Na construção de empresas sustentáveis, sob a ótica da pauta ESG, trabalhamos com a transversalidade de temas e multidisciplinariedade de normas e saberes. É com esta perspectiva que propomos o presente texto.
A Resolução número 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 17 de março de 2023, tornou obrigatória a observância de seu Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, pelo Poder Judiciário. Trata-se de um documento que aponta para a igualdade substantiva de gênero; reconhece, conforme seus próprios termos, “a influência que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história exercem na produção e aplicação do direito e, a partir disso, identifica a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas”. Com esse objetivo, pretende funcionar como guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos do Poder Judiciário possam efetivar a igualdade real, recorrendo às lentes de gênero na interpretação do Direito, sempre que aplicável ao caso concreto, diante do contexto.
Precisamos refletir, neste ponto, se a aplicação do Direito traz um proceder neutro. Somos seres históricos: nossa identidade e nosso fazer são resultado de séculos de processos históricos e movimentos culturais. Somos forjados, desde a infância, em uma sociedade com determinada estrutura de regras, valores e cultura; carregamos influências e vieses. De acordo com o Professor espanhol Joaquín Herrera Flores, na obra “A (re)invenção dos direitos humanos”, a aplicação do Direito está associada aos sistemas de valores dominantes e aos processos de divisão do fazer humano, o que coloca indivíduos e grupos em situações de desigualdade em relação ao acesso a direitos, impondo certas “condições” à incidência concreta das normas jurídicas. Seguindo tal raciocínio, Herrera Flores afirma que o Direito não é “uma técnica neutra que funciona por si mesma”. Desta forma, necessário se faz compreender a estrutura na qual está inserido; do contrário, o que acontece é a reprodução de desigualdades e assimetrias, impedindo o acesso a direitos.
Os princípios da igualdade substantiva e da dignidade da pessoa humana estão no centro dos Estados Democráticos de Direito, a fim de permitir a todos os seres a participação, na vida social, como pares. Todos os direitos relacionados a gênero decorrem da Constituição da República Federativa do Brasil, de convenções internacionais e de legislação nacional. O Protocolo não traz novos direitos, mas inova ao determinar que, no caso uma disputa ou conflito com presença da temática “gênero”, no ato da concretização do Direito, o julgador deve considerar o contexto cultural, a estrutura social e a gramática de conceitos e construções que foram produzidas academicamente, a fim de que a equidade de gênero esteja assegurada, no caso concreto. Trata-se de mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.
O referido documento desmembra-se em 3 partes: na primeira, apresenta conceitos relevantes para os julgamentos com perspectiva de gênero. Na segunda parte, há recomendação de etapas a serem seguidas e ferramentas a serem utilizadas no contexto decisório. Na terceira parte, são apresentadas particularidades dos ramos das Justiças Federal, Estadual, do Trabalho, Eleitoral e Militar que envolvem, em geral, a temática de gênero, com exemplos de questões e problemáticas recorrentes de cada ramo.
Na terceira parte, temos um item dedicado integralmente à Justiça do Trabalho – e, quanto a este tópico, o conhecimento sobre o Protocolo pode fortalecer o trabalho da governança corporativa acerca de alguns temas de gênero, diante da avaliação e controle de riscos, responsabilidades jurídicas e preservação da reputação empresarial.
Vejamos os temas tratados pelo documento, com relação à Justiça do Trabalho:
(i) Desigualdade de oportunidades no ingresso e progressão na carreira, bem como desigualdades salariais;
(ii) Discriminações na fase pré-contratual, na fase contratual e no momento de extinção do contrato;
(iii) Violência e assédio no ambiente de trabalho;
(iv) Segurança e Medicina do Trabalho.
O instrumento traz questionamentos para análise do julgador, a fim de compreender o quadro fático. Alguns deles podem ser adotados pela governança corporativa; reproduzimos um, relativo ao tópico de discriminação:
“A prática adotada habitualmente pelo empregador ou pela empregadora leva a resultados discriminatórios ainda que não tenha havido intenção de discriminar?”
E, em conexão com tal questionamento, para tornar mais “palpável” tudo que foi colocado até aqui, trazemos um julgado do Poder Judiciário com fundamentação na legislação aplicável e no Protocolo.
A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em julgamento de 18 de dezembro de 2024 (processo nº TST-RR-1282-19.2016.5.08.0114), tratou de um caso de discriminação indireta: certa empresa, em decisão de caráter negocial, realizou uma reestruturação de cargos, na qual técnicos(as) de enfermagem passariam a acumular o cargo de bombeiros(as) civis. Esses foram os fatos, de acordo com o julgado:
“a) o quadro de pessoal era composto por 11 mulheres técnicas de enfermagem e 42 homens técnicos de enfermagem;
b) foram dispensadas todas as mulheres e apenas 3 homens, sob o argumento de que só poderia permanecer no emprego quem tivesse o curso de bombeiro civil;
c) a empresa ofertou o curso de bombeiro civil (condição imposta para manutenção no emprego) a 28 homens e apenas 2 mulheres (mas nenhuma permaneceu no emprego);
d) para as vagas das mulheres dispensadas foram contratados homens.”
A Sexta Turma do TST entendeu que não seria razoável crer que nenhuma das mulheres estaria apta a atender as novas exigências da função; e, nesse sentido, reconheceu dispensa discriminatória de gênero, com condenação para pagamento de indenização por danos morais cumulada com indenização prevista na Lei nº 9.029/95.
A concepção a respeito da discriminação indireta vem da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, e refere-se a uma situação aparentemente neutra que produz efeitos discriminatórios negativos, com impacto desfavorável e desproporcional a certos grupos historicamente inferiorizados. Na discriminação indireta, a chave para compreensão é a manutenção de uma situação de desvantagem social entre grupos.
Direito, legislação, empresas e Poder Judiciário são criações humanas inseridas em determinada estrutura cultural, econômica e social, afetadas por seu tempo histórico. A temática relativa a gênero faz parte do nosso tempo. Disputas judiciais tratam de situações da vida – muitas delas, ocorridas dentro de espaços de trabalho. O “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” do CNJ pode ser utilizado como ferramenta de trabalho positivo na Governança Corporativa, com o objetivo de redução de perdas financeiras e preservação da reputação.
Nesse sentido, o Protocolo pode funcionar como um guia auxiliar para mapeamento de perfil e avaliação de riscos (por exemplo, das condições de trabalho e de respeitabilidade, política de convívio, política de salários e promoção dos cargos), em conjunto com o trabalho preventivo de compliance nessa área, incluindo a realização de treinamentos voltados para a compreensão dos conceitos envolvidos, o aprendizado e cumprimento da legislação. Tais ações contribuem para a construção de um ambiente laboral digno, com redução de perdas financeiras e preservação da reputação.
É possível localizar facilmente, em buscadores na internet, o arquivo integral do Protocolo aqui referido, bem como Painel de Sentenças e Decisões com aplicação do Protocolo, criado pelo CNJ.
Por fim, em nome da transparência, é preciso registrar que tramita, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) número 89/2023, com a finalidade de sustar a aplicação da Resolução CNJ número 492/2023, que determinou a obrigatoriedade de observância do Protocolo no âmbito do Poder Judiciário, como mencionado no início deste texto. No dia 18 de julho de 2025, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou, por unanimidade, uma nota técnica fornecendo subsídios jurídicos, institucionais e normativos de Direitos Humanos em resposta à proposta legislativa. Tudo isto reforça a atualidade e urgência da temática.
Janaina Antunes. Advogada com atuação em empresas. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais e Pós-graduada em Direito Privado pela Universidade Federal Fluminense (UFF); com Curso de Especialização em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro da Comissão de Direito Antidiscriminatório da OABRJ (Triênio 2025-2027). Certificação Profissional em ESG (CPESG) – LEC/FGVProjetos.
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