes na linha colateral em 3º grau, pois há dois graus de ascendência entre eles (os pais e os avós, dos quais ambos são filhos). E os primos são parentes em 4º grau (art. 1594). Mais uma figura abaixo ajuda a ilustrar:
Embora como dito acima, os cônjuges ou companheiros, entre si, não estabeleçam relação de parentesco, são aliados aos parentes do parceiro pelo vínculo da afinidade (Parentes Afins ou Civis). O § 1º do art. 1595 limita o cômputo dos graus de parentalidade por afinidade aos ascendentes, aos descendentes (Linha Reta por Afinidade) e aos irmãos do cônjuge ou companheiro (Linha Colateral por Afinidade)¹.
O que importa é verificar que todas essas formas de convivência ou de relação de parentesco influenciam o comportamento dos indivíduos (e porque não considerar o risco de influenciar o Agente público também).
A Nova Lei de Licitações, no art. 14, IV reforça o entendimento de que “Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente: qualquer pessoa que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação”.
- VI – receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento; e
Esse dispositivo foi regulamentado pelo Decreto Nº 10.889, DE 9 DE DEZEMBRO DE 2021 (data icônica que marca o dia mundial de combate á corrupção) e, entre outras coisas, tratou de concessões de hospitalidades por agente privado aos agentes públicos. Nele, define-se o que é hospitalidade, brinde e presente, sendo esse último considerado o “bem, serviço ou vantagem de qualquer espécie recebido de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe e que não configure brinde ou hospitalidade”.
O § 2º do art. 5º do referido decreto, porém, trata como PRESENTE e não hospitalidade, “itens ou as despesas de transporte, alimentação, hospedagem, cursos, seminários, congressos, eventos, feiras ou atividades de entretenimento, concedidos por agente privado a agente público em decorrência de suas atribuições, porém não relacionado ao exercício de representação institucional” por se tratarem de puras vantagens pessoais.
Há muito, ainda, a explorar sobre esse tema e os convido ao estudo e, também, para a leitura do próximo artigo, quando trataremos dos conflitos de interesse dos ex-agentes públicos e de um arranjo sobre o conceito de Informação Privilegiada. Isso porque, no âmbito público ou privado, a posse dessas informações é de extrema relevância para a tomada de decisões.