O precatório é um crédito legítimo e entra na expectativa de receita de uma companhia. Mas o seu uso de forma indiscriminada não é um consenso. Tanto que no último dia 15 de março, a Advocacia-Geral da União (AGU) revogou Portaria Normativa nº 73/2022, publicada no dia 15 de dezembro do ano passado e que regulamentava os procedimentos que deveriam ser observados para a utilização de precatórios em pagamentos para órgãos e entidades públicas federais. No período em que o acordo da BRF foi celebrado, a portaria ainda estava em vigor.
No mesmo ato, a AGU constituiu um grupo de trabalho responsável por elaborar uma nova portaria em um prazo de 120 dias. Segundo o órgão do governo, o objetivo da revisão é conferir mais segurança jurídica e transparência ao procedimento. Essa espécie de parada para “arrumação na casa”, está muito mais relacionada com a demanda de algumas empresas de usar os precatórios para pagar outorgas de concessões, caso da Rumo, empresa de logística controlada pela Cosan, que não teve autorizado pela ANTT (reguladora da área de transportes terrestres) o uso de precatórios para o pagamento de concessões. Mais emblemático ainda é o caso envolvendo o pagamento da outorga referente ao leilão do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, pela operadora espanhola Aena. A companhia quer fazer o equivalente a R$ 1,6 bilhão do pagamento inicial da outorga de R$ 2,45 bilhões por meio de precatórios. O uso desses títulos para pagamento de outorga está previsto na Constituição de forma “autoaplicável”, mas com a revogação da portaria pela AGU acabou com o que havia de regulamentação, é como se essa disposição tivesse se tornado inócua. Na prática, existem dois grandes pontos de discussão. O primeiro, como lembra Sancovski, é que se de um lado o uso dos precatórios nos diferentes tipos de acordos reduz a litigiosidade, por outro também reduz a arrecadação do governo. O segundo ponto, não menos importante, é que os precatórios podem ser comprados no mercado por um valor inferior ao seu valor de face, que é o que é considerado num acordo com o governo. O lance de R$ 1 bilhão em um leilão de concessão pública, quando paga por precatórios adquiridos no mercado, pode acabar saindo por um valor muito inferior, o que seria um problema sério do ponto de vista concorrencial. Já no caso do pagamento de multas, ao menos na visão de Marcelo Pontes Vianna, como o precatório tem valor real e entra na expectativa da receita da empresa, usá-los no pagamento de um acordo de leniência não diminui o peso da sanção.
O comunicado da AGU deixa claro que o uso dos precatórios para o pagamento de dívidas tributárias segue valendo, uma vez que essa norma é regulamentada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Já para outros usos, a recomendação da AGU é a de que os órgãos suspendam o aceite de precatórios, embora deixe claro que a decisão cabe a cada órgão. Como os acordos de leniência têm sido fechados, conjuntamente, pela CGU e pela AGU, é pouco provável que a controladoria vá contra a recomendação. Questionada também sobre se o uso dos precatórios para pagamento de multas (como as da leniência) é regulado pela portaria revogada, ou se enquadra na portaria da PGFN; e se a revogação da portaria pode afetar acordos já firmados, mas com parcelas do pagamento do acordo a vencer, a AGU disse que “essas e outras questões dependerão da regulamentação que ainda será feita”. As audiências públicas para discutir a elaboração da nova portaria que vai regulamentar os procedimentos a serem observados para a utilização de precatórios em pagamentos para órgãos e entidades públicas federais devem começar em abril.
Ainda não se sabe exatamente o que virá dessa nova regulamentação, mas o esperado é que se estabeleçam limites sobre em quais situações os precatórios poderão ser utilizados e, nas situações nas quais o seu uso for permitido, parâmetros mais claros sobre como eles podem ser usados. No caso da BRF, como observa Gabriela Arcentales, advogada de Compliance do Machado, Meyer, foi permitido o uso de precatórios detidos pela empresa. “A regulamentação pode vir a estabelecer que os precatórios utilizados nos acordos devem ser aqueles detidos por ela até a data do ato lesivo, ou mesmo que só serão aceitos precatórios que tem a própria empresa como credora”, acredita Gabriela. Até antes da revogação da portaria, não existia nenhuma vedação expressa para o uso de precatórios comprados no mercado financeiro, cabendo a cada órgão determinar os critérios para aceitação dos títulos à sua leitura da constituição. “Por enquanto é possível propor, até porque esse mercado de precatórios existe há muitos anos. Seria um jeito de conseguir um belo desconto na multa. Acho que é uma possibilidade e a não ser que seja expressamente proibida, alguma empresa poderá fazer esse pedido. E da mesma forma que ela pode pedir, a CGU pode negar. Mas, caso esse tipo de operação venha a ser aceito após a regulamentação, poderia se propor uma poupança de precatórios para uso no pagamento de acordos e multas com o governo”, acredita a advogada.
Se é possível, porque as empresas não têm proposto?
Hoje a CGU mantém cerca de 150 casos no pipeline de investigações na etapa preliminar, que envolve a análise de operações com o MPF, de denúncias, além dos próprios casos prospectados pela própria CGU, por meio das suas ferramentas de inteligência capazes de detectar casos de irregularidades suspeitas em licitação, que podem ou não dar origem a um caso.
Segundo Pontes Vianna, desde 2019, quando foram criadas áreas específicas para abarcar uma maior demanda, o quantitativo de investigações tem aumentado. “Há uma expectativa de que teremos um número maior de processos e podemos imaginar um número maior de acordos firmados”, diz o secretário, lembrando que além da leniência, o mais recente decreto da Lei 12.846 institui a ferramenta do julgamento antecipado, um meio de resolução judicial para casos mais pontuais, nos quais as empresas não tem como trazer mais informações do que os órgãos do Estado já dispõe e que não vale investir em investigar mais. O secretário de Integridade Privada conta que a adesão a esse novo dispositivo – por meio do qual as empresas admitem a responsabilidade objetiva, têm reduções pontuais da multa e não sofrem a publicação extraordinária -, tem sido bem razoável. “A experiência que temos na CGU até hoje é bastante positiva, com vontade de chegar a um acordo”, acredita a sócia do Machado, Meyer. Daí que ela não vê insegurança em propor ao órgão métodos alternativos. “A ideia de compensar crédito fiscal é inovadora. A lei não especifica um rol fechado de alternativas, você só pode pagar assim ou assado. E, além disso, o não a gente já tem”, brinca
A CGU tem reforçado sua posição de que os meios consensuais podem atingir nosso objetivo de forma mais rápida e dar a empresa uma sanção mais proporcional, reduzida em comparação a quem opta pelo litígio e não ajuda com as investigações. “Queremos colaborar para que as empresas saiam melhores do que quando entraram no processo e que os órgãos respondam e garantam o que foi acertado no acordo”, diz Pontes Vianna. “O Brasil, principalmente na última década, migrou de um modelo mais litigioso para outro, mais consensual e de acordos. Todas as partes perceberam que mais vale um mau acordo do que uma boa briga”, brinca Juliana, do Machado, Meyer. Daí a importância de que o uso dessas novas possibilidades de pagamento dos acordos de leniência sejam claras para todos os envolvidos. Além da questão dos precatórios, sob análise do grupo de trabalho montado pela AGU pelo menos até julho, a própria possibilidade de fazer uso dos créditos decorrentes de prejuízo fiscal ainda não está clara, como admite o secretário da CGU.
A soma da novidade que esses instrumentos representam, com o desconhecimento e a insegurança que qualquer novo advento à lei representa, ajuda a explicar o fato de que, segundo o secretário, poucas empresas procuraram a pasta propondo o uso desses métodos alternativos, ainda que tenham sido realizados alguns exercícios a pedido de empresas em alguns casos. “Meu sentimento é de que ainda não pareceu ser algo significativo em termos de mudança. Não é um banho de água fria, mas (o uso desses instrumentos) tem que ser algo factível, até porque é um direito da empresa. Nesse caso, somos apenas o tesoureiro, se a empresa trouxer os documentos, os precatórios, os créditos de exportação, estando validados pelos respectivos órgãos emissores, ok”, reforça Marcos Pontes Vianna.
O sócio do Tauil & Chequer diz que apesar de as possibilidades alternativas de pagamento estarem previstas, será preciso ver se a administração pública vai topar seguir assim. Sancovsky acredita que antes de propor métodos alternativos, seria importante que se tenha um direcionamento, um programa mais estruturado ao invés de fazer cada análise caso a caso. “No cenário que temos hoje, 22 de março (quando a entrevista foi realizada), a não ser que todas as potenciais autoridades estejam na mesa e com o acordo costurado com todos eles. Ou da perspectiva de segurança jurídica, não se sabe se o acordo firmado com um ente vai ser anulado por outro – vem uma autoridade e diz que ficou de fora e quer te processar”, afirma o advogado. Sancovski acredita inclusive que se do Grupo de Trabalho sair algum programa que permita o uso dos precatórios nos acordos, sem dúvida será um incentivo, inclusive para autodenúncia, desde que fique mais claro que os acordos estarão balizados pela capacidade de pagamento das empresas.