Fundamentalmente, um programa de compliance eficiente se baseia nas ações de prevenir, detectar e responder. A partir desse trinômio, surgem os já consagrados 10 pilares, dentre os quais podemos destacar a existência de um canal de denúncia. Cada um dos pilares vai atender a uma das ações necessárias para efetividade do programa. Podemos dizer que o canal de denúncias atende a, pelo menos, duas dessas ações: detectar e prevenir.
O canal de denúncias não é, por si, eficaz. Sua real eficácia advém a partir de uma estrutura básica constituída por um programa de integridade, por um escopo definido para o canal, além de políticas e processos de Compliance relativos à apuração de denúncias e irregularidades. Todos esses elementos estruturais constituem o chamado Sistema de Gestão de Denúncias (SGD). O propósito do SGD é permitir a realização de denúncias por meio de canais organizados para garantir que os relatos sejam prontamente apurados e submetidos às pessoas com autoridade e competência para tomar as medidas cabíveis.
Ao estabelecer um SGD, algumas cautelas se fazem necessárias: (i) avaliar se o ambiente cultural, o modelo organizacional e a governança ainda favorecem a manutenção do Canal de Denúncias; (ii) assegurar que o sistema se adeque às leis e regulamentos aplicáveis, especialmente leis trabalhistas e LGPD; (iii) avaliar se o canal e os processos de apuração estão assegurando, de fato, a confidencialidade da identidade das pessoas envolvidas e demais informações sensíveis relatadas no canal; e (iv) firmar posicionamentos fundamentais: haverá incentivo aos denunciantes? E quem não denunciar desvio de conduta de que tenha conhecimento? A comunicação será centralizada ou descentralizada? Será permitida denúncia anônima? Haverá acesso de terceiros ao canal?
O canal deve estar preparado para receber e lidar com relatos de irregularidades efetivas ou potenciais, existentes ou potencialmente suspeitas. Trata-se, pois, do seu escopo. As irregularidades que fazem sentido ser objeto do canal são a ação, a omissão ou a ocultação de ação ou omissão relativos a violações a leis nacionais e internacionais ou a desvios de condutas que possam resultar em dano à empresa.
Uma vez implementado e parametrizado o canal de denúncias, é fundamental que a empresa avalie se suas expectativas quanto ao SGD estão sendo atingidas. Nesse sentido, a título de exemplo, é preciso verificar se o canal tem permitido a classificação correta de assuntos para o devido endereçamento dos relatos. A coleta prévia de informações do denunciante deve obter informações completas que permitam obter o máximo de dados para a triagem e início da investigação, a evitar investigações infundadas ou o encerramento prematuro de investigações. Não raras vezes, denúncias impertinentes serão recebidas no canal, a requerer o pronto endereçamento aos departamentos encarregados e alerta aos usuários. A empresa ainda precisa se certificar se os gestores do canal estão sendo qualificados com treinamento necessários à manutenção do canal e se o compliance tem tido alcance para atender a todas as filiais de onde surgirem os relatos.
No mesmo contexto, deve-se garantir especial destaque e preocupação ao sigilo do canal e à proteção quanto à não retaliação do denunciante. São garantias que fundamentam a confiabilidade dos colaboradores e terceiros no canal e, portanto, servem de mola propulsora e incentivo ao uso do canal para o registro de relatos de violações legais ou desvios de conduta. Portanto, os relatos recebidos no canal de denúncia e todos os atos subsequentes, inclusive durante a investigação, devem ser sigilosos para garantir a confiabilidade do canal e a proteção das pessoas envolvidas. Medidas simples, mas preciosas podem ser adotadas para garantir o sigilo dos relatos: rever periodicamente os acessos do canal e os poderes desses usuários, estabelecer termo de confidencialidade às pessoas que tomarão contato com os relatos, criar domínios próprios (diferentes do domínio da empresa e sem acesso pelo TI) para e-mails confidenciais trocados pelos membros do departamento de compliance, exigir termo de confidencialidade dos parceiros forenses e ficar atento às faturas de prestadores de serviços, em razão das descrições dos serviços, que podem ser acessadas pelo financeiro.
Semelhantemente, o sucesso do canal de denúncias dependerá da garantia que a empresa dará aos colaboradores de que não sofrerão retaliação em razão do uso do canal. Algumas medidas poderão evitar a retaliação: previsão expressa de proteção à não retaliação no Código de Conduta e políticas da empresa, o Compliance ser consultado antes de qualquer demissão da empresa, qualquer pessoa que for entrevistada em uma investigação ser informada sobre a proteção à não retaliação para denúncias de boa-fé e que deve avisar ao compliance caso alguma situação anormal aconteça e comunicação ostensiva de tolerância zero às práticas de retaliação, com tomadas de medidas cabíveis contra os infratores.
Por fim, as boas práticas apontam a necessidade de designação de um gestor do Canal de Denúncias que possa desempenhar a função com imparcialidade, reputação, competência e experiência. O gestor do canal de denúncias deve ter plena autonomia e se portar ao mais alto escalão dentro da empresa. Adicionalmente, é fundamental que haja um órgão ou pessoa encarregada para acompanhamento dos trabalhos do gestor do canal e deliberações necessárias, preferencialmente de cargos de diretoria. A criação de um Comitê de Ética, com a participação de membros da diretoria, conselho de administração, jurídico, compliance e/ou RH é a forma mais usual.
Estabelecer um canal de denúncias eficiente e um Sistema de Gestão de Denúncias estruturado é um processo que exige dedicação e investimento. Mas tê-los e mantê-los ativos e vivos é o grande diferencial dos programas de compliance de onde nascem frutos significativamente mais valiosos e duradouros. Com uma boa consultoria, formada por profissionais gabaritados, que possam estabelecer um plano de ação que se ajuste às necessidades e porte da empresa, essa missão se tornará mais palpável no curto prazo e administrável no longo prazo.
Filipe Henrique Vergniano Magliarelli, Advogado, sócio das áreas de Compliance & Investigações e Penal Empresarial do KLA Advogados, mestre em Direito Processual Penal pela USP e Especialista em Crimes Econômicos pela Universidade de Coimbra, professor nos cursos da LEC, no MBA da FIA e na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor de diversos livros e artigos acadêmicos.
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