Beautiful game, “joga bonito”, “futebol-arte”, “a alegria do povo”… Os adjetivos usados para descrever o encantamento promovido por um jogo de futebol ao longo de mais de um século são inúmeros e representam uma pequena mostra do poder cultural do esporte e da sua capacidade de tocar as pessoas num nível mais elevado: o da emoção. Não se trata de um privilégio do futebol. Para os praticantes e admiradores de outros esportes, os mesmos adjetivos certamente poderiam ser muito bem empregados. Mas não existe um único esporte no planeta, além do futebol, que consiga somar o alcance global e o acesso à pessoas de praticamente todas as classes sociais em todo o mundo. Das elites europeias às populações mais pobres da África, o jogo emociona como poucos eventos o são capazes de fazer.
Detentor de tamanha capacidade de mobilização, o futebol já demonstrou ter poder de parar guerras e unir povos, mesmo que momentaneamente. Por isso, não faz sentido deixar de envolver o poder transformador do esporte em causas que demandam da sociedade um olhar mais atento, ou mesmo, urgente, inclusive do próprio esporte. Ao mesmo tempo em que a beleza de um jogo de futebol tem essa capacidade de nos emocionar, o ambiente do futebol, particularmente nos estádios, também consegue trazer à tona o pior do ser humano, os seus piores instintos, olhando para o outro lado e enxergando apenas um inimigo a ser xingado, humilhado, agredido, desumanizado.
Nessa dialética de emoções, é preciso agir para que o potencial do jogo possa ser utilizado para uma transformação positiva. É preciso que o futebol seja, a um só tempo, alvo e agente de uma transformação cultural que permita, por meio do esporte, elevar o padrão de ética e integridade no convívio nas relações, ainda que com competidores concorrendo duramente entre si. Até porque nenhuma pessoa que entra com algum grau de seriedade em uma disputa esportiva, o faz com a intenção de perder. A ideia é sempre buscar a vitória (que não será alcançada em todas as ocasiões), mas existem os meios adequados para se travar o “bom combate”, e eles não envolvem preconceitos, ofensas, trapaças e violência.
Se o leitor chegou até aqui, muito provavelmente já se deu conta que tudo o que foi dito acima sobre o futebol conversa muito com o ambiente de integridade nas empresas. Existem regras que devem ser seguidas por todos e existem limites para o que pode e não pode ser feito no mundo dos negócios. Assim como se pode travar o “bom combate” no esporte, também se pode fazê-lo nos negócios, sem que para isso seja necessário aliviar para qualquer concorrente que seja. E, um jogo de futebol – que já é muito bem utilizado por alguns profissionais para explicar, por exemplo, como funcionam as três linhas de defesa de uma empresa -; foi utilizado para ilustrar como seria o cenário de um ambiente de negócios no qual as regras, a integridade, a ética e a transparência dos profissionais envolvidos estivesse tão internalizada que a presença do profissional de Compliance seria desnecessária.
De alguma forma, cenas desse horizonte foram vistas por um distinto público no último dia 04 de setembro, no estádio do Morumbi, no Jogo pela Integridade, uma iniciativa da área de Compliance do São Paulo Futebol Clube e da SIGA, entidade da sociedade civil que atua na difusão da integridade e da transparência no ambiente esportivo, além de gerenciar o rating de integridade de entidades esportivas SIRVS. A partida coroou o encerramento do SIGA Sport Integrity Forum, realizado no auditório do estádio e que trouxe uma agenda de temas muito relevantes para o avanço da integridade, da ética e da transparência no ambiente do esporte, particularmente no Futebol. “A programação do evento estava muito alinhada com o nosso propósito também. O esporte transforma vidas e acho muito importante a gente discutir tanto a questão da integridade quanto a questão da igualdade de gênero, do racismo, do respeito às diferenças no âmbito do esporte e de como isso reflete na sociedade. É um evento que teve relevância muito importante a nível global, resultando na assinatura do Brasil de um compromisso com a integridade no esporte”, disse Daniela Provazi, sócia-diretora da LEC.
Durante o evento, a então ministra do Esporte, Ana Moser, assinou um memorando de entendimento com a SIGA, no qual ficaram definidas as preocupações comuns, as áreas de cooperação e as prioridades do Brasil e da entidade em relação a essa agenda. “O esporte é amplo e acessível, mas só é assim a partir do momento em que é íntegro e imprevisível. Não podemos perder estes valores, senão não há mais esporte. Precisamos salvar a natureza do esporte, e isso passa pelos mecanismos de integridade”, disse Ana Moser. (A ministra acabou demitida do governo no dia seguinte, para ter o seu cargo oferecido ao deputado federal André Fufuca). “O esporte é um valor e um setor merecedor de respeito e consideração de todos, mas para isso precisa liderar pelo exemplo. Se não agirmos agora, então quando? Se não formos nós, quem será?”, disse o português Emanuel Macedo de Medeiros, CEO da SIGA. O evento teve repercussão internacional e cobertura de diferentes veículos da Rede Globo. No dia seguinte ao fórum, o deputado federal Bandeira de Mello, ex-presidente do Flamengo, recebeu o CEO da SIGA em audiência pública no âmbito da Frente Parlamentar da Modernização do Futebol para formalizar um acordo de cooperação com a SIGA América Latina que compreende a elaboração de um estudo sobre ligas, boas práticas e governança no futebol.
Patrocinadora do congresso e do jogo, tendo o seu logo estampado na camiseta dos dois times, a LEC está na gêneses desse processo, que começou em 2018 quando o atual diretor Jurídico e de Compliance do São Paulo, Roberto Armelin, junto com o co-fundador da LEC, Daniel Sibille, e o advogado especializado na área de Compliance, Rodrigo Bertoccelli, tivera a ideia de realizar o Jogo pela Ética no estádio tricolor. “Foi uma iniciativa super legal e simbólica, mas eu achava que só fazer um jogo não seria o suficiente”, lembra Armelin. A sócia-diretora da LEC conta que na época do primeiro Jogo pela Ética, o tema do Compliance no esporte ainda era muito novo. Agora a situação mudou drasticamente. “Com a aprovação da Lei Geral do Esporte, especialmente em relação ao mercado de apostas, mas também por conta dos incontáveis escândalos de racismo que vem se avolumando nos estádios e da necessidade de trazer para o esporte a pauta da diversidade e da inclusão de gênero, decidimos estar juntos novamente apoiando e patrocinando o evento, porque tem muita relação com tudo o que acreditamos”, diz Daniela.
De volta aos gramados
Se não foi algo que teve uma continuidade imediata, o jogo de 2018 plantou uma semente. Ele foi parte da programação de um fórum sobre integridade no esporte, também no auditório do estádio, que foi organizado por Armelin e que teve a presença do então conselheiro do clube, Julio Casares, que uma vez eleito para presidir o São Paulo, em 2021, convidou Armelin para ser o seu diretor de Compliance, dando origem a montagem do programa Integridade Tricolor. E um dos pilares desse programa seria a volta do Jogo pela Ética repaginado.
Passados pouco mais de cinco anos, e com o programa de Compliance do clube já de pé, era a hora de fazer a bola rolar no gramado novamente, e com um jogo que traria para o certame não só a questão da ética, mas outros valores fundamentais e que hoje são pontos críticos para a sociedade, para as áreas de Compliance e que são endereçados pelo programa Integridade Tricolor com bastante ênfase, como o foco no respeito aos direitos humanos, o letramento da comunidade em relação à violência contra às mulheres e ao preconceito. “Pela natureza e potencial do esporte de tocar valores humanos e pela ambição do nosso programa, buscamos mais do que gerar uma mudança na cultura interna. Estabelecemos algo com capacidade de ir além, para ajudar a mudar a cultura externa, a sociedade mesmo”, argumenta o diretor de Compliance tricolor. A base potencial para isso é enorme pelo potencial da torcida São Paulina, o que de acordo com Armelin, pode impactar 20 milhões de stakeholders. Esse trabalho de levar a agenda interna de integridade do clube para a sua torcida ainda está em fase de encontrar o melhor modelo para fazê-lo. Mas algumas iniciativas já foram feitas. No ano passado, todo o conteúdo da Semana de Integridade Tricolor foi disponibilizado no site do time, o SPFC PLAY. “O elemento essencial para o Compliance é a mudança de cultura interna e não tem nada com mais potencial para fazer isso do que o esporte, que não pode se omitir da responsabilidade de exercer esse papel social, em especial no que diz respeito a agenda de direitos humanos, diversidade e ao combate ao racismo de forma proativa, não só apoiando com faixas”, reforça Armelin.
E isso tudo esteve presente de forma simbólica no Jogo pela Integridade, a começar pelo nome dado às duas equipes: enquanto um time jogava sob o uniforme da Luta contra o Racismo, o outro defendia a Equidade de Gênero. Mas não só. Os times na contenda eram mistos, reunindo ex-atletas profissionais, como o ex-zagueiro São Paulino, Ronaldão, uma “porta” de 1,9 metros até mulheres de menor estatura que atuam na área de Compliance e que, em tese, não seriam páreo para uma disputa física por uma natural diferença de porte. Mas é aí é que entra a essência do Jogo pela Integridade: o jogo pode ser disputado, duro – tanto que as contusões estiveram em campo -, mas se for jogado dentro das regras, sem faltas para “parar o adversário a qualquer custo” e com o respeito entre os competidores, todos podem ter o espaço para mostrar o seu talento e brilhar. Tanto que as mulheres foram protagonistas do jogo, marcando dois gols. Mais do que a simbologia, a presença de times mistos representa uma oportunidade para que as futuras gerações vejam a questão da equidade de gênero se materializar em um jogo do qual elas gostam e no qual conseguem se enxergar.
Outra simbologia do jogo foi a ausência do árbitro. E aqui, o paralelo com o papel do Compliance Officer é inevitável. “Jogar sem árbitro, foi uma experiência super interessante”, conta Daniela, que participou do jogo. “Tava impedido, não foi gol, foi fora, as pessoas levantavam a mão, demonstrando que isso é possível”, mas como lembra a própria Daniela, tratava-se de um ambiente muito limitado e controlado. Além disso, os bandeirinhas estavam nas laterais do campo e existiu um 4º árbitro acompanhando tudo do lado de fora das quatro linhas. “É claro que é uma analogia. Assim como você não tem como ter uma partida profissional disputada sem um árbitro, por tudo o que está em jogo, não dá para uma empresa operar sem o profissional de Compliance. Mas, também podemos enxergar aí o espaço para uma evolução futura: de que há condição para que as discussões mais básicas, muitos problemas do dia a dia corporativo que hoje, de alguma forma, demandam uma arbitragem do Compliance, possam vir a serem resolvidas diretamente pelos profissionais, com base nas regras já dispostas e no respeito, deixando para o Compliance os temas que realmente estão numa zona cinzenta e que demanda um olhar mais específico para os riscos”, reforça Daniela Provazi. “O esporte pode ter um papel importante nisso, porque ele tem o poder de mudar as pessoas uma vez que ela consegue acessar as pessoas num outro patamar, em um nível emocional, de tornar possível fazer com que as pessoas alcancem um estado de consciência diferente, para respeitar mais as pessoas, sejam elas iguais ou diferentes, de um time ou do outro. O esporte pode tornar isso possível. Imagine se todos os clubes de futebol do Brasil engajassem seus torcedores nesta agenda, que impacto gigantesco nós teríamos na sociedade”, conclui Armelin.