Novas instruções normativas e acordos vão permitir à CGU uma atuação mais célere e assertiva nos casos que envolvem a Lei Anticorrupção ao mesmo tempo em que oferecem mais segurança para as empresas envolvidas em investigações e negociações de acordos de leniência.
Pilar central para o avanço da área de Compliance no ambiente corporativo brasileiro, a Lei Anticorrupção trouxe elementos novos para o arcabouço legal, como a responsabilização objetiva de empresas e a possibilidade de serem firmados acordos de leniência. Como toda novidade, o uso desses instrumentos, na prática, vem sendo aperfeiçoado entre os diferentes atores envolvidos (ou que querem se inscrever). Nesse cenário, a Controladoria-Geral da União (CGU), que na prática é a principal responsável pela aplicação dessa legislação no País, tem feito mudanças na sua estrutura para, dê um lado, garantir mais celeridade e assertividade tanto no processo de investigação e acusação quanto nas negociações de leniência, ao mesmo tempo em que oferece mais transparência à sociedade e mais segurança para as empresas envoltas em processos de responsabilização ou que negociam acordos de leniência.
Uma dessas medidas foi a assinatura, em nove de agosto, de uma portaria conjunta da CGU com a Advocacia-Geral da União (AGU) que ajusta e define melhor as atribuições dos órgãos internos de cada pasta na condução dos acordos de leniência. Caberá ao Departamento de Patrimônio e Probidade da Procuradoria-Geral da União (DPP/AGU) representar a AGU na condução dos trabalhos, enquanto pela CGU, está explicitado que a responsabilidade cabe à Diretoria de Acordos de Leniência, vinculada à Secretaria de Combate à Corrupção (DAL/CGU). Ambos os órgãos foram criados no início deste ano e, por isso, não eram apontados na portaria que tratava do tema, publicada em 2016.
O diretor do DPP/AGU, Vanir Fridriczewski, diz que uma das vantagens da nova portaria é sistematizar a cooperação entre as pastas. “AGU e CGU vão ter estruturas semelhantes para atuar de maneira sistematizada, organizada e cooperativa, o que é indispensável para uma atuação exitosa do Estado nessa temática”, afirma o servidor da AGU. Agora, após as alterações promovidas pela AGU, a pasta passa a contar com um corpo equivalente ao da CGU para lidar especificamente com os acordos de leniência, com profissionais especializados no tema e a criação de um grupo de trabalho para dar consequência às informações oriundas de colaborações das empresas, assim como já existe na CGU. Além disso, os órgãos que necessitarem de informações sobre os acordos de leniência saberão a que órgãos da AGU e CGU deverão se dirigir.
Esse movimento reforça o papel do Grupo de Ajuizamento Decorrente de Acordos de Leniência (Graal), criado no início do ano com o objetivo de buscar a recuperação de ativos por meio de ações contra outras empresas e pessoas físicas que foram citadas nas irregularidades reveladas durante a leniência. “Uma vez finalizada a negociação, poderemos atuar tanto no aprofundamento de investigações e eventual propositura de ações, que vai ser a função do Graal, como na defesa e prestação de esclarecimentos junto ao TCU, que estará devidamente regulamentado como trabalho do Departamento de Assuntos Extrajudiciais da Consultoria-Geral da União, vinculada à AGU”, observou Vanir Fridriczewski.
Para o secretário de Combate à Corrupção da CGU, João Carlos Cardoso, a portaria conjunta supre a necessidade de alinhar necessidades especificas legais que são prerrogativas da AGU em relação aos acordos de leniência, que de acordo com a Lei Anticorrupção, estão a cargo da CGU. “Na nossa visão, sem a participação da AGU o acordo ficaria capenga, já que existem prerrogativas que são da Advocacia-Geral da União e que poderiam levá-la, por exemplo, a entrar com uma ação de improbidade contra a empresa, mesmo que ela estivesse numa negociação. Além dessa maior segurança, agrega-se uma expertise específico da AGU, muito voltada para definição de valores, da avaliação de contratos contaminados e outras questões de ordem legal”, acredita o responsável pela secretaria, criada neste ano e que tem sob seu guarda-chuva a diretoria de Acordos de Leniência.
A reestruturação dos procedimentos de negociações de acordos traz também mais transparência à atuação das duas instituições, uma vez que prevê a publicidade dos acordos após a assinatura, exceto em casos nos quais exista imposição legal de sigilo das informações – como proteção a investigações em curso, para a construção de novos elementos de prova, informações comercialmente sensíveis ou dados pessoais. Em prática desde abril deste ano, o procedimento de divulgar integralmente os acordos assinados foi formalizado na nova portaria.
Escopo delimitado
Desde a celebração do primeiro acordo de leniência tendo como base a Lei Anticorrupção, em 2017, os servidores da CGU viveram um processo de aprendizado sobre o que é importante e o que é possível de ser negociado em acordos dessa natureza.
A portaria conjunta traz outros aspectos bastante relevantes para o mercado. Um dos mais importantes, em especial para as empresas, é o que trata da delimitação temporal do escopo do Acordo de Leniência, algo que é fundamental para garantir que uma empresa, acusada de corrupção em 2017 e inocentada dessa acusação, seja punida por algo que teria acontecido em 2011, no mesmo processo. “Acreditávamos que o acordo deveria resolver mais coisas do que deveria de fato. Que o acordo deveria ressarcir todo e qualquer dano, mas essa é uma dimensão que não temos como alcançar em sua plenitude”, reconhece João Carlos. “Teríamos que ter uma auditoria em tudo o que foi fechado como setor público nos últimos anos”, emenda o Secretário de Combate à Corrupção.
Dentro do corte temporal é preciso que a empresa reporte tudo o que ela tem conhecimento. “Não pode ser uma colaboração seletiva, mas é possível que de fato, em determinado momento, a empresa não tenha conhecimento de todos os elementos. Por isso é importante ter clareza de que os benefícios do acordo se referem a esse escopo particular. “Se surgirem fatos novos depois do acordo – e é possível que surjam – vamos avaliar. Se for algo doloso, rescindiremos; se for algo em relação ao qual a empresa realmente não tinha condições de relatar naquele momento, nós vamos avaliar a situação”, reforça o secretário.
Além de ser importante para as empresas, essa delimitação atende também aos interesses da própria CGU em relação à necessidade de fechar um escopo para investigar ilícitos dentro num espaço de tempo razoável para o fechamento do acordo. “Claro que entendemos que a melhor alternativa, do ponto de vista da resolução, é ter uma sanção adequada. Mas temos que levar em conta que o Estado também se beneficia de outros elementos, como a celeridade e a obtenção de novas provas”, explica Cardoso. Apesar disso, o acordo não pode atrapalhar a pretensão de ter o dano reparado e o acordo é muito claro ao estabelecer que as isenções não são eternas e só valem dentro do contexto do escopo delimitado. O Estado poderá indicar em processo administrativo próprio se ouve superfaturamento, por exemplo e o próprio acordo não veda a possibilidade de o TCU vir a processar a empresa posteriormente por essa situação. Também para agilizar o fechamento dos acordos, a portaria determina que antes de os acordos subirem para a assinatura dos ministros, as informações do acordo passam por uma análise da CGU e na AGU.
Balcão único? Difícil
Espécie de fetiche entre os profissionais e advogados de Compliance, o estabelecimento de um balcão único de negociações no Brasil é algo de difícil execução prática, dado o modelo constitucional e legal do País. A responsabilização da pessoa jurídica é cível e administrativa e, no caso das pessoas físicas, o processo (por corrupção) é penal. Ou seja, existe uma multiplicidade de agentes envolvidos dos quais não dá para fugir.
Para João Carlos Cardoso, pensando do ponto de vista do Estado, essa multiplicidade de balcões não é um problema, desde que se consiga evoluir para um trabalho mais bem coordenado. “Não poderíamos regular a atuação do MPF, mas, nesse sentido, temos avançado muito nas discussões e já celebramos acordos coordenados com o Ministério Público”, diz. Num cenário otimista ele acredita que no longo prazo esses agentes estarão realmente integrados nesse objetivo comum. “Caminhamos nesse sentido e acho que termos posições bastante sólidas e seguras para que isso aconteça”, emenda Cardoso.
Embora afirme que a portaria conjunta reforça (e não enfraquece) a posição do TCU, a situação com o tribunal é mais embrionária. Segundo o secretário de Combate à Corrupção, é difícil dizer que o relacionamento com o tribunal em relação aos acordos de leniência está pacificado. “Acho que lá o processo ainda está amadurecendo, não ha um consenso como a gente imagina. Mas temos conseguido demonstrar que a dimensão do nosso acordo não prejudica a busca pela reparação integral do dano”, reforça Cardoso.
Antes de acusar, investigar
Outra novidade importante na forma como o Estado brasileiro passa a lidar com a aplicação da Lei Anticorrupção foi disposta na Instrução Normativa 13/2019. Agora, ao invés de abrir um procedimento que na prática funcionava como investigação e acusação ao mesmo tempo, a CGU só irá apresentar as acusações após um processo prévio de investigação de cada caso.
Esse novo modelo preserva as empresas de terem que lidar com casos que podem levar anos sem que uma acusação formal seja feita contra ela. O Corregedor-Geral da União, Gilberto Waller Junior, conta que até mesmo pelo desconhecimento sobre como realizar o processo de responsabilização de pessoas jurídicas, ele acabava muito parecido com os processos estabelecidos para pessoas físicas. “Claro que isso acabava não funcionando. Na portaria de instauração de processos você vai nominar quem vai responder. Se vai nominar é preciso que seja uma peça acusatória, que traga as provas que sustentem o processo contra a empresa. Com isso incrementamos os veículos de admissibilidade – com a autoridade instauradora já fazendo uma análise previa”, explica o corregedor-geral, para quem o formato agora se assemelha a uma denúncia do Ministério Público. “Preciso ter provas mínimas ou não instauro o processo”, reforça. Isso significa que, durante o juízo de admissibilidade, poderão, por exemplo, ser realizadas oitivas de testemunhas, solicitados documentos diversos e compartilhamento de informações com outros órgãos. Além disso o processo passa a ser muito mais célere e tocado por uma equipe mais especializada.
Na mesma linha do que passa a acontecer com a negociação dos acordos de leniência, as acusações agora passam a ser feitas a partir de infrações ou fatos pré-determinados. “Se pagou propina vai ser responsabilizado por ter pagado propina, não pela má-execução de uma obra. Isso pode levar, sim, a punição da empresa, mas em outro processo”, explica Waller Junior, que diz que essa situação acontecia com alguma frequência, inclusive com mudanças de fatos e juízo de valor diferente. “Agora, a infração ou o fato são pré-determinados. Se outros fatos aparecerem, você abre outro processo, mas aquele segue o escopo inicial”, reforça.
Tudo isso está sendo possível graças a mudanças na estrutura da própria Corregedoria. Antes os processos de responsabilização ficavam a cargo de uma única coordenação. Agora, foram criadas duas diretorias: uma responsável pelo processo de investigação prévia e outra que, a partir dessa fase, toca o processo de responsabilização. No total, são cerca de 50 pessoas cuidando de responsabilização de pessoas jurídicas. O Corregedor-Geral acredita que ao retirar de quem vai investigar o poder de acusar, você ganha uma dinâmica mais parecida com o que acontece na área penal, com a maior segurança de uma segunda análise sobre os fatos e um processo mais ágil, rápido e seguro.
Como os processos de responsabilização, quando instaurados , já serão peças de acusação, a Corregedoria estabeleceu uma área dentro do seu site na qual apresenta o rol de empresas acusadas pelo órgão com base na lei anticorrupção. A ideia de Gilberto é que já em 2020, esses processos possam estar num modelo de transparência ativa, ou seja, qualquer cidadão poderá acessar o conteúdo do processo, algo que hoje ainda precisa ser requerido por canais formais. A ideia é a de que o processo seja trabalhado fase a fase para resguardar o seu sigilo, mas que uma vez julgado, isso possa ser disponibilizado para a sociedade.
Outro aspecto importante é que o novo procedimento, que já vem rodando desde o início do ano, já está adequado à lei de abuso de autoridades, que diz que instaurar processo sem uma justa causa, é considerado abuso, excluindo em casos de investigação.
Preservando a independência
Embora tenha a função de investigar e acusar, o Corregedor Geral acredita que o ideal é que todos os processos instaurados pela sua área caminhem para um acordo de leniência, o que demonstraria a disposição da empresa de corrigir os problemas e evoluir. Apesar disso e embora versem sobre a aplicação de uma mesma legislação, as ações da Diretoria de Acordos de Leniência e as da Diretoria de Responsabilização de Pessoas Jurídicas operam de forma completamente autônoma, até para não contaminar os elementos do processo. No momento em que essa reportagem está sendo escrita, a página da Corregedoria apresenta 62 processos em andamento. “Caso uma dessas empresas protocole um pedido de leniência, a Corregedoria é avisada de que existe uma negociação e avoca o processo, mesmo sem ter nenhuma informação sobre o que está sendo feito, conta Waller Junior. Dessa forma, evita-se que a empresa tenha qualquer processo de eliminação de prova; ou que informações passadas pela empresa para a leniência sejam repassadas à corregedoria, num eventual não acordo. Além disso, a corregedoria nunca sugere à empresa que faça a leniência. “Embora o nosso desejo seja pela leniência, que na nossa visão é muito melhor para todos, isso é uma estratégia da defesa, que pode entender que é melhor a empresa ser penalizada naquele caso”, conclui o chefe da Corregedoria.
Publicado originalmente na revista LEC nº27, “Para ser mais ágil”.
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