Como os profissionais de Compliance podem vender o valor da área para a única, ou para as poucas pessoas que realmente têm poder de garantir o sucesso ou o fracasso da implementação do programa em companhias familiares? Especialistas da área respondem
O desafio da implementação efetiva de programas de integridade em empresas familiares, que na maioria das vezes não possuem uma estrutura de governança corporativa, é um tema cada vez mais recorrente dentre os especialistas e consultores de Compliance.
Dados do IBGE e SEBRAE mostram que 90% das empresas no Brasil ainda são familiares. Esse grupo representa cerca de 65% do PIB nacional, empregando 75% da mão de obra do País. Contudo, mesmo com esse destaque, é notório que organizações familiares, dirigidas e geridas majoritariamente por membros da família fundadora, tendem a enfrentar desafios que outras empresas, com gestão “profissionalizada”, não enfrentariam.
Para a especialista em Compliance, auditoria e gerenciamento de riscos, Diana Antunes, cumprir com leis, normas e regulamentos é obrigação de qualquer empresa que visa à perpetuidade. “Quantas empresas não vimos falir por falta de pagamento de impostos ou por suborno de agentes públicos? Como o fundador pode garantir que todos os seus funcionários estão agindo conforme suas diretrizes, para que a missão que estabeleceu e os objetivos definidos sejam alcançados?”, questiona. “É função dos profissionais da área de Compliance educar as pessoas com poder de decisão nestas empresas de que os demais funcionários agirão conforme o exemplo que elas derem. A partir deste comprometimento da alta direção, os profissionais podem demonstrar que empresas com um programa de integridade implementado possuem um diferencial competitivo, tendo em vista que podem fazer negócios com empresas grandes (principalmente multinacionais) que estão cada vez mais exigindo de seus parceiros evidências de seu comprometimento com padrões éticos”, explica.
Infelizmente, muitas empresas, familiares ou não, pecam por confiar seus controles a indivíduos e não a procedimentos claramente documentados. Ainda que todo relacionamento demande confiança, há de se observar as mudanças comportamentais de cada geração. Décadas atrás, era muito comum encontrarmos pessoas que trabalhavam a vida toda na mesma empresa, até chegar sua hora de se aposentar. Muitas vezes, essas pessoas continuavam no mesmo departamento, executando as mesmas tarefas e eram de extrema confiança do dono da empresa. Hoje, este cenário é raro. Se a empresa não tem procedimentos solidamente estruturados, ao “perder” um colaborador, aquele processo que era de responsabilidade dele também se perde. Outro desafio é deixar as vaidades de lado e ter a humildade para treinar o seu sucessor, mesmo que essa sucessão não tenha data para acontecer.
No entanto, é possível usar a vaidade pessoal dos empresários a favor do sucesso do programa de Compliance, uma vez que todo empresário gostaria de ser conhecido por ser disseminador da cultura ética em um país cujo índice de percepção de corrupção não é dos melhores, onde a “cultura do jeitinho” (quase) sempre ganha. “O diferencial competitivo começa pelo comportamento demonstrado pelo principal ‘rosto’ da empresa, aquele que faz os demais o invejarem por estar conseguindo contratos excelentes por ter um programa de integridade robusto”, pontua Diana.
No entanto, algumas situações vão além de um programa de integridade. “Ter o programa não vai garantir que nunca mais ocorrerá uma má conduta, uma fraude etc., mas a empresa poderá diminuir a probabilidade da ocorrência. No entanto, quando infringir regras é algo intencional da alta administração, nem o melhor programa de integridade/Compliance é capaz de barrar”, conclui Diana.
Professora da prática de Compliance em diversas instituições de ensino e gerente sênior de Governança e Compliance da consultoria ICTS, Patrícia Punder acredita que as empresas familiares com planos de perseverar seu negócio por mais gerações devem pensar na profissionalização e na implementação de um programa de governança. “A empresa tem uma função social segundo a Constituição Brasileira e não serve apenas para agradar ao ego do dono, mas para gerar empregos, renda e pagamento de tributos”, lembra. “Sem esta visão clara de futuro, a tendência e que empresas que continuarem com mentalidade do passado não venham a ter futuro. A única garantia que uma empresa familiar tem para sobreviver será através da profissionalização e da implementação de programas de governança e, consequentemente, a implementação de um programa de integridade efetivo”, diz.
Gestão profissionalizada
Entre as grandes dificuldades das empresas familiares está a transição de uma geração para a seguinte sem que alguns valores fiquem esmorecidos ou deixados de lado. Nesse sentido, apenas com uma boa governança corporativa e profissionalização, elas vão sobreviver. “Infelizmente, nem sempre a segunda geração tem força para implementar um programa de governança ou gerir a empresa de forma mais profissionalizada devido à forte influência da primeira geração ou do próprio fundador”, afirma Patrícia.
Fato é que frases como “sempre fizemos as coisas deste jeito!” ainda são muito comuns de serem escutadas em empresas familiares. Os valores implementados pela primeira geração ou fundador podem continuar e devem, mas por meio de programas estruturados de governança que irão garantir a sustentabilidade do negócio a médio e longo prazo.
Devido à operação Lava Jato, muitos empresários e executivos começaram a ficar mais cautelosos de agir como no passado. “Não significa que ainda não deixaram de fazer atos potencialmente ilegais, mas já hesitam em tomar certas decisões ou seguir com certas práticas inapropriadas”, lembra a executiva da ICTS. “Utilizar desses exemplos ajuda a demonstrar aos empresários que se eles seguirem pelo caminho da ética e estruturarem programas de integridade, suas empresas e seus sobrenomes não irão aparecer nos jornais ou em qualquer mídia social. A pior situação para uma empresa ou empresário simplesmente é ser pauta do noticiário nacional negativamente”, diz Patrícia.
Além do mais, existe a questão da futura empregabilidade. Um executivo exposto a uma crise reputacional tem maior dificuldade de se recolocar no mercado. Temos exemplos de ex-executivos famosos, inclusive de multinacionais, que simplesmente sumiram do mapa depois dos escândalos. Alguns foram demitidos, outros saíram por acordo.
Mecanismos de independência
A implementação de um comitê de ética depende do nível de maturidade da empresa e dos executivos que ali trabalham. Muitas empresas devido à crise econômica resolveram demitir Compliance Officers e incluir Compliance junto ao Jurídico novamente. Ou, então, simplesmente, demitiram profissionais mais sêniores e contrataram colegas mais juniores devido ao valor do salário. “Falar de independência de um comitê de ética, requer que primeiramente exista um departamento de integridade com autonomia e senioridade compatível com os riscos que a empresa enfrenta, sob pena do comitê de ética ser somente no papel”, alerta Patrícia.
Um programa de integridade efetivo pode vir a ajudar a empresa quando existem questões familiares públicas no radar. Se de fato, o Compliance Officer for independente, tiver autonomia, recursos e senioridade adequada, as brigas de família serão vistas como situações pessoais envolvendo pessoas que não aceitam perder o poder. A questão e o quanto a empresa de fato investiu em um programa de governança e profissionalizou a empresa para evitar que brigas familiares não causem estragos financeiros e reputacionais na empresa.
Na opinião do sócio diretor do Guirão Advogados, Alexandro Rudolfo de Souza Guirão, é muito difícil vender ou justificar a importância da área de Compliance para uma empresa familiar sem nenhum nível de profissionalização ou que não esteja obrigada a implementar um sistema de gestão de riscos. A família que a controla ou o seu fundador está há uma, duas gerações ou mais, tocando os negócios sem precisar se preocupar com esse tema. “Em empresas onde a imagem do fundador é muito forte, é improvável que ela admita a importância de uma área para cuidar de prevenção de corrupção, fraudes etc., pois isso refletiria negativamente na imagem dele próprio, do sujeito que é o dono do negócio. E, quando eles imaginam que um programa como esse pode expor a sua fragilidade, falta de transparência e suas vulnerabilidades, então, fica mais complicado, mas eu acredito na importância de aproveitar esses gaps para demonstrar o valor da área de Compliance”, afirma. “Embora não seja sua responsabilidade, ela pode deflagrar um processo de profissionalização da empresa, além de combater corrupção, identificar outras fraudes e auxiliar na criação de controles internos que prevenirão suas ocorrências”, complementa.
Guirão aposta, ainda, na visão de sustentabilidade e perenidade como argumento para o convencimento dos empresários ou núcleos familiares. Se uma empresa familiar está integrada numa cadeia de fornecimento, por exemplo, para uma multinacional, ela já está ciente de que precisa se adequar, pois do contrário, perde negócios. Se ela, empresa, é quem contrata fornecedores de menor porte, sabe que os desvios do seu parceiro podem comprometer seus negócios. “Empresa que demonstra e cobra integridade tende a ser sustentável e perene. O empresário que adiar a decisão adotar as ferramentas de gestão de riscos de Compliance, um dia vai ter que correr atrás do prejuízo, sem contar que está vulnerável”, explica.
A própria sucessão empresarial é um fenômeno que depende de governança e profissionalização. A gestão dos riscos de Compliance e da mensagem de integridade que a empresa quer passar para as gerações que virão, para garantir a perenidade do negócio da família, integra a governança. O mais importante é que se crie um sentimento de proteção do negócio da família. Quanto mais desassociada da imagem do fundador, melhor! A integridade deve ser transmitida às gerações futuras como um valor da organização. Outro elemento de grande importância, falando em sucessão na empresa, é a identificação de lideranças entre os membros da família controladora, pois nem todos estão preparados para gerir os negócios.
Há um tempo, a palavra de ordem no mundo corporativo era sustentabilidade ou responsabilidade socioambiental. Muitas empresas vendiam isso como “valor” de seu negócio e usavam como publicidade. Em tempos em que empresários aparecem algemados na mídia, ou prestando depoimentos para a polícia, penso que vender a ideia de integridade da empresa “cola” na imagem do empresário familiar. Os danos provocados pela exposição negativa que muitos empresários sofreram é um alerta para esses empreendedores. Quantas empresas não diminuíram enormemente de tamanho após os escândalos de corrupção, e quanto o patrimônio desses empresários e de suas famílias também não foram afetados! “Mais do que vaidade, a questão é a proteção do negócio e do patrimônio do núcleo familiar do empresário”, diz Guirão.
Existem instrumentos interessantes utilizados em planejamentos empresariais familiares, como Protocolos Familiares (espécie de acordos de acionistas) que regulam o comportamento dos membros de famílias empresárias, tratando das obrigações e deveres que devem observar, sob pena de serem afastados de suas funções, ou não participação de conselhos de administração, por exemplo. Esses mecanismos devem ser uma extensão da política de conflito de interesses, voltada especificamente para os integrantes da família que participem do negócio ou que tenham influenciam nas decisões da organização (por participarem de conselhos de administração, por exemplo). Além disso, garantir a autonomia do gestor de Compliance é muito importante. Ele é quem poderá fazer com que os demais membros da companhia mantenham a distância necessária dessas divergências familiares, auxiliando na continuidade dos negócios, de forma íntegra, prevenindo que os problemas da família não reflitam na organização.
Não é diferencial, é obrigatório
A grande maioria das companhias familiares é composta por pequenas e médias empresas (PME’s). Muitas são sociedades familiares cujo negócio é conduzido e controlado a partir da visão do fundador que é o verdadeiro empreendedor. Nessas empresas, o patrimônio dos empresários é constituído a partir da empresa, ou o patrimônio da pessoa está todo investido no negócio. Assim, a questão da integridade nos negócios depende muito da visão do empresário, do quanto ele está disposto a assumir de riscos para manter ou aumentar o patrimônio da sua família.
Ao pensarmos que a legislação de licitações favorece pequenas e médias empresas nos certames, reservando até 25% dos negócios para PME’s, a manutenção de programas de integridade anticorrupção reforça aquela visão de sustentabilidade e perenidade. “O empresário que tem a Administração Pública como cliente precisa se preocupar com o tema e, mais uma vez, a questão é de sobrevivência. Vale lembrar que muitos Estados e Municípios já possuem leis próprias exigindo que a empresa contratada mantenha programas de integridade. Ou seja, seja por conta do encadeamento de produção, seja porque o cliente é a Administração Pública, o programa de Compliance para empresas familiares, de pequeno, médio e grande porte, é uma questão de sobrevivência”, pontua Guirão.
Sócio da T4 Compliance, Matheus Cunha defende que um profissional de Compliance – seja em consultoria, seja in house – deve ser capaz de vender o projeto de implementação como um conceito e como uma solução, mostrando um cenário positivo sobre as vantagens de aliar o Programa Compliance com a melhoria da gestão e da governança da organização a resultados sustentáveis e concretos. “Agora, inegavelmente, o cenário negativo também deve ser refletido. A forma de fazer negócio no mundo mudou, assim como a maneira de se controlar a iniciativa privada, o setor público e o terceiro setor também mudaram. O lucro, puramente no aspecto financeiro, por meio de condutas ilícitas e impróprias, pode vir acompanhado com outros resultados que o convertem em prejuízos incalculáveis, como multas e indenizações, restrição de direitos e danos à imagem da organização e todos aqueles que com ela se relacionam. Sem falar da possibilidade de responsabilização individual de administradores, executivos e demais gestores. Um conversa (ou mais de uma) bem franca e didática é fundamental para o alinhamento de entendimento e de expectativas do indivíduo e do grupo familiar que controla a empresa”, lembra o executivo.
Quanto mais uma empresa cresce, mais complexo fica o seu modelo de gestão, e a ausência de governança retarda suas estratégias, e a capacidade de demonstrar valor e rentabilidade, onde o foco é apenas em seu “dono”, não no tratamento igualitário para com todos os stakeholders. A afirmação é do gerente de Governança, Riscos e Compliance do grupo GTFoods, Emerson Luiz da Costa Mercado, que enfatiza que é o grande desafio do profissional de Compliance no momento de vender o valor do programa é conquistar o apoio e o suporte da alta administração. “É preciso que estejam convencidos de que o conhecimento e a cultura de seus acionistas irá contribuir para a proteção e perpetuação do negócio diante das transformações que o meio empresarial vem passando, contribuindo com a adoção de políticas e práticas que irão orientar o funcionamento do negócio, estabelecendo uma relação mais transparente entre todos os processos dentro da organização, com regras claras de separação entre gestão e operação, contribuindo assim para a separação dos papéis, transparência de gestão, melhora na imagem da empresa perante o mercado, na satisfação de seus colaboradores, melhor produtividade, facilidade de captação de recursos, redução de riscos jurídicos e financeiros, dentre outros benefícios”, diz Mercado. “O sucesso ou o fracasso da implementação do programa nesse tipo de organização depende da capacidade do profissional de Compliance em garantir que o modelo de negócio construido não seja afetado, mas sim melhorado, criando mecanismos de proteção para a perpetuação e sobrevivência do negócio diante das dificuldades do mercado, e da cultura de seus sucessores”, completa.
Para Cunha, a nova geração parece mais preparada para enfrentar as questões de Compliance. “Não é exatamente uma regra, mas em muitos casos, a troca de bastão entre gerações, tem sido uma alternativa para uma verdadeira revolução na forma de gerir a organização, com estratégias mais dinâmicas e alinhadas com as novas expectativas de mercado, mas também com as funções sociais que a empresa deve desempenhar”, explica.
Cada vez mais as empresas e seus executivos têm percebido as vantagens, ainda que não financeiras, de não somente ser um modelo de negócio pautado na ética e na integridade, mas também de parecer um modelo de negócio pautado na ética e na integridade.
Em meio a competitividade do mercado, tanto interno como externo, as empresas familiares devem estar preparadas para as pressões impostas, com planos de contingência estruturados para a alteração de posicionamento e estratégia quando necessário, para serem mais competitivas. O processo de estruturação de governança trabalha a responsabilidade dos empresários, conselheiros e todos os executivos do negócio, para que a tomada de decisão seja sempre a mais assertiva e que não comprometa a continuidade do negócio.
“Para ser efetivo, o Programa de Compliance não basta existir, ou seja, ter os seus pilares formais implementados. Deve ser conhecido, compreendido e aplicado por todos dentro e fora da companhia, em quaisquer níveis da organização. Deve ser visto com um parceiro dos negócios e não simplesmente como controle ou burocracia”, ressalta o sócio da T4 Compliance.
“Sendo assim, não há caminho mais curto ou fácil a se seguir na criação de um ambiente saudável de governança e de uma cultura de integridade, e isso independe do porte ou ramo de atuação, mas será, de fato, um diferencial de sucesso para uma empresa familiar, com interações contínuas entre as áreas estratégicas, táticas e operacionais, criando um ambiente de fiscalização, controle e atitudes de remediação visando sempre a melhoria contínua dos processos, mas também de indicadores de performance e de resultados mais sustentáveis no logo prazo”, finaliza Mercado.
Publicado originalmente na edição 28 da revista LEC: “Negócios de família”
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