Há cinco anos atuando dos Estados Unidos, o executivo Denis Jacob fala sobre as “durezas” da construção de uma carreira no exterior, das diferenças na forma de trabalhar e dá dicas para quem têm planos de desbravar o universo do Compliance global de outras fronteiras
Desde 2013, quando passou a acumular o comando da área de Compliance da multinacional americana da área de equipamentos e dispositivos médicos BD na América Latina e Canadá, com a chefia da área na Europa, o executivo Denis Jacob vem construindo uma carreira internacional. A atuação regional na América Latina, já era uma realidade para Jacob desde 2006. Essa liderança regional é comum para a maior parte dos profissionais de alta gerência em Compliance em multinacionais. Mas é uma atuação na qual a operação brasileira costuma ser dominante – a maior e mais sofisticada dentre todos os países da região. Ou seja, a liderança da área por um executivo brasileiro é natural.
É diferente de quando um colega brasileiro assume a responsabilidade por uma região que, sob diversos aspectos, se julga mais desenvolvida. Que é a reação natural imediata de um profissional de algum país desenvolvido em relação aos seus colegas brasileiros. “Tinha a responsabilidade por toda a Europa para fazer o roll out do programa de Compliance por lá. Embora nunca tenha me sido dito diretamente, a reação inicial foi negativa. Algo como ‘A Europa vai reportar para o Brasil?’. Levou alguns meses até que a situação fosse compreendida e aceita por eles”, lembra o executivo.
Foram dois anos de trabalho cuidando do velho continente a partir do escritório da BD em São Paulo, até que em 2015, Jacob foi convidado a assumir a direção global de Ética e Compliance na matriz da companhia, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. De lá, liderou um time de 45 profissionais em 15 diferentes países. Em 2019, numa nova mudança, Jacob assumiu o posto de vice-presidente e Chief Compliance Officer adjunto da Orthofix, fabricante de próteses médicas baseada nos arredores de Dallas, no Texas, o que o levou a novos desafios culturais e profissionais.
Em entrevista à reportagem da LEC, ele compartilha suas experiências, fala da sensação de ter se descoberto como latino, dos diferentes riscos, do trabalho de Compliance na terra do Tio Sam e, também, das vantagens e desvantagens que os profissionais brasileiros que optam por uma passagem só de ida para o exterior. Abaixo, os principais pontos da conversa.
O que ninguém te conta sobre ir trabalhar no exterior
Quando você muda de país, o trabalho em si não muda tanto, ainda mais se você vai como expatriado. Já trabalhava muito com a matriz então foi um processo natural. A grande adaptação na minha primeira mudança foi pessoal. A burocracia é enorme. Você precisa tirar uma série de documentos, precisa de um número de seguridade social (o documento mais comum nos Estados Unidos), você não tem acesso a crédito porque não tem histórico… E o negócio não para. Não te dão um mês para você resolver isso. Foi um grande perrengue no começo lidar com o dia a dia. O sistema é feito para você fazer isso no decorrer da sua vida. Quando você é expatriado, tem que fazer isso em duas ou três semanas. São coisas que ninguém te conta e que gostaria que tivessem me contado antes.
O segundo desafio vem depois, que é quando você começa a se integrar mais a cultura local. No meu caso, a dificuldade foi lidar com as referências do americano em coisas como esporte, sociedade, mídia e cultura. De repente, eu era o único brasileiro e tinha que entender essas referências. Porque o trabalho não é só trabalho. Tem a conversa sobre o final de semana ou a final do Super Bowl. Não foi algo tão complexo, mas que começa a aparecer no dia a dia. No final, é preciso reconhecer que sempre vou ter uma perspectiva diferente. Pode ser mais ou menos positiva, mas enxergo coisas de uma maneira que eles não conseguem, ao mesmo tempo em que tenho mais trabalho para entender outras.
Quem sou eu?
Nunca tinha parado para pensar nisso, mas quando cheguei aqui, tendo que responder a questões sobre raça e etnicidade, foi a primeira vez que me reconheci como latino-americano. E minha mudança foi num momento delicado. Mudei em 2015, e em 2016 foi eleição do Trump. Imigração e raça era assunto na mídia o tempo inteiro. Como eu e me esposa nos encaixamos aqui nessa sociedade? Esse é um ponto importante, que influi bastante na felicidade das pessoas.
A palavra vale mais
O brasileiro tem um espaço de subentendido muito grande. Aqui nos Estados Unidos a cultura é mais de accountability. Não é todo mundo, mas é uma maneira mais fácil de trabalhar. As pessoas questionam e se manifestam de forma mais aberta e não existe tanta pressão para não falar não. A comunicação é mais direta e a cultura do chefe é menos forte também, o que facilita a um empregado negar um pedido do seu superior se ele acreditar que aquilo irá violar alguma regra, ou demandar que ele tenha que trabalhar muito além do seu horário de trabalho, que é mais respeitado.
Outra coisa. Eles aceitam o não, mas odeiam surpresas. Se você fala que está tudo bem com o trabalho e depois eles descobrem que existiu um problemão para realizá-lo, eles vão ficar bravos. O mesmo se você disser que vai entregar algo num dia e não o fez e nem avisou, ou avisou em cima da hora. Isso traz à tona a questão da confiança, que é muito alta por aqui. A palavra vale muito e não cumpri-la tem consequências muito mais sérias do que no Brasil, inclusive do ponto de vista legal. Se você preencher num daqueles inúmeros formulários sim ou não para uma questão, aquilo tem um valor legal muito grande. É o contrário do que costuma acontecer no Brasil, onde a confiança no outro é baixa e daí se confere tudo diversas vezes.
Algumas coisas não mudam. Lidar com a força de vendas é um problema aqui como é aí. O que difere é que como se parte de uma cultura de confiança, as pessoas têm uma noção muito mais forte das consequências. No Brasil, é comum uma pessoa assinar um documento sem questionar. Aqui as pessoa tendem a questionar mais se não se sentir confortável com o teor. Na prática, em qualquer lugar são pessoas perseguindo objetivos e que precisam seguir as regras. O que é diferente é que o nível de enforcement aqui é muito mais alto.
A cultura texana
É engraçado. Quando cheguei eu era um brasileiro, um latino em Nova Jersey. Quando deixei a BD e vim para o Orthofix, eu era o cara de Nova Jersey no Texas. Os valores são diferentes, tem uma coisa muito forte do direito individual. É um choque bastante interessante.
Culturalmente em vários aspectos, o Texas é mais próximo do Brasil do que de Nova Jersey, Nova York ou da Califórnia, regiões mais progressistas. O estado do Sul – que declarou independente do México para ser incorporado como um estado norte-americano no século XIX – tem uma cultura destemida o que faz com que o apetite pelo risco seja maior lá do que no norte dos Estados Unidos por exemplo, o que faz com que o nível de risco de Compliance seja igualmente mais elevado.
Olhar para o próprio umbigo
Uma dificuldade dos profissionais norte-americanos é que eles costumam enxergar os negocios globais utilizando-se dos Estados Unidos como referencia. E ao querer aplicar o modelo mental norte-americano no Brasil, na Ásia ou em outros lugares do mundo acabam nao compreendendo uma série de nuances do mundo de negocios ao redor do mundo. Nisso, eu consigo contribuir com os norte-americanos, trazendo uma visão mais global.
Estava dando uma aula de Compliance nos Estados Unidos e um dos estudos de caso envolvia uma licitação. A maioria deles desconhecem esse conceito por aqui, a palavra, na pratica, não diz nada para eles. Agora, imagina gerenciar um negócio no Brasil, no meio de uma licitação, sem ele saber como funciona. Na mesma aula me perguntaram sobre a questão dos pagamentos de facilitacao (NE.: uma peculiaridade do FCPA que permite, em alguns casos muito específicos, pagamentos a funcionários públicos para acelerar certos processos). Esses pagamentos podem ser enquadrados como propina no Brasil. O FCPA é um ótimo referencial, mas se for a única referência você pode ter um programa capenga, que só para propina de funcionários públicos, disconsiderando por exemplo outros temas como pagamento de propina entre entidades privadas (commercial bribery). E é por isso que encontramos algumas falhas nesses programas globais de empresas norte-americanas, especialmente nas multinacionais de médio porte, que não tem esse conhecimento global mais amplo. Além disso, tal qual acontece no Brasil, ainda temos um monte de profissionais de Compliance que não conhecem o negócio e, mais ainda, como eles operam em mercados internacionais. Entender, por exemplo, que na África do Sul você tem uma questão afirmativa importante e que faz parte de processos licitatórios por lá.
Vantagens e desvantagens dos brasileiros
Os profissionais brasileiros de Compliance tem um diferencial tremendo nesse ponto. Olhamos para o mundo de uma forma mais ampla. Também temos uma capacidade de adaptação que é fundamental. Conseguimos lidar com 25 mil coisas ao mesmo tempo sem ficar malucos. Temos uma capacidade de improvisar, o lado positivo do jeitinho brasileiro. Conseguimos lidar com a escassez de recursos. O centro de serviços compartilhados de Compliance da BD nasceu disso, porque não tinha orçamento, mas tinha um centro de serviços administrativos compartilhados, na Polônia, que era o que estava disponível. Aí isso virou um modelo global. De maneira geral, um europeu encontra um orcamento limitado, ele simplesmente vai falar para não fazer. O brasileiro vai dar um jeito de fazer, mas isso abre um risco para fazer algo “meia-boca”.
O Brasil se martiriza demais. Achamos que somos o único País do mundo que tem um problema grande de corrupção, mas os outros também têm e não são poucos. A corrupção corporativa acontece lá fora em escala igual ou ate maior. É só olhar os grandes casos de corrupção na Alemanha, da Volkswagen ou o gigantesco caso de fraude na Wirecard, com o regulador germânico questionando os denunciantes. Quantos casos de empresas de países nórdicos que pagaram suborno no exterior, possivelment com o aval da matriz. Aqui nos Estados Unidos, todo dia encontramos na midia um caso de arrancar o cabelo. Só que os níveis de penalidade e enforcement são muito maiores. O Japão é outro exemplo clássico pais desenvolvido com diversos casos de corrupção corporativa elevada.
Qual o problema do Brasil comparando com os países desenvolvidos? Temos uma corrupção muito grande no varejo, a pequena bola, o gato na eletricidade, o café do fiscal… Isso é muito presente no Brasil e influencia muito na percepção da corrupção. Mas, estamos trabalhando para resolver nossos problemas, temos honestidade para admitir e tentamos resolver. Outros países ainda não fazem isso. Acho que o Brasil ainda falha muito no rule of law. Temos um arcabouço jurídico tão complexo e confuso que é muito mais fácil se defender do que culpar alguém.
Temos algumas desvantagens também no campo educacional. Você pode ter se formado na melhor faculdade do Brasil e nos Estados Unidos ou na Europa, ninguém vai saber quem é. Por isso, quem puder se valer de programas com accreditations internacionais ajuda a estabelecer uma referência. O segundo ponto é estabelecer o networking, estar em contato com esses profissionais. Também não podemos ignorar que existem vieses inconscientes. É natural, nos sentirmos mais confortáveis com quem tem a mesma base cultural. E quando você vem de fora isso é uma desvantagem. De cara, quem vai te entrevistar tende a ficar mais a vontade com quem se parece mais com ele.
Ao longo do tempo, tivemos que aprender que para fazer o que é certo, nós temos que entender o que é certo. Mas isso pode significar um monte de coisas diferentes. É o que meu chefe mandou fazer? É ganhar o negócio? Por isso, é importante respeitar as referências dos outros. Nesse ponto, o brasileiro se parece um pouco com o americano. Queremos chegar lá e ver as coisas funcionando como aqui. Temos que nos despir dos preconceitos e achar que tudo funciona do nosso jeito. É preciso achar um denominador comum, aí funciona bem. Olhar para o que nos atrai não o que nos separa. Para liderar um time global respeitar essas diferenças é fundamental.
BOX – Inglês é básico, sotaque não faz diferença
Não dá para cogitar uma carreira internacional sem falar inglês. Idiomas locais (da matriz da empresa) ajudam, empresas francesas levam isso um pouco mais a sério, mas se não falar inglês, não se coloca nem o pé na porta. Mas vejo muitos brasileiros preocupados com questão do sotaque, temos certo recalque, mas isso é a coisa menos importante. Você não precisa ter o inglês perfeito. Você precisa ter um inglês adequado à comunicação internacional, porque você vai lidar com diferentes sotaques.
Artigo publicado originalmente na edição 31 da Revista LEC.
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