O compliance concorrencial ganha espaço na medida em que a atuação dos reguladores que atuam com o tema é mais forte e assertiva do que nunca.
Quando alguém fala em compliance, naturalmente o termo é relacionado à ética, transparência, combate à corrupção. Aqui no Brasil, a relação com este último tema é praticamente automática, reflexo dos incontáveis casos negativos envolvendo as relações entre o público e o privado. É bem verdade que a notoriedade alcançada pelo mercado de compliance no Brasil deve-se exatamente a esse problema, que não é exclusividade nossa, mas ganha contornos mais dramáticos por aqui.
Posto isso, é salutar lembrar que, na verdade, o compliance tem muito mais ver em sua origem com outro aspecto: a defesa de um ambiente de negócios equânime, que favoreça a competição entre as empresas, que devem contar apenas com as suas competências para vencer dentro das regras estabelecidas para a contenda. Trata-se de algo igualmente nobre – embora menos midiático – e que tem na corrupção um inimigo capaz de desequilibrar o jogo. Em resumo, a necessidade do compliance foi gerada, antes de tudo, para garantir a lisura dos mercados e a livre concorrência. Por isso, é interessante ver que na evolução da área nos últimos anos, um braço que vem ganhando mais destaque a cada dia é o que se convencionou a chamar de compliance concorrencial.
Trata-se de um assunto relativamente novo para boa parte dos compliance officers (muitos deles ainda com pouco tempo de vivência na área), mais afeitos às questões ligadas a fraudes e corrupção – ou a prevenção de lavagem de dinheiro, no caso dos profissionais de instituição financeira. Só que, na verdade, essa é uma prática que vem se desenvolvendo a bem mais tempo do que o próprio compliance anticorrupção. O advogado Carlos Francisco de Magalhães, do escritório Magalhães Dias, especializado em Direito concorrencial, escreveu um manual de compliance para executivos com foco na legislação de proteção a concorrência ainda nos anos 1970.
Uma movimentação mais forte em termos de prevenção das empresas contra delitos concorrenciais, entretanto, ganhou tração a partir de 2012, com a entrada em vigor da Lei 12.529/2011, que estabeleceu um novo regramento para a defesa da concorrência no Brasil. Com a nova lei, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia responsável pela defesa da concorrência no Brasil, ganhou mais agilidade para lidar com questões relacionadas à análise de fusões e aquisições de empresa, permitindo que o plenário do órgão tivesse mais espaço e condições para julgar casos relevantes contra a livre concorrência, especialmente os de cartel, que passaram de menos de 20% dos casos julgados em 2013, para mais 55% no período entre 2014 e 2016. Também a partir de 2012, vieram à tona uma série de casos envolvendo cartéis internacionais, que acabaram alcançando o Brasil, colocando ainda mais pressão sobre as empresas.
José Del Chiaro, advogado que dá nome a um dos escritórios mais tradicionais no campo do Direito da concorrência, reconhece que a procura das empresas pelo assunto tem crescido. “Temos feito muitos treinamentos de compliance concorrencial. É cada vez maior a demanda por esse tipo de informação e serviço, com as empresas bem mais preocupadas com o tema”, diz o advogado. Trata-se de uma realidade cada vez mais presente no dia a dia das empresas, e não apenas as de grande porte, que já davam atenção ao assunto há mais tempo. “Hoje, é difícil encontrar uma empresa grande ou média que não tenha uma política de compliance concorrencial”, reforça o advogado.
O compliance concorrencial costuma ser parte do programa de compliance e seus conceitos mais gerais costumam estar expostos no código de conduta da companhia. O tema é, majoritariamente, tratado dentro da área de Compliance, e em setores mais expostos, costuma contar com uma política específica, que esmiúça as regras e procedimentos para evitar problemas nessa seara. Em essência, ela não difere muito do objetivo da política de compliance anticorrupção. Existe para prevenir e tratar de eventuais riscos, para que a empresa atue em conformidade com a lei de defesa da concorrência aplicada a realidade dela.
Não é só cartel
A formação de carteis é, sem sombra de dúvidas, a face mais conhecida dos delitos contra a livre concorrência, especialmente para o público médio. Só que nem todos os cartéis são organizados de forma tão estruturada, com regras como as de um campeonato esportivo, tal qual o montado para lesar a Petrobras. Existe uma série de outras situações, algumas bastante sutis, que podem vir a configurar uma infração as regras de defesa da concorrência. Reuniões em associação de classe, troca de informações sensíveis entre concorrentes, ou mesmo determinadas conversas entre vendedores de empresas rivais nas salas de espera de um cliente. Casos de dumping, quando produtos ou serviços são vendidos por um preço muito abaixo do seu real valor, por exemplo; ou o abuso de posições dominantes, dificultando o acesso de outros players ao mercado, também são temas afeitos ao compliance concorrencial.
Com essa amplitude é preciso tomar cuidado. Uma empresa que tem uma posição de liderança folgada em seu mercado, precisa tomar cuidados para que a sua ação no mercado não seja considerada abuso de posição dominante, como forçar vendas casadas de determinados produtos, ou recusar-se a negociar, sem uma boa explicação aparente, com um determinado cliente.
Mesmo que não tenham noção dos meandros das legislações específicas, as pessoas ao menos sabem que é errado subornar alguém para obter uma vantagem, o que torna os temas de combate à corrupção, mais compreensíveis e assimiláveis pelo grande público dentro das empresas. No caso da defesa da concorrência, as pessoas podem até ter alguma noção do que seria um cartel, mas, de fato, não são conceitos que estão todos aí, no dia a dia das pessoas. Isso torna o trabalho dos profissionais que lidam com a área mais desafiador.
Como fazer com que o tema possa ser compreendido por funcionários de diferentes áreas e níveis da empresa, particularmente em companhias de setores mais expostos ao acompanhamento dos órgãos de defesa da concorrência? Adriana Laporta Cardinali Straube, gerente geral Jurídica da Votorantim Cimentos, esclarece que, na empresa, os procedimentos de compliance concorrencial estão explicitados em uma política específica que possui anexos relativos a procedimentos e cuidados que os profissionais devem tomar em determinadas situações. Existe um treinamento sobre o tema, via e-learning, que é mandatório para todos os profissionais da empresa, independentemente do nível e da área de atuação.
Mas, é no treinamento presencial aplicado aos profissionais que atuam nas áreas mais expostas a riscos dessa natureza dentro da empresa, que o entendimento é aprofundado. “O treinamento presencial, especialmente no Direito da concorrência, é extremamente relevante. É nele que você vai tratar das duvidas que aparecem na prática. É aí que as pessoas, de fato aprendem, com exemplos e exercícios”, explica Adriana. A executiva diz que se vale sempre de exemplos reais do mercado de atuação da empresa, incluindo precedentes internacionais (a Votorantim Cimentos faz cerca de 40% das suas vendas no exterior), para que as pessoas realmente incorporem o conceito do compliance concorrencial e saibam como agir diante de situações do dia a dia. Isso porque, muitas situações que suscitam dúvidas podem até ser lícitas, mas alguns cuidados precisam ser tomados.
Esse é um ponto muito importante. Não é que você não vai nunca mais falar com uma pessoa da concorrência, mas existem uma série de cuidados que precisam ser tomados em vários contextos, inclusive o de eventualmente não falar num determinado período. Por exemplo, fazer benchmark em concorrente é possível? Sim, mas é preciso se precaver para que uma situação lícita não seja convertida em um problema concorrencial. O mesmo vale para reuniões em associações de classe, em que é preciso estabelecer mecanismos para evitar a divulgação de informações consideradas sensíveis. Na Votorantim Cimentos, reuniões em associação de classe e contatos com concorrentes devem ser supervisionados pelas áreas Jurídica ou de Compliance. “O acompanhamento do advogado, pelo menos dentro do nosso programa, é muito relevante e um dos itens essenciais do nosso compliance concorrencial”, reforça a gerente da cimenteira.
Ainda que não seja necessariamente permeado por toda a organização, especialmente naquelas não tão expostas a situações de infrações à legislação concorrencial, o nível de entendimento médio sobre o tema evoluiu bastante nos últimos anos, aí sim, principalmente entre os profissionais das empresas ligados mais diretamente ao tema. “Até alguns anos atrás, sentíamos nos treinamentos que, de forma inocente até, infrações poderiam ter ocorrido. Hoje, isso é muito mais remoto de acontecer”, diz Del Chiaro. Um dos motivos para isso é que no compliance concorrencial, na prática, os riscos para os indivíduos envolvidos na infração são mais comuns do que em casos de corrupção empresarial.
O risco é grande e as consequências muito graves, o que leva as pessoas a atentarem mais às regras e a cumpri-las. “Sempre começamos o treinamento mostrando o que pode, eventualmente, acontecer. Claro que nesses casos, a empresa pode ter problemas de imagem, financeiros… Só que a pessoa física pode ir para cadeia. Por isso, os profissionais, de fato, tem um grande receio de não atuar em conformidade com a lei”, pontua Adriana, para quem é perceptível o aumento no nível de conscientização dos profissionais, com receio que elas têm de agirem de determinada forma. “Você percebe que o conceito entrou no DNA das pessoas, até mesmo em razão das consequências que elas podem sofrer”, reforça.
Mais privado do que público
Outro ponto importante é que, ao contrário do que acontece com o compliance anticorrupção, que foca principalmente nos riscos existente na relação da empresa privada com o setor público; os atentados contra a defesa da concorrência, tradicionalmente, costumam acontecer de forma mais frequente nas relações entre agentes privados. É certo que nesse momento, essa tradição foi, em alguma medida, ofuscada pelos inúmeros casos de grandes cartéis descortinados pela Lava Jato e operações congêneres recentes, que têm o Estado como alvo.
As grandes empreiteiras brasileiras estão implicadas em investigações que envolvem a Petrobras, mas, também em outros casos, como os das licitações do Metro e do Rodoanel, em São Paulo, ou da Eletronuclear. Boa parte delas já firmou acordos com o CADE. Mas, Ademir Ferreira Junior, também advogado e sócio do Del Chiaro, acredita que passando esse momento de Lava Jato, cerca de 70% dos casos se dão na esfera privada.
Exemplos não faltam. Sucos, peças automotivas, cimento, próteses, combustíveis, gases hospitalares… Todos esses setores já foram alvos da ação de cartéis. Alguns, de cartéis “hard core”, como os especialistas do setor definem as situações em que a prática no setor se dá de forma institucionalizada e horizontalizada. De acordo com um artigo assinado pelos sócios do Del Chiaro, desde 2014, o mercado de autopeças, tem sido investigado e já conta com mais de dez processos. Em 2017, mais cinco novos processos administrativos foram instaurados.
Aliás, uma das investigações que envolve o setor é fruto de um cartel que atuava de forma global. O mesmo artigo cita outro caso, que trata da formação de cartel na revenda de combustíveis no Distrito Federal. A Cascol, uma das acusadas, assumiu compromisso de desinvestimento em postos geridos por ela, com o objetivo de reduzir a concentração e permitir a entrada de concorrentes.
Pouco acostumado a respeitar as regras de concorrência, o mercado de produtos médicos, como próteses e marca-passos também apontam para uma situação muito grave de cartelização, envolvendo empresas de médio porte.
Tempos de crise, tempos de risco
Em períodos de crise, o treinamento de compliance concorrencial ganha ainda mais importância. Para Jose Del Chiaro, os setores mais expostos são sempre aqueles afetados por crise, situação que pode levar as empresas a adotarem políticas comerciais inadequadas. “Nessas situações, as pessoas podem assumir o risco de fazer algo errado, uma posição racional mesmo”, lembra. Não é por outro motivo que as penalidades estão cada vez maiores. E, no caso das empresas, a responsabilidade é objetiva, ou seja, ela também responde pela infração do funcionário, ainda que ele tenha agido por conta própria.
Um ponto importante a se notar é que uma política comercial mais agressiva, uma decisão comum nas empresas em períodos de “vacas magras”, não precisa ser inadequada. Para fins da defesa da concorrência, ela deve ser analisada pela “regra da razão”, que vai avaliar se a política, embora agressiva, não atinge a concorrência no mercado onde aquela empresa se insere de forma razoável, tornando a uma mera decisão de negócios. Uma queima de estoque, ou uma semana de ofertas com tudo pela metade do preço, por exemplo, dificilmente seriam consideradas uma infração às regras da concorrência, uma vez que são medidas esporádicas e aceitáveis do ponto de vista dos negócios.
DD concorrencial
Analisar e julgar casos de fusões e aquisições (M&A) de empresas, levando em conta o impacto de uma eventual concentração no mercado, é uma das principais atividades do CADE. Certamente, esse é um tema muito afeito ao compliance concorrencial. A autarquia estabelece uma série de regras e cuidados que as empresas devem tomar nas due diligences de fusões e aquisições.
Um cuidado adicional nesses processos, quando envolvem concorrentes, diz respeito ao acesso dos dados da empresa no data room (o ambiente onde os interessados podem analisar os números da empresa). “O guia do CADE traz alguns passos para isso. É preciso estabelecer um rito e evitar que certas áreas tenham acesso a esses dados, preservando informações sensíveis do ponto de vista da concorrência para evitar quaisquer riscos de infração à ordem econômica”, explica Adriana, da Votorantim Cimentos. Ademir Ferreira Júnior, do Del Chiaro, lembra também que é em processos de due diligence concorrencial, quando existe uma fusão ou a venda de uma empresa brasileira, que se constata a existência de cartéis.
Competente e atuante
Dos órgãos reguladores brasileiros, o CADE é hoje, sem sombra de dúvidas, um dos mais atuantes e eficientes e com uma postura bastante agressiva no mercado. “O CADE é reconhecidamente uma das maiores e mais importantes agencias de defesa da concorrência do mundo, tendo sido eleita a melhor agência das Américas”, reconhece José Del Chiaro.
Outro ator que tem sido mais atuante na defesa da concorrência é o Ministério Público, especialmente em situações que envolvam cartéis, atuando de forma cada vez mais especializada e realizando busca e apreensões tanto nas empresas quanto nas casas dos executivos investigados.
Em termos de arcabouço legal, além da Lei 12.529/2011, é possível, com base na legislação civil, que empresas e pessoas possam ser acionadas judicialmente por violações à livre concorrência. “Se a empresa, por conduta unilateral, prejudicar uma concorrente, já existem mecanismos legais para ela se defender e buscar uma reparação na Justiça”, explica Adriana.
Com a atenção de todos
Mercados que são mais concentrados, indústrias com maiores barreiras de entrada e os setores que já carregam um histórico de problemas estão, naturalmente, mais suscetíveis ao rigor dos órgãos de defesa da concorrência. Por isso mesmo, empresas que atuam nesses setores costumam estar mais desenvolvidas em relação ao compliance concorrencial. “A sensibilidade para, no dia a dia, identificar o que eventualmente pode ser uma postura de risco, um caminho que não deve ser seguido, é maior no caso de empresas desses setores, especialmente por parte da alta direção”, aponta a executiva da Votorantim.
Entretanto, mesmo nos segmentos da economia menos fiscalizados pelo CADE, é um risco grande não olhar para a legislação concorrencial, esteja em que mercado estiver. Até porque, ela traz conceitos que podem expor o negócio a certas regras do CADE, que sem o conhecimento específico do funcionamento das regras de defesa da concorrência, podem ser ignoradas pelas empresas, expondo-as ao risco de infringirem a lei. “É preciso que todas as empresas tenham consciência da legislação e estabeleçam procedimentos para lidar com ela. Pode até ser algo mais simples, porque o CADE diz que a estrutura depende do porte da empresa e do mercado que ela atua. Mas, é preciso conhecer para não descumprir a lei”, conclui Adriana.
Publicado originariamente na Revista LEC, edição nº 23, com o título: “Ponto de partida”.
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