Trabalhar com integridade é uma das premissas básicas no mundo corporativo moderno, principalmente em empresas que buscam seguir padrões internacionais das melhores práticas em governança e integridade corporativa. Entretanto, a pandemia do Covid-19 trouxe para o mundo um período de “exceção”, com flexibilização de regras, leis e normas aplicáveis aos negócios.
COMO PERPETUAR A SAÚDE FINANCEIRA DA EMPRESA EM PERÍODO DE CRISE E MANTER AS BOAS PRÁTICAS DE COMPLIANCE?
De fato, o empresário deve repensar todas as prioridades da empresa em um momento inédito como este. Os pontos primordiais são a sobrevivência da empresa e a manutenção dos empregos. Uma ação pertinente é a participação da área de Compliance em Comitês de Crise, para que toda ação neste período de exceção esteja alinhada com os pilares do seu Programa de Compliance e para que sejam tomadas decisões éticas mesmo em situações de risco de continuidade. A área de Compliance, por sua vez deverá reavaliar sua matriz de riscos, para estar aparelhada a acompanhar as decisões a serem tomadas e adequar novos controles que se façam necessários, como nos casos de doações, patrocínios e contratações emergências com o Poder Público, sejam elas diretas ou por intermediadores.
Grandes empresas estão efetuando doações (em dinheiro ou produtos/insumos) diariamente para o Poder Público e o monitoramento pela área de Compliance é de grande importância para que haja a formalização e contabilização correta por trás das doações. Importante formalizar qual a finalidade da doação, qual a destinação, qual é a previsão legal, se haverá contrapartida, se existe um sobrepreço, se a comunicação ocorreu de forma adequada (presencial, por ofício, por e-mail ou por telefone). Um ponto fundamental é a checagem se existe potencial conflito de interesses, especialmente para empresas privadas que contratam com o Poder Público como cliente no “business as usual”. Fundamental ter todo o racional da doação devidamente documentado. Estes registros podem ajudar no futuro em uma potencial investigação e até mesmo acordo de leniência com as autoridades competentes.
Nesse contexto de crise do Covid-19, a apuração de possíveis infrações é de grande relevância em um período que a empresa e seus colaboradores estão passando por tantas adaptações, sejam legislativas, de recursos humanos, comerciais etc. Estamos vivendo em um período de muitas pressões dentro e fora do mundo corporativo, e os colaboradores podem se tornar mais predispostos ao cometimento de infrações dentro da empresa vez que podem ter a falsa ideia de que determinadas diretrizes e normas da empresa estão “suspensas” temporariamente.
As infrações e denúncias nos canais internos continuam em andamento, e as apurações não devem parar, mas as perguntas que o profissional de Compliance se depara com os casos em meio à pandemia são:
1) QUANDO ABRIR A INVESTIGAÇÃO? 2) COMO CONDUZIR A INVESTIGAÇÃO?
Para os profissionais de Compliance que lidam diretamente com o tratamento de denúncias e eventual apuração através de investigações internas, é natural a fazer triagem dos casos, que podem ser classificados de baixa, média ou alta complexidade (em determinadas empresas pode até haver uma política específica de investigações internas). No momento atual de pandemia, apesar de existir uma redução de investimentos em diversas áreas da empresa, especialmente aquelas que não são vistas como áreas de negócio, é recomendável que as investigações de alta complexidade sejam priorizadas, considerando que na maioria das vezes são casos que envolvem riscos de corrupção, risco de imagem, grandes fraudes e infrações concorrenciais.
Além de doações, a pandemia do Covid-19 trouxe consigo uma necessidade do Poder Público em acelerar determinados processos de contratação de bens e serviços para poder atender as demandas de saúde pública. Deste modo, as contratações públicas emergenciais se tornaram uma oportunidade comercial, mas um grande risco de Compliance para empresas privadas. Em um contexto de uma contratação emergencial, pode não haver tempo adequado para conduzir todas as diligências prévias (due diligences) necessárias no momento de se relacionar com o Poder Público.
A ONG Transparência Internacional no Brasil tem atualizado mensalmente rankings de transparência nas contratações emergenciais no enfrentamento da pandemia, classificando os Estados através de pontuações que oscilam entre 0 e 100, em que os mais transparentes se aproximam da nota máxima. Consequentemente, os Estados estão procurando se adequar, principalmente para deixar as informações com gastos emergenciais mais acessíveis para a população. Também é perceptível o engajamento da sociedade civil e imprensa no monitoramento da gestão pública, e a tendência é que os órgãos de controle passem a analisar tais informações de maneira mais aprofundada.
ESCRUTÍNIO DAS AUTORIDADES PÚBLICAS
Atualmente os órgãos de controle, como Tribunal de Contas da União – TCU e ministérios públicos estaduais e federais, possuem uma atuação limitada devido ao grande número de informações em meio à pandemia, Contudo, o escrutínio de tais autoridades deve crescer em um futuro pós-pandemia, e é esperado que grandes casos de corrupção e fraude devam ser relacionados com contratações públicas emergenciais na pandemia do Covid-19. Vale destacar que desde Maio de 2020, a Polícia Federal já deflagrou nove operações para apurar crimes e desvios na área de saúde tanto a nível estadual quanto municipal, como a Operação Vírus Infecto no Amapá, Operação Sangria no Amazonas e Operação Antídoto em Recife. Paralelamente, a Procuradoria-Geral da República atualmente investiga a gestão de oito governadores por suspeitas de irregularidades em contratos na área da saúde firmados durante a pandemia do Covid-19.
DUE DILIGENCE DE COMPLIANCE
Diante desse cenário, as empresas devem assegurar que toda devida diligência seja salvaguardada pela área de Compliance, com especial atenção para terceiros que são intermediadores com o Poder Público. A recomendação é pela confecção de uma Enhanced Due Diligence (devida diligência mais robusta) de Compliance deste terceiro, com entrevista dos gestores e posterior treinamento de Compliance, que podem ocorrer perfeitamente de maneira remota.
COLETA E PROCESSAMENTO DE DADOS
Conforme apontado, os riscos de Compliance nas contratações e doações realizadas neste período podem levar a denúncias e dar início ao processo de investigação interna. Como ponto inicial, uma investigação com revisão de documentos eletrônicos é um procedimento rotineiro executado por empresas e escritórios de advocacia especializados, ou até mesmo internamente pela área de Compliance e Investigações da empresa. As coletas de dados e dispositivos móveis continua ocorrendo, agora de maneira remota, com posterior processamento de dados e disponibilização em sistemas para a equipe de revisão, sempre assegurando a confidencialidade e sigilo das informações que estão sendo disponibilizadas remotamente.
ENTREVISTAS DE COMPLIANCE
As entrevistas da mesma forma continuam ocorrendo remotamente, de preferência com utilização de aplicativos com vídeo. A introdução nas entrevistas remotas se torna ainda mais importante, para que seja reforçado não somente o Upjohn Warning (quando um advogado interno ou externo informa o entrevistado que representa apenas a empresa e não o funcionário individualmente), como a sensibilidade das informações que serão discutidas na entrevista, sempre reforçando a confidencialidade e sigilo das informações.
Além disso, é aconselhável solicitar no começo da entrevista que o entrevistado ligue a câmera, para que seja possível identificar o mínimo de body language (linguagem corporal) no entrevistado, especialmente entrevistas de confrontação (quando são custodiantes da investigação, possivelmente envolvidos na autoria da infração, com confrontação de evidências e e-mails).
Grandes desafios são enfrentados atualmente pela área de Compliance, principalmente sobre como se manter presente na vida dos colaboradores trabalhando remotamente. As investigações internas devem continuar ocorrendo em decorrência dos relatos apresentados nos canais de denúncias, para garantir sua credibilidade frente aos colaboradores e para reforçar que a área de Compliance está atuante e atenta no combate de condutas impróprias mesmo em tempos de pandemia.
Este artigo foi escrito por:
Wilson De Faria é sócio sênior da WFaria Advogados. Formado em Direito pela USP, em Administração de Empresas pela FGV-SP, com pós graduação no CEU – São Paulo, INSEAD- França (MBA) e Harvard Business School – USA (OPM).
Hítalo Silva é advogado sênior da WFaria Advogados. Formado em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e Mestre em Direito Norte-Americano (LL.M.) com ênfase em International Business Transactions pela University of Missouri-Kansas City (UMKC) School of Law. Hítalo também tem especialização em sistemas jurídicos contemporâneos pela Universidad Complutense de Madrid – UCM.
Imagem: Freepik