Uma das principais preocupações da nova gestão da Comissão de Valores Mobiliários, a redução do custo do compliance regulatório, representa uma ótima oportunidade para atualizar as demandas atuais e incorporar novos elementos, que podem tornar o processo regulatório relativo ao mercado de capitais mais rápido e permitir uma melhor alocação dos esparsos recursos da autarquia
Embora o mercado de capitais brasileiro ainda seja bastante limitado, é essencial que quem participe dele se sinta seguro de que as informações financeiras e operacionais prestadas pela companhia refletem a realidade. A responsabilidade por garantir essa segurança é da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a guardiã da boa governança do mercado de capitais brasileiro.
A autarquia brasileira precisa lidar com desafios cada vez maiores, frutos de um mercado que, se ainda é relativamente pequeno no Brasil, ganha em complexidade e sofisticação ano após ano. Para dar conta dessa missão, a CVM conta com um orçamento bastante limitado para atender todas as suas necessidades, numa situação que não difere muito da de outros importantes reguladores brasileiros, como a própria Controladoria-Geral da União. “Precisamos fortalecer a CVM. E, com isso quero dizer que precisamos de mais pessoas para o trabalho. Precisamos contratar pessoas para fortalecer a comissão. Precisamos de mais investimento público, precisamos de orçamento”, disse o novo presidente da CVM, Marcelo Santos Barbosa. Ele afirma que essa será uma peça central da sua gestão à frente do órgão, que vai até 2022. A mensagem foi proferida pelo dirigente durante evento promovido pelo IBRACON, entidade que representa os auditores independentes, em São Paulo, no final de 2017.
Caso a retomada da economia engrene e o mercado de capitais volte a ter uma movimentação mais intensa, inclusive em termos de aberturas de capital, essa situação (de limitação de verbas) tende a se agravar. Como não é factível acreditar que a CVM poderá contar com um orçamento substancialmente maior no curto prazo, dado a situação das contas do governo central, é preciso encontrar alternativas para conseguir ser mais eficiente no papel de regulador, fazendo mais com menos.
Uma das soluções que podem contribuir para isso é aquela que foi apontada durante o discurso de Marcelo como uma das maiores preocupações da sua gestão: a redução do custo do compliance regulatório. “Precisamos encontrar o equilíbrio entre movimentos eficientes, que sejam fáceis de entender e ofereçam precaução aos investidores”, acredita o dirigente. Essa redução do custo regulatório pode ser traduzida em regras mais simples e até mesmo numa revisão das documentações que precisam ser produzidas e entregues à CVM. Esse processo pode representar também uma oportunidade, para que a própria CVM olhe em como otimizar o seu trabalho, deixando de analisar questões que, nos dias de hoje, talvez não sejam mais relevantes, centrando esforços naquilo que é realmente mais relevante para o funcionamento seguro do mercado de capitais e, principalmente, para a confiabilidade dos investidores no sistema.
Um regulador como a CVM, em qualquer jurisdição, lida com um grande volume de informações de natureza complexa e, muitas vezes, interpretativa. Por isso, o momento da divulgação, a qualidade e a conclusão da informação, bem como a linguagem utilizado para entregar a informação ao público são tão importantes para quem regula o mercado de capitais. “Precisamos examinar essas questões, avaliar o que já foi realizado e buscar entender onde existe margem para melhorias”, aponta o presidente da CVM, que lembra que, em relação à questão da divulgação de informações, existe uma literatura robusta na indústria farmacêutica e na indústria de seguros sobre excessos e falhas na divulgação de informações, algo com o qual a CVM está trabalhando.
A simplificação das regras regulatórias é algo desejável. Primeiro para tornar cada vez mais transparentes e previsíveis as regras de funcionamento do negócio, aumentando a previsibilidade e a capacidade de planejamento das empresas e dos investidores, inclusive a longo prazo. E, também para acompanhar a evolução dos próprios mercados.
Elementos importantíssimos 10 anos atrás ficaram obsoletos por conta da adoção de novas tecnologias, ou, simplesmente, porque os hábitos de consumo de informação mudaram.
A redução do custo regulatório passa muito pelo volume de informação que é exigido e a forma como o regulador determina que essa documentação tem de ser entregue. E, aí é preciso analisar, a luz do atual momento, se aquilo continua fazendo sentido e, claro, se existe alguma alternativa melhor. “É como você ter que vender um produto com um manual em papel, porque é obrigado. Só que ninguém lê o manual mais. Se a pessoa tiver dúvida ela vai no Google, ou pode acessar uma versão digital”, explica Flávia Mouta, diretora de Regulação de Emissores da B3, a bolsa de valores de São Paulo. A executiva, que diz não ser dada a posições extremas, não acha que (a regulamentação atual) seja um super problema. Mas, que existe sim espaço para melhorar. “Custo regulatório faz parte das discussões de qualquer mercado. Falar disso está em voga, mas é algo que já foi sinalizado antes e que agora volta à tona”, diz. Flávia acredita que o tema tem razão de ser, mas que exige cautela. “Não dá para ver que todo o esforço regulatório seja diminuído”, acredita ela, que também não vê uma demanda do mercado por uma desregulamentação total, mas sim melhorar o entorno do mercado de capitais.
A própria B3, que também atua como regulador das empresas que negociam papéis no seu pregão, tem buscado formas de simplificar a sua regulação. Um bom exemplo disso foi a revisão do Novo Mercado, segmento da bolsa com o mais alto nível de governança.
As novas regras avançam nas práticas de governança corporativa exigidas pelas empresas e um componente grande nas discussões foi a regulação. O novo regulamento passa a valer em fevereiro deste ano e revisou uma série de demandas que faziam sentido nos anos 2000, mas que hoje estão mais do que datadas. “Recebemos uma geração que traz uma dinâmica distinta. Por isso, vejo o contexto de diminuição regulatória mais no sentido de evolução do que uma sanha desreguladora”, pontua Flávia. A diretora da B3 aponta para duas mudanças muito elucidativas dessa nova realidade. Quando o Novo Mercado foi lançado, uma regra exigia a realização de uma reunião anual e presencial com os analistas de mercado. O objetivo disso era trazer os analistas para mais próximo das empresas, que abririam suas portas para recebê-los. Mas, hoje, com o avanço da internet e a grande disponibilidade de ferramentas como vídeo-conferências e transmissões online, gastar dinheiro e tempo das empresas e dos analistas com um evento presencial é um tanto quanto sem sentido. A simplificação se deu também no próprio texto do regulamento, que foi editado numa linguagem menos rebuscada, com maior fluidez e simplificação de linguagem.
Mais agilidade
A simplificação do compliance regulatório pode gerar muito mais benefícios do que apenas a redução de custos envolvidos. Ela abre também a possibilidade de tornar alguns processos mais ágeis, valendo-se da documentação e informações comuns já demandadas e validadas por outros reguladores, por exemplo.
Um exemplo disso é o processo de oferta inicial de ações, os famosos IPO‘s. Em geral, esse processo está atrelado à própria entrada da companhia na bolsa. A partir do momento em que a companhia comunica sua intenção de abrir o capital na bolsa, ela passa a ter de lidar com um grande número de processos, o que envolve muita preparação de documentação e demanda recursos humanos, tempo e dinheiro. Como envolve vários agentes externos como advogados, bancos e muitas consultorias, abrir o capital na bolsa costuma custar para a empresa algo entre 0,5% e 4% do montante negociado com a oferta inicial. É um investimento que faz sentido e que é feito uma vez. Para o mercado é importante que alguém que nunca negociou publicamente com investidores sofra um escrutínio e se comprometa com a apresentação de todas as informações necessárias para isso. Afinal, até então a empresa era uma companhia fechada e sem nenhuma obrigação de abrir os dados da sua operação para ninguém.
Mas, existe um grupo de empresas, que por diferentes motivos, já são companhias de capital aberto, têm balanços auditados de forma independente e publicados para o público, mas não negociam papéis no pregão.
Luciano Cunha, sócio da empresa de auditoria EY, acredita que a autarquia poderia estabelecer um fluxo diferenciado de trabalho para empresas que já são companhias abertas por questões regulatórias ou porque receberam aporte do BNDES, por exemplo. “Quando uma dessas empresas vai fazer um IPO ou emitir títulos de dívida, a CVM exige um rito normal como se fosse uma nova entrante e como se a empresa nunca tivesse feito nada. O processo perde em termos de prazo e o custo acaba sendo similar ao de qualquer empresa que vai acessar à bolsa pela primeira vez”, explica.
Embora a CVM tenha a instrução a 476/2009 que trata da oferta pública de valores mobiliários nos mercados regulamentados, isso se aplica apenas a empresas que já negociam no mercado e buscam novas oportunidades no mercado de capital. “Mas, para as companhias desses setores que vão fazer um IPO, elas vão ter de passar pelo mesmo escrutínio, ainda que já publiquem seus balanços auditados”, diz Cunha, que reforça dizendo que os prestadores de serviço, como as auditorias, acabam tendo de preparar os mesmos processos.
Em contraponto, Flávia, do B3, pontua que o foco dos reguladores é diferente. “A CVM tem um foco como regulador do mercado de capitais. É difícil comparar uma exigência regulatória da Anel (regulador do mercado de energia) com as da CVM’, diz a executiva da B3. Mas, ela acredita que pode existir sim um trabalho de harmonização entre as informações disponibilizadas.
Menos gente, mais proximidade
Outro efeito colateral que pode surgir da simplificação do compliance regulatório é um melhor aproveitamento do corpo técnico da CVM permitindo que eles direcionem seu trabalho para a análise de questões mais relevantes para a segurança da informação prestadas aos investidores. “A limitação de pessoal, que dificulta um pouco o trabalho, é compensado por uma maior facilidade de acesso e por profissionais que estão mais próximos do mercado, o que é positivo”, acredita Silvio Takahashi, também sócio da EY. Ele ressalta, inclusive, que quando comparado a outros órgãos de regulação no Brasil, existe uma presença maior de pessoas que já trabalharam no mercado, vão para o regulador e voltam para a inciativa privada. Flávia Mouta é um bom exemplo desse movimento. Ela atuou por cerca de 15 anos na CVM antes de chegar a B3.
Embora seja considerado um regulador com um viés mais punitivo, na comparação com outros reguladores do mercado financeiro, a CVM costuma ser muito transparente no que ela vai pedir. Todo ano o regulador elege seus principais temas de atenção e comunica isso ao mercado. “Você pode até não concordar (com o foco deles), mas eles preparam o mercado. Agora um dos focos está na questão dos derivativos internos, então eles vão para cima disso. É algo que eles já avisaram que vão pedir”, reforça Luciano Cunha.
A CVM também vem desafiando as empresas a justificar as análises que foram feitas para avaliar o risco do investimento. Pode ser que no processo de preparação financeira, um conteúdo que a empresa não tenha julgado importante, mas que a CVM acha importante.
Será preciso entender melhor as propostas que a CVM vai colocar na mesa daqui para frente e que vão simplificar o compliance regulatório. E, esse processo certamente vai contar com a participação dos diferentes agentes de mercado, via audiências públicas, como tem sido a regra da autarquia. “Eu sei que os mercados competem pelo capital. No entanto, se existe uma área na qual reguladores e as partes interessadas atuam em plena cooperação é essa. Até agora, as relações com as partes interessadas foram verdadeiramente sustentáveis. Tentaremos dar-lhes boas razões para manter essa mentalidade ao longo dos cinco anos do meu comando”, conclui Marcelo Barbosa, da CVM.
Reportagem publicada originalmente na edição #20 da Revista LEC