Nos idos dos anos 1990, quando veio à luz o “Manifesto Ágil”, ninguém teve dúvidas da sua importância para o mercado de tecnologia, em especial para o setor de desenvolvimento de softwares. Poucos, no entanto, poderiam supor que a adoção de métodos ágeis nos anos vindouros ultrapassaria o universo da Tecnologia de Informação, sendo aplicado nas mais diversas áreas e segmentos da economia.
As metodologias ágeis formam um conjunto de práticas baseado na cooperação e na autonomia das equipes envolvidas num determinado projeto de negócios, dividido em ciclos interativos e incrementais e que possibilitam flexibilidade e adaptabilidade constante durante todo o processo de desenvolvimento. Elas representam uma alternativa aos modelos tradicionais de desenvolvimento de projetos e implementação de negócios. A agilidade proposta pelo modelo vem da redução da burocracia, eliminando a dependência da hierarquia interna e o aval de uma única, ou de algumas poucas pessoas responsáveis pela tomada de decisões. A necessidade de aprovações centralizadas em quem não está participando ativamente do projeto, tende a tornar mais lento e imprevisível o resultado final.
Os indicadores positivos que a adoção de uma cultura ágil vem demonstrando em diversos segmentos tem muito a ver com a maneira como tal processo dá abertura, para que as equipes envolvidas possam se adaptar aos mais variados ambientes culturais e econômicos e responder com rapidez a imprevistos e mudanças de cenário inesperadas, o que torna a metodologia um instrumento de grande valor para as áreas de Governança, Riscos e Compliance, com respeito às normas internas e externas de um negócio.
A metodologia ágil está preocupada em trazer para as organizações uma visão de foco no negócio. Partindo desse princípio, foram estabelecidos frameworks, ferramentas e metodologias para atingir tais objetivos, como Scrum, Kanban e XP. Mas, todos partindo do ponto de que é preciso trabalhar de forma colaborativa. “Então você precisa ter pessoas capacitadas, mais no sentido de adaptação do que de conhecimento”, explica Coaracy Junior, agente de Mudança e gestor de Produto na DBServer, consultoria especializada em transformação digital com base em Porto Alegre. “No que diz respeito ao Compliance, toda a questão de agilidade se faz muito útil, porque é uma área que precisa encontrar formas de dar respostas rápidas em ambientes complexos”, emenda.
Num ambiente de negócios global mais complexo do que nunca, em constante transformação, previsibilidade e clareza são, cada vez mais, um luxo com o qual não se pode contar. E, nesse contexto, modelos de hierarquias muito rígidas costumam falhar. “Quando o Compliance começa a adotar conceitos de agilidade, quem está no comando está preocupado em apontar os limites, mas dando liberdade, para que as equipes possam responder com agilidade, encontrar soluções e tomarem as decisões dentro do modelo ágil, seguindo as normas internas e externas do negócio”, reforça Coaracy.
Nova Mentalidade
Apesar de tamanho potencial estratégico, no que diz respeito ao setor de compliance, na maioria das empresas, a adoção de métodos ágeis ainda não vem sendo aproveitada em sua completude. “Por enquanto as áreas de negócios, de tecnologia da informação e as áreas de auditoria interna possuem um maior uso desses modelos buscando entregas mais rápidas e com qualidade junto aos seus clientes finais”, diz Gustavo Lucena, sócio da Deloitte Brasil. O executivo chama atenção para a importância de uma mudança de cultura da parte dos profissionais de compliance na implementação de metodologias ágeis dentro do setor. “Para se ter sucesso na adoção de métodos ágeis nas áreas de compliance, se torna primordial aos profissionais dessa área ter um mindset ágil”, diz Lucena. “O líder de Compliance precisa empoderar seus profissionais, para que eles possam ser autônomos e protagonistas das resoluções ágeis do seu dia-a-dia”, complementa o sócio da Deloitte, para quem os métodos ágeis não possuem sucesso em empresas que administram primariamente processos, ferramentas, regras, autoritarismos e formas hierarquicamente travadas. São empresas que valorizam muito mais as pessoas e as interações do que processos e ferramentas, muito mais colaboração com o cliente do que negociações em contratos e muito mais respostas a mudanças do que seguir um plano formal. “Áreas que adotam métodos ágeis na sua gestão olham para as pessoas, porque sabem que de fato trabalham com pessoas, para atender pessoas”, afirma Lucena, da Deloitte.
A resistência de alguns profissionais de compliance, ainda presos a práticas antigas, talvez seja uma das principais barreiras a se transpor na adoção de tais práticas no setor. Entre essas barreiras, Lucena lista a gestão que não tolera erros – o que inibe a inovação – ; e líderes dede Compliance com pouco ou nenhum skill de gestão de processos, mudanças ou de inovação e conflitos com pré-conceitos de que as mudanças perseguidas nunca deram certo. Além disso, existe o conflito com as áreas de negócios da empresa. “Nem sempre elas aceitam entregas cadenciadas dos sprints e já querem a solução final, que geralmente demanda muito tempo e é mais custosa;”, pontua Lucena.
A Compliance Officer Thais Marotta, do banco CFS Carrefour, foi uma que teve que enfrentar esses desafios ao implementar as metodologias ágeis na companhia, mesmo com o banco já vindo nessa direção há dois anos. “É uma mudança significativa de cultura. As áreas de Risco e Compliance foram as últimas a se adaptarem. Mas, acho que isso é natural, porque estas áreas tendem a ter um conservadorismo maior”, relata a executiva do banco.
Uma vez transpostas tais barreiras, no entanto, os resultados positivos são evidentes e incontestáveis. Segundo Thais, além da agilidade, uma das principais vantagens da adoção de métodos ágeis está na organização dos processos. “É possível ter uma visão mais clara de prioridades. Estar mais conectados às estratégias do negócio e criar as nossas estratégias diárias de acordo com o planejamento da empresa”, conta ela. Como resultado, ao mesmo tempo em que obteve mais agilidade para os processos da área, foi possível estabelecer pontos de controle e garantir que a empresa não tenha o mesmo apetite de risco que ela tinha antes”, reforça Thais.
Dados com inteligência
Outra vantagem comprovada pelas experiências envolvendo a implantação dos métodos ágeis está na forma como é possível interpretar dados e se adaptar com rapidez a imprevistos e mudanças bruscas de cenário. “Como os resultados são obtidos em fases e executados por um time multidisciplinar, é possível conectar pontos cegos de maneira mais ágil e identificar necessidades de melhoria e correções mais rapidamente, agregando maior utilidade e valor para o negócio”, diz Isabel Bragança, gerente Jurídica e Compliance Officer da Ceptis, fabricante de tintas especiais e selos de segurança para diferentes mercados.
O fato de o principal elemento de trabalho na metodologia ágil ser a interação dos indivíduos facilita a vida do time de Compliance, permitindo que as tarefas sejam desenvolvidas com mais eficiência e controle. “No Comitê de Compliance contamos com um time multidisciplinar com os representantes que estão na linha de frente das principais operações da empresa. A adoção da metodologia ágil nos permitiu dividir responsabilidades complexas em subetapas e adequar as execuções e aprofundar cada vez mais a maturidade da organização para os assuntos de Compliance”, explica Isabel. Segundo ela, a partir do desenrolar de cada etapa, os membros do comitê, todos juntos e de modo contínuo e organizado, vão conhecendo os pontos cegos e avaliando a eficácia do programa. A metodologia ágil também está ajudando o Compliance da Ceptis a melhorar sua capacidade de análise de dados e leitura de cenários, contexto e conjunturas. “Isso, somado ao nosso comitê multidisciplinar, é o que nos permite avaliar constantemente a evolução dos processos e fazer as devidas correções sempre que necessárias, com eficiência e clareza de visão”, diz a executiva da Ceptis.
Mudança de comportamento
No modelo da metodologia ágil, troca-se um prazo longo para a entrega de algo (supostamente) pronto e acabado por ciclos curtos de entregas faseadas do projeto, buscando sempre a melhoria contínua a cada fase. “É mais importante focar nas entregas e não nos caminhos e processos que precisam ser seguidos, buscando a assertividade em todos os passos que estão sendo seguidos”, acredita Lucena. A própria Deloitte usa os métodos ágeis nas suas atividades administrativas, principalmente nos temas de Gente e Gestão, Finanças e Vendas de Serviços, além de aplicá-la nas metodologias de entrega junto aos seus clientes.
Para ter sucesso na adoção de práticas ágeis é preciso mudança de pensamento e alguns princípios precisam ser seguidos pelos gestores da área de Compliance. “Numa cultura ágil, vale buscar mais a simplicidade do que a perfeição complexa”, lembra o sócio da Deloitte, que preconiza aspectos importantes para serem seguidos pelos líderes de Compliance. “Ele precisa conhecer e buscar a satisfação do seu cliente, atendendo-o de forma rápida e da melhor maneira possível. Deve estar sempre aberto a mudanças e ter entregas frequentes. Que saiba trabalhar em equipe, passar confiança e pedir apoio sempre que precisar. Manter conversas frequentes olho no olho, ser auto-organizado e sempre pronto para parar, refletir e ajudar, quando necessário”.
Respostas rápidas em meio à crise
Uma das principais características do uso de metodologias ágeis no Compliance é a de dar respostas rápidas diante de situações inesperadas, o que vinha sendo posto à prova justamente durante a apuração da reportagem, com a chegada do coronavírus no Brasil. “É claro, como todo mundo, tivemos certa dificuldade para nos ajustar. Mas ,o banco imediatamente reuniu um comitê de crise e a área de riscos está coordenando isto de forma super intensa e super dedicada”, conta Thais, do CFS Carrefour. A instituição bancária rapidamente estabeleceu subcomitês dentro desse comitê, cada um responsável pela sua frente e que têm reuniões diárias. “Usando a metodologia ágil nessa crise, mesmo com todo mundo trabalhando de forma remota, garantimos a atualização das equipes de forma tempestiva e com um material rico, mas estruturado de forma resumida, para que todos consigam entender rapidamente qual o seu papel, sua responsabilidade e quais ações devem ser tomadas nesse momento difícil que estamos passando”, pontua a Compliance Officer.
Isabel Bragança, da Ceptis, também acredita que a metodologia ágil permite reagir de forma mais rápida aos novos riscos que não estavam previamente mapeados, permitindo tomar medidas para garantir sua mitigação antes deles se concretizarem. “É como se estivéssemos construindo um carro em movimento. Com a conjuntura e o novo contexto de pandemia global, nossa equipe de Legal e Compliance formou uma rede de apoio com nossos especialistas e principais parceiros para realizar uma edição especial de treinamento com vídeos aulas, webinar da equipe com o especialista e boletins temáticos no canal Legal e Compliance na plataforma corporativa da empresa”, garante Isabela. “Com a metodologia ágil implementada, as empresas estão percebendo que pequenas mudanças atendem rapidamente as suas necessidades e de seus clientes, não precisando mais administrar projetos internos que demandam muitos investimentos, muitas áreas de negócio e requereriam mudanças estruturais. Investimentos em projetos estão sendo redimensionados, redirecionados e até mesmo descontinuados à medida que percebem que os valores entregues são tangíveis, rápidos e o pouco entregue já o satisfaz completamente”, conclui Lucena.
De ponta a ponta
O banco CSF Carrefour está adotando a metodologia ágil em todos os seus processos. A Compliance Officer da instituição Thaís Marotta, explica como isso está sendo aplicado ao Compliance.
“O banco todo foi dividido em jornadas. Em squads (esquadrões) para entregar a jornada do cliente. Além das funções corporativas como Compliance, Jurídico e Contabilidade que permeiam a jornada da empresa inteira, foram estabelecidos centros de excelência para suportar a parte técnica desses squads. Todas essas áreas também se valem da metodologia ágil. Outra coisa bem interessante que fizemos para dar velocidade e agilidade às entregas de Governança, Compliance e Risco, foi criar um centro de excelência chamado defenders (defensores), que atua junto à jornada e reúne pessoas de diferentes competências, uma de compliance, uma de privacidade, uma de segurança da informação e uma de riscos. Os defenders podem ser realocadas nos squads, caso eles tenham necessidades relacionados a esses temas. Por exemplo, se um squad tem uma iniciativa de atendimento ao cliente, com uma norma envolvida, ele pode puxar uma pessoa de Compliance para responder alguma questão ou dar um parecer relacionado ao setor. Se vamos fazer um novo canal para o cliente, é preciso fazer uma análise de segurança. Então, a pessoa responsável pelo squad, que é o PO, vai até esse centro de excelência de defenders e puxa uma pessoa de segurança para ajudá-lo nessa iniciativa. É uma forma que encontramos para garantir que profissionais disponíveis para emitir vários pareceres relacionados aos squads e que precisam ser muito ágeis. As pessoas que ficam alocadas nas funções corporativas de Compliance, Riscos e Segurança e Privacidade ficam responsáveis por garantir a atualização técnica desses defenders e garantir que a transmissão de conhecimento aconteça da forma mais tranquila possível. Ou seja, todas as atualizações de normas, de conscientização, awareness, políticas e estratégia ficam na mão da função corporativa, que também está atuando dentro dos métodos ágeis.”
Publicado originalmente na edição 28 da revista LEC: “Vamos por partes, mas vamos rápido”
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