Construir uma cultura baseada em valores e ética demanda uma visão de longo prazo, que precisa lidar inclusive com a pressão de resultados a cada trimestre
O discurso de que as empresas devem se mover não só por resultados financeiros, mas também por propósitos e valores vem ganhando força já há alguns anos. Pressionadas pela mídia, por organizações da sociedade civil e, também, diretamente, por clientes e parceiros as empresas têm caprichado no discurso. Mas na prática… Ainda existe um desafio grande que é a da criação de uma cultura que consiga, inclusive, suportar as pressões brutais para entregar resultados cada vez melhores, independentemente das condições do mercado. De fato, construir uma cultura assim é um grande desafio. Não existem respostas prontas, nem mesmo respostas fáceis. O reitor da Fuqua School of Business, da Duke University, William Boulding vem se dedicando a esses temas há um bom tempo. Membro do Conselho de Valores do Fórum Econômico Mundial e presidindo a diretoria do GMCA (Conselho de Admissão em Gestão de Pós-graduação), Boulding tem contribuído para a formação de um novo perfil de liderança empresarial, capaz de estimular o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos e nortear equipes em direção a um pro- pósito comum. Em uma breve visita a São Paulo, ele recebeu a reportagem da LEC para uma conversa
Hoje é comum dizer que as empresas precisam atuar com base em valores. Mas, como elas podem sustentar os valores e a ética corporativa num ambiente nas quais elas (e seus líderes) são brutalmente pressionadas pelos resultados, trimestre a trimestre?
É uma boa pergunta. Tenho um bom exemplo, que é o meu trabalho com o braço de Nova York do Federal Reserve (FED/NY). Esse engajamento começou depois da crise financeira de 2008. O presidente da instituição – a responsável por regulamentar Wall Street – observou que eles tinham visto mais recursos entrar no caixa do governo com multas e sanções às instituições financeiras, do que o governo havia liberado de recursos ao mercado por conta do TARP (Troubled Asset Relief Program), o programa de auxílio instituído para aliviar os bancos durante a crise. E, então ele fez os seguintes questionamentos: “É possível que exista um problema de cultura? E, é possível que as escolas de negócios sejam as responsáveis por esse problema de cultura?“. A minha resposta foi: “sim, acho que temos que aceitar a responsabilidade”. Nós temos uma maneira muito fácil de garantir um bom score, que é quanto dinheiro você ganha. Você está lidando com dinheiro; você sabe os resultados trimestrais que tem que entregar. A resposta a isso tem sido dizer que é preciso haver compliance. Os bancos precisam mostrar que vão seguir regras. Isso é bom. O sistema financeiro demanda a confiança de que as pessoas que nele trabalham seguirão as regras. Mas, aqui está o desafio. Você tem uma cultura de compliance (no sentido mais estrito do cumprimento das regulações), ou você tem uma cultura que prega que “nós também servimos à sociedade”. Há uma diferença muito grande entre cultura de conformidade e uma cultura de valores.
Como esse desafio foi vencido?
A iniciativa do FED/NY foi focada em como construir uma cultura, na área de serviços financeiros, que neutralize essas tensões, porque o padrão é bem claro: você sente a pressão de curto prazo para entregar performance financeira. E, tipicamente, o comportamento antiético não é feito de grandes atos, mas de um conjunto de pequenas atitudes, de pequenas coisas que resultam em algo que se torna grande. Essa foi uma paixão particular de Bill Dudley, que era o presidente do FED/NY na época: como construir uma cultura que realmente destaque os valores da instituição, para que as pessoas mantenham uma posição de confiança e respeito na sociedade. Eu acredito que os bancos acabaram adotando essa postura. Os bancos fizeram um progresso real em garantir que as pessoas entendam o importante papel que desempenham na sociedade. Quando essa mensagem é reforçada pelo topo de forma consistente, sem tolerância aos maus comportamentos, você consegue construir uma cultura baseada em valores, mesmo em face dessas pressões.
Mas é possível estabelecer uma cultura baseada em valores e ética sem uma forte cultura de conformidade? E sem regulamentações de mercado rígidas?
É possível, embora difícil. O melhor exemplo que temos hoje é um conjunto bastante desregulado de atividades que envolvem as grandes empresas de tecnologia.
Muitas operam numa zona cinzenta.
Sim. Acho que o sentimento era um pouco como: “Veja, não somos regulamentados, estamos vivendo de acordo com os nossos próprios valores, e, dessa forma, agregamos valor, impulsionamos a inovação e trazemos ideias para o mercado que beneficiam os clientes. Portanto, o certo é deixar que nós nos autorregulemos”. Mas, tenho certeza de que, de repente, as pessoas estão se conscientizando de alguns dos desafios que enfrentam. Elas precisam fazer escolhas sobre quem tem acesso a quais dados. E está se tornando aparente que as pessoas não estão muito confortáveis com algumas das escolhas que foram feitas. Um dos desafios que temos é que a tecnologia corre a frente de nossa capacidade de regulá-la. Só depois descobrimos que estamos fazendo coisas das quais talvez não gostássemos. Acredito no capitalismo, que as empresas devam ser incentivadas a inovar. Ao mesmo tempo, vamos descobrir mercados que não são capazes de se acertarem sozinhos, o que demandará algum nível de regulação. Isso é importante para dar segurança para a sociedade. Mesmo que as empresas tenham interesse para se autorregular, esse é um sinal para a sociedade de que certas coisas não serão permitidas.
No caso das empresas de tecnologia, é bem provável que o conselho dessas companhias, que a direção, soubesse o que poderia acontecer. Esses riscos foram assumidos. Estamos num ambiente realmente onde os valores vão delimitar o apetite para a tomada de riscos no negócio?
Eu tenho pensado muito ultimamente sobre o propósito comum no capitalismo em um mundo de diferenças. Eu tenho uma crença muito forte no capitalismo. E, no entanto, estamos vivendo agora uma época na qual muitas pessoas estão desafiando as ideias do capitalismo. São vozes diferentes, que se preocupam em questionar se o capitalismo é realmente o modelo certo. Isso tem gerado ameaças, como a ascensão do populismo, que, basicamente, tira a oportunidade de os negócios florescerem, inovarem e criarem valor. Isso porque eles se tornam altamente regulados por pessoas que dizem que os negócios são projetados apenas para aumentar a desigualdade de renda, enriquecer mais as pessoas que já são ricas à custa das pessoas pobres. É uma simplificação terrível do populismo, mas não é tão longe assim.
Outro tema com o qual as pessoas se preocupam muito diz respeito às mudanças climáticas. São as empresas que se autorregulam para proteger o nosso futuro. E com a observação que você fez, dos resultados de curto prazo, o CEO da companhia hoje é que vai decidir sobre o que vai acontecer daqui a 30 anos. Novamente, existem diferentes grupos que têm visões diferentes sobre isso. Mas existe a preocupação de que o capitalismo não estará à altura do desafio de levar em conta visões e resultados de longo prazo. Precisamos prestar atenção às consequências que de alguma forma incorporam um olhar mais amplo, de uma perspectiva baseada em valores. Algo que vá além de só se preocupar com uma nova “disruptura” no mercado, que preocupe em como isso pode afetar a sociedade. É pensar de verdade no impacto de fechar uma fábrica, porque se descobriu uma forma de produzir sem ela, mas que vai levar as pessoas a perderem seus empregos porque a fábrica fechou.
Além de empregados eles são consumidores, certo?
Também. As pessoas estão convencidas de que você se preocupa o suficiente com o futuro, que você se autorregulará a esse respeito? As nossas políticas, baseadas em valores, que dizem que nos preocupamos com a sociedade… Realmente nos preocupamos com as pessoas em uma perspectiva mais ampla, indo além dos nossos acionistas e além deste momento no tempo? Nada disso é inconsistente com o capitalismo no sentido de maximizar a rentabilidade. E se você quiser maximizar a rentabilidade no longo prazo, você vai fazer as coisas de uma forma que proteja o seu futuro, que irá proteger sua capacidade para atrair os melhores talentos, para manter seus clientes, para retribuir às comunidades nas quais você opera. As consequências de não se mover mais em direção a uma base de valores, onde não se olha apenas para os lucros, mas para os lucros e para os propósitos, será o aumento da regulamentação. Por isso, trabalhar com propósitos e valores é do melhor interesse das empresas que querem maximizar lucros de forma sustentável, no longo prazo.
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Conteúdo publicado originariamente na Revista LEC.