Aos olhos de boa parte do Brasil, a vitória da Copa do Mundo de futebol, no final do ano passado, devolveu o orgulho e a alegria aos argentinos, um povo que passou boa parte das últimas duas décadas envolto em crises, protestando regularmente nas ruas contra seus governos e que tem visto a situação sócio econômica se deteriorar nos anos recentes, com uma inflação que fechou 2022 em quase 100% e com algo entre 35% e 40% da sua população vivendo hoje abaixo da linha de pobreza, como foi fartamente noticiado pela imprensa.
É consenso que manter o padrão de conforto e consumo para um argentino médio hoje é mais difícil do que era até alguns anos atrás. Mas aí, é preciso ter em conta as peculiaridades das condições históricas de cada país e a forma como seus indicadores refletem essa realidade. No caso dos nossos vizinhos, a linha de pobreza é estabelecida pela renda familiar em relação a uma cesta básica de bens e serviços, que no caso de uma família de quatro pessoas, chegava a cerca de US$ 820 em fevereiro deste ano, segundo o Indec, o órgão estatal responsável por dados e estatísticas. O valor equivale a algo entre R$ 4.100 e R$ 4.200, na faixa do câmbio atual. Já a extrema pobreza na Argentina é atingida quando a família não tem renda suficiente para comprar a cesta básica alimentar, que estava em US$ 370 pelo câmbio oficial argentino, e que equivale ao salário mínimo do País (cerca de R$ 1.850).
A mesma renda que serve para delimitar a linha de pobreza por lá, seria quase o suficiente para colocar essa mesma família por aqui dentro do que o IBGE classifica como uma família de renda média, ou da Classe C1. E o salário mínimo pago por lá é cerca de 30% superior ao brasileiro. Isso ajuda a explicar porque mesmo com a complexa realidade, por todos os dados e indicadores que se olhe, a qualidade de vida da população na Argentina, na média, é superior à brasileira e da maior parte dos países da região. E nem dá para falar que é por uma diferença apertada. De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o PIB per capita fechou 2022 em US$ 13.710, considerando os preços correntes, enquanto no Brasil o indicador foi de US$ 9.670. Quando se faz a leitura da renda per capita considerando o poder de compra local, os argentinos trabalham com o equivalente a US$ 27.250, enquanto por aqui geramos US$ 18.700. O país tem um sistema consolidado de serviços públicos nas áreas de saúde e educação, o que faz com que o IDH seja o segundo melhor da América Latina (840 pontos), atrás apenas do Chile e bem acima do Brasil, que ocupa a 15º posição no ranking (758 pontos). Também na questão da desigualdade, o índice de Gini, medido pelo Banco Mundial, dá 42 pontos a Argentina, o que faz dela um dos países menos desiguais entre as economias da região (o Brasil está na outra ponta, com 52,9, como o mais desigual entre as grandes economias latino-americanas). Os índices de violência são bastante baixos para os padrões latino-americanos, com a taxa de cinco homicídios por 100 mil habitantes, quatro vezes menos do que a taxa brasileira e inferior até a do pequeno Uruguai. Enfim, ainda que empobrecida, a Argentina segue sendo um país de renda média que consegue garantir algum padrão de conforto e segurança à sua população. Além disso, mesmo com todos os problemas e os vai e vens da política e da economia local, o país ainda ocupa a posição de terceira maior economia da América Latina, com um PIB de US$ 641 bilhões (em abril de 2023, de acordo com o FMI) e uma população de cerca de 46,7 milhões de habitantes.
Agora, quando a realidade a ser entendida é a do ambiente de negócios, a situação muda. Não dá para falar que ela se inverte, porque o Brasil está longe de ser um paraíso para se trabalhar. Operar na Argentina impõe às empresas uma série de desafios, muitos deles peculiares e complexos, como as inúmeras taxas de câmbio, controles de fluxos de divisas para importação e exportação, e controle de preços sobre uma lista de produtos da cesta básica, para ficar apenas em alguns exemplos. Tanto que no índice de liberdade econômica, medido pela Heritage Foundation, um tradicional think tank, a Argentina ocupa uma distante 144º posição, num ranking de 176 países. O Brasil ocupa a 124º posição. Já no antigo ranking Doing Business (também do Banco Mundial, descontinuado em 2020), os portenhos ocuparam a 126º posição, com 59 pontos. Com 59,1 pontos na última versão da lista, de 2020, o Brasil está duas posições à frente.
Quando o assunto é a corrupção, seja pela percepção da população, seja pela análise de um conjunto de dados e informações de cada país, Argentina e Brasil têm posições bastante semelhantes. No ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional, que como o nome já diz mede a percepção à partir da visão de atores locais, Argentina e Brasil fazem os mesmos 38 pontos, ocupando a 94º posição. Já pelos rankings da ERCAS – um órgão de promoção da integridade pública e do combate à corrupção ligado à União Europeia e que estabelece seus indicadores a partir da análise de um conjunto de informações e dados públicos disponibilizados pelos governos de cada nação -, o índice de risco de corrupção da Argentina é de 7,1, com a nota mais baixa sendo dada para a questão da independência da Justiça, com 3,82 (o mesmo item também é o mais baixo na avaliação do Brasil, com 4,29 para uma nota total de 7,23). Já o índice de transparência, também da ERCAS, dá à Argentina nota de 16,5 (15 para o Brasil). Esse índice é produzido a partir de uma análise da transparência “de juris”, que diz respeito a qualidade das leis e regulamentos, além da adoção de tratados e convenções internacionais por cada país, e da transparência “de facto”, que vai analisar a disponibilidade e a facilidade de acesso a informações do Estado de diferentes natureza.
Leis no “estado da arte”
A principal lei de combate à corrupção empresarial argentina, a Lei de Responsabilidade Penal Empresarial (27.401), é do final de 2017. Ela foi promulgada durante o governo de Maurício Macri, hoje um dos principais nomes do bloco de centro-direita que deve concorrer à eleição presidencial ainda neste ano. Para Maria Archimbal, Chief Compliance Officer da petroleira estatal YPF, maior empresa do país e equivalente à nossa Petrobras em termos de relevância política e econômica, comparada a outras leis anticorrupção como o FCPA ou a lei brasileira e outros exemplos internacionais, trata-se de uma lei que é o “estado da arte”. “Para o seu desenho e implementação o regulador manteve a convenção da OCDE e outras convenções internacionais sempre em mente”, disse a executiva. Ainda são pouquíssimos os casos processados com base nessa lei, que passou a vigorar apenas em 2018 e que tem entre seus mecanismos, instrumentos inovadores no cenário legal argentino, como a valorização dos programas de compliance para a redução de penas e mecanismos equivalentes aos acordos de leniência e a delação premiada.
Ao contrário do que acontece no Brasil, a responsabilidade das empresas na Argentina é criminal (como diz o próprio nome da lei). Dessa forma, ela também não estabelece a responsabilidade objetiva das empresas, o que torna o processo naturalmente mais lento, dada a necessidade de se comprovar o dolo da companhia na Justiça. “A pessoa jurídica pode inclusive eximir-se de multas, em situações nas quais elas façam a autodenúncia, investiguem e colaborem com as autoridades e consigam demonstrar que o malfeito foi uma situação extrema, apesar de todos os esforços da empresa em manter o seu programa efetivo”, conta a advogada Alicia Cano, subdiretora do Programa de Atualização em Compliance da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. “A ideia não é a de um estado que tenha um afã de sancionar, mas sim, atacar efetivamente o delito e permitir que as empresas sigam trabalhando e gerando crescimento”, diz Erica Zapico, coordenadora do mesmo programa. Pode-se dizer que as autoridades portenhas ainda estão no início de um processo de aprendizagem sobre como lidar com processos dessa natureza envolvendo pessoas jurídicas.
Um primeiro caso envolveu a denúncia de um servidor público da companhia de energia da província de Mendoza, pelo que ele entendeu ser uma tentativa de suborno de US$ 100 mil oferecida por um executivo de uma empresa búlgara por um contrato. A empresa fez a investigação interna e foi até a Justiça. Foi a primeira ocasião em que uma empresa foi a juízo com base na lei de 2017. O caso chegou até o Juiz, mas o executivo alegou que na verdade houve uma confusão, que o que ele teria dito era que o contrato que estava pleiteando era de US$ 100 mil. Enfim, sem provas mais concretas (a comunicação entre os dois foi toda verbal) que pudessem corroborar a acusação criminal para além da dúvida razoável, o Juiz arquivou o caso e absolveu o executivo e a empresa. Em outro processo, na jurisdição de Buenos Aires, chegou-se a um acordo entre a empresa e o promotor de justiça, mas que ainda não foi tornado público. “Trata-se de uma companhia que foi até o promotor para dizer o que estava acontecendo, que estavam sendo realizadas investigações internas e que todos os meses eles manteriam o promotor a par do andamento das investigações. Nenhum promotor argentino foi abordado por uma empresa nesse sentido na vida. E ele não sabia o que fazer”, conta Guillermo Jorge, dando uma ideia do grau de ineditismo envolvido na situação, citando uma apresentação na qual esse promotor falou das dificuldades enfrentadas para conseguir estabelecer o acordo com a companhia. Inclusive questões de ordem técnica, sobre se ele poderia anexar as informações que estava recebendo nos autos. Quando a companhia concluiu a investigação e propôs um acordo, o promotor, com receio das consequências e repercussões de fazer um acordo com uma empresa ré confessa de corrupção, foi de uma diligência extrema: pediu ao Conselho Profissional de Ciências Econômicas Argentina, que seria o conselho dos contadores, um informe sobre como calcular o impacto dos atos lesivos geradas pela infração da empresa ao erário. “Não era um cálculo simples, porque não era um kickback, um percentual sobre o valor de um contrato. Eram feitos pagamentos ao longo do tempo em troca de certas vantagens. Calcular o valor de cada uma dessas vantagens não é fácil”, explica o sócio do Bruchou e Funes de Rioja. Mas, não totalmente seguro, o promotor aceitou o acordo, mas solicitou uma perícia contábil para determinar exatamente, com especialistas, o valor do acordo. Como essa perícia ainda não foi concluída, o acordo não foi tornado público e ainda não se sabe dizer se os processos estabelecidos pelo promotor serão encarados como o procedimento padrão. O modelo adotado é positivo por um lado, já que busca manter a isenção e o caráter técnico de uma eventual negociação de acordo. Por outro lado, como lembra um profissional de compliance portenho falando sob anonimato, essa diligência extrema acende um farol amarelo. “Contadores querem gerar trabalho para os contadores. É natural e acontece com outras categorias. Mas, caso todos os acordos tenham que passar pelo crivo de um especialista, ou ter algum tipo de parecer independente, as coisas não vão andar e os processos tendem a demorar demais a serem fechados, ou às negociações ficarem travadas entre pareceres de especialistas”, alerta o profissional, que aponta que até hoje, passados quase meio ano, não se teve a conclusão e a entrega do parecer dos especialistas o que não tem permitido a conclusão e a divulgação do caso.
Apesar disso, o receio do promotor não é sem propósito. A lógica dos acordos é algo que precisará ser vendido à população argentina. Assim como acontece no Brasil e em outros países, a essência desses acordos, que tentam se equilibrar entre estabelecer uma medida que sirva de punição e seja dissuasória – para que a própria empresa e outras não aceitem mais correr o risco, mas que não seja tão agressiva a ponto de tornar muito difícil a continuidade das operações (e os empregos gerados) -, não costuma ser compreendida pelo povo da mesma forma que os profissionais envolvidos com o Compliance enxergam. A expectativa natural, lá como aqui, é sempre por prisões a algum “sangue” derramado.
De fato, a sociedade civil argentina é muito ativa. Particularmente desde o fim da ditadura, no início dos anos 1980, os protestos são uma constante na realidade local e as pesquisas, há muitos anos, mostram que a corrupção é um tema que importa à sociedade. Por isso, muito da agenda de trabalho da Oficina Anticorrupción (OA), o órgão do poder executivo responsável por atuar na investigação de casos envolvendo agentes públicos e, principalmente na prevenção e na promoção da transparência e do combate à corrupção, envolve o engajamento com a sociedade. “A corrupção é um fenômeno complexo e multidimensional – às vezes nasce no setor público, às vezes no setor privado. A participação social é um antídoto para diminuir os riscos de corrupção e quanto mais acesso a informação ela tiver, mais efetiva”, explica Luis Villanueva, Subsecretário de Planejamento de Políticas de Transparência, braço do órgão que opera no campo preventivo.
Mas isso precisará ser feito, até para evitar que os agentes públicos, temendo a repercussão negativa, deixem de fechar acordos que poderiam ser a escolha mais rápida e eficiente para reparar um erro, recompensar o Estado e corrigir as falhas nos mecanismos de controle e governança das empresas, ao mesmo tempo em que oferece às empresas comprometidas em corrigir os seus erros, condições para elas seguirem em operação. Um caso mais antigo, mas que é bastante emblemático desse risco reputacional para procuradores e órgãos de Estado aconteceu com a Odebrecht (hoje, Novonor). Na época da Lava Jato a empreiteira brasileira tentou firmar um acordo com as autoridades argentinas. Mas politicamente seria muito complicado anunciar um acordo com a empresa que estava sob os holofotes e o escrutínio da imprensa, de políticos e de parcela importante da população. “É o tipo de barreira que seria preciso vencer junto à opinião pública. Mas a verdade é que também não dava para oferecer muito naquela situação. A Odebrecht era vista pelas autoridades, naquele momento, como o pior aluno da sala“, lembra Guillermo Jorge, sócio de Compliance do escritório Bruchou & Funes de Rioja. Além disso, como lidava com fatos anteriores a 2018, o acordo não poderia ser fechado com base na lei.
Neste caso, como explica Guillermo Jorge, a empresa estava negociando um acordo com o Executivo argentino, mas queria entender qual seria a repercussão desse acordo nos processos judiciais onde os funcionários da Odebrecht estavam implicados (a empresa não era investigada nos processos judiciais). “O governo não tinha resposta, a não ser dizer que a Justiça é independente e que eles não poderiam interferir nos processos criminais”, lembra. Em meio a essas questões todas, a Odebrecht acabou entendendo que era melhor então seguir brigando na Justiça.
Para o sócio do Bruchou & Funes de Rioja, esse caso exemplifica bem como vão ser feitos os acordos de leniência na Argentina. E eles serão feitos todos no marco dos processos criminais. “O promotor e o juiz criminal é que terão a competência para tomar a decisão e fechar o acordo, além de impor as sanções e os remédio futuros para a companhia, como monitoramento e implementação de programas de Compliance”, diz Jorge. Dessa forma, os processos devem ser mais parecidos com os movidos pelo departamento de justiça dos Estados Unidos (DoJ) nos casos do FCPA, onde os procuradores vão tratar dos acordos tanto com as empresas quanto com os indivíduos no tribunal.
Promulgadas bem antes da Lei de Responsabilidade Penal Empresarial, ainda na virada do milênio, duas outras legislações deram início ao arcabouço de combate à corrupção e prevenção à lavagem de dinheiro na Argentina. A Lei de Ética Pública (25.188), que trata de corrupção e da conduta de agentes públicos, é de dezembro de 1999 e estabeleceu alguns marcos importantes de controles para os servidores, especialmente os mais graduados, como a declaração jurada de patrimônio e sua atualização anual, de incompatibilidade e conflito de interesses. Ainda hoje ela exerce papel fundamental para o monitoramento dos agentes públicos pelos órgãos de controle interno do governo argentino. Já a lei de lavagem de dinheiro (25.246), é de 2000 e trouxe na sua esteira a criação da Unidade de Inteligência Financeira nacional (UIF).
Boas leis, pouco enforcement
Como costuma acontecer por essas bandas, a qualidade das leis que versam sobre o combate à corrupção tem nível bastante elevado, e no seu conjunto, são suficientes para as necessidades argentinas. “Nosso problema nunca foi ter leis. Antes mesmo de sermos uma nação, já tínhamos um monte de leis”, brinca Villanueva. Agora, a capacidade de execução do Estado para aplicá-las é outra história. No geral, o nível de enforcement é baixo. Parte do problema é de ordem política mesmo. De acordo com uma análise assinada por Alejandra Soto, diretora associada de Análise de Riscos Globais da consultoria Control Risks, “o governo aumentou sua influência sobre o judiciário nos últimos dois anos – principalmente ao nomear aliados para cargos-chave em agências de aplicação da lei e outras instituições relevantes, reduzindo sua confiabilidade”. “Isso é agravado pela reduzida vontade política em relação ao assunto. Como a vice de Fernández, Cristina Kirchner é ré em múltiplas investigações de corrupção, o governo não promoveu uma agenda anticorrupção”, diz a diretora da empresa especializada em riscos, que emenda: “dito isto, a corrupção continuará a ser um tema quente entre a sociedade civil. A imprensa, ainda amplamente independente, continuará noticiando os casos de corrupção, independentemente de envolverem um político de alto escalão”.
Sócio do escritório Marval, O’Farrell & Mairal na prática de Compliance, Gustavo Morales Oliver Oliver não acredita que falte know how, expertise e mesmo recursos para que as autoridades argentinas, em especial às diversas Procuradorias especializadas do país, como a PROCELAC (que investiga e processa casos de crimes econômicos e de lavagem de ativos), ou da Fiscalía de Investigaciones Administrativas, braço do Ministério Público encarregado de investigar possíveis atos de corrupção contra o poder executivo federal. “ A capacidade de investigar existe. Claro que poderia haver mais recursos – mais gente e agilidade em alguns casos poderiam fazer alguma diferença -, mas os agentes da PROCELAC e da Fiscalía, estão em contato com agentes de outros países e sabem o que se passa no mundo compartilhando informações e know how”, diz o sócio do Marval. Para ele, o que acontece é que frente a todo o stress econômico vivido pelo país, o foco de atenção acaba sendo outro. “A economia entendida não apenas pelo número do PIB, mas como o conjunto de atividades que permitem ao cidadão argentino viver e subsistir, tem uma quantidade de complexidades tão grande, que a luta contra a lavagem de dinheiro não está no número 2000 da lista de prioridades”, aponta Morales Oliver Oliver.
O ambiente político argentino, historicamente desafiador, vai ficar ainda mais agitado neste ano, por conta das eleições para escolha do próximo governo, que deve opor um candidato do atual grupo no poder contra um nome da centro-direita, muito provavelmente o atual prefeito de Buenos Aires, Horácio Lareta, que deve encabeçar a chapa do bloco “Juntos por el cambio”, num confronto que tem tudo para ser bastante agressivo. Para Alejandra Soto, da Control Risks, assim como se deu na década passada, as eleições nacionais serão marcadas por debates sobre a situação econômica e pela corrupção, duas áreas nas quais, de acordo com a analista, a coalizão que governa a Argentina hoje tem muito pouco, ou nada, a mostrar em termos de resultados positivos.
Independentemente das agendas políticas de quem for o próximo mandatário da Casa Rosada, que podem dar mais ou menos peso ao combate à corrupção, é a falta de comunicação e articulação entre os diferentes órgãos que atuam no combate à corrupção e na prevenção à lavagem de dinheiro na Argentina que representam um dos problemas centrais para que o país tenha uma maior capacidade de enforcement. Segundo a análise da Control Risks, “os canais de comunicação entre as diferentes agências de combate à corrupção são escassos, portanto, a cooperação é limitada e relativamente ineficaz. Como resultado, a capacidade do país para combater a corrupção é inadequada”. O subsecretário da OA concorda com o diagnóstico. “Não é que faltem instituições para aplicações específicas (para termos mais enforcement), nós as temos. Mas precisamos de uma melhor interlocução entre essas agências para gerarmos mecanismos modernos de coordenação e melhorar o desempenho em termos de controles e circulação de informações”, diz Villanueva. Uma das apostas do órgão para melhorar essa comunicação está no uso de novas tecnologias. A Oficina Anticorrupción tem trabalhado com uma fundação da área de ciência e tecnologia para o desenvolvimento de uma inteligência artificial que permitirá cruzar informações que venham de fontes da sociedade com as de compras públicas, declarações patrimoniais juramentadas de agentes públicos e de conflito de interesses. Mais do que cruzar um grande volume de informações disponíveis, mas que hoje, não geram inteligência, a ideia é fazer isso de forma rápida e estruturada. “A obtenção e a troca de informações nos órgãos de controles é muito lenta. Precisamos de coordenação e de uma institucionalização para criarmos ferramentas que nos permitam trabalhar com informações de forma mais ágil”, reforça Villanueva.
Outro aspecto problemático é a profusão de normas e regulamentos, dispersos por diferentes órgãos e que não raro demandam a mesma coisa das empresas. “Falta harmonização e buscá-la deve ser um objetivo para melhorar o ambiente de Compliance no país”, pontua Zapico. Isso acontece também na área penal, como exemplifica Alicia Cano. “No próprio código penal, temos dois tipos de delito de publicação de balanço falso. A mesma conduta está listada duas vezes, mas em um caso com uma pena de seis meses a dois anos de prisão, e em outro, com penas de dois anos a seis anos de reclusão… Para a mesma conduta de fraudar os balanços contábeis. É muito difícil para as empresas, para os cidadãos entender. É algo que tem que ser corrigido”, reforça a professora.
O fato de a Argentina não contar com uma multiplicidade de órgãos de controle, em tese deveria tornar esse processo menos demorado e tortuoso. Mesmo em relação às províncias, os estados, não existe muito espaço para discutir a jurisdição sobre os casos. Se o crime é federal, e corrupção é crime federal por lá, cabe ao Ministério Público argentino processar o caso. Já nos casos de lavagem de dinheiro, a jurisdição é da área que se relaciona com o crime antecedente. Se for corrupção, isso recairá sobre os promotores federais também.
Hoje, a atuação da OA se divide em duas grandes áreas, uma de investigações e outra direcionada à prevenção e à transparência. É nessa última perna que a oficina concentra muito mais os seus esforços, principalmente quando o tema é a corrupção corporativa. A criação de uma agência dedicada a tratar da agenda de combate à corrupção no executivo argentino se deu na esteira da criação da Lei de Ética Pública e com uma motivação muito clara a época: a de transformar a forma como o governo argentino combatia e punia a infração ou os malfeitos praticados por agentes públicos, algo que até aquele momento, era feito também pela Fiscalía, que não dava a atenção e a celeridade necessária aos casos. “Pensou-se em usar a estrutura da Fiscalía, mas seria preciso transformá-la e isso iria tomar os quatro anos do governo, o promotor que presidia o órgão tinha mandato, seria muito demorado para mexer na estrutura. Foi uma decisão consciente. Era mais fácil e rápido criar um órgão novo, pensado e dedicado ao tema”, lembra Guillermo Jorge.
Mas a Oficina só tem responsabilidade sobre os agentes públicos. Sua atuação enquanto órgão de controle sobre as empresas é bastante limitada hoje. Tanto que em casos de investigação, ela faz a preliminar apenas. Se encontrar algo pode até pedir para a empresas responder a alguns questionamentos, mas sem tem o poder legal para exigir isso das companhias, o que torna a sua ação nesse particular muito pouco eficaz. Na Argentina, cabe ao Ministério Público e ao Judiciário o papel central nos enforcements de combate à corrupção.
Para o sócio do Bruchou & Funes de Rioja, a decisão do governo argentino de montar toda essa infraestrutura jurídica na Justiça criminal vem do fato de que os procuradores são, realmente, os agentes de Estado mais capacitados para processar os casos de corrupção. “Sei disso porque eu colaborei com a redação da lei e discuti isso com o governo”, diz Guillermo Jorge. Além da existência de promotores federais em todo o território argentino, eles conhecem, tem acordos de leniência em casos de narcotráfico, investigações sofisticadas envolvendo lavagem de dinheiro. Os promotores, em especial os que atuam nas grandes cidades, sabem como fazer uma investigação e tem as ferramentas para isso. “Claro que em cidades menores, os procuradores estão mais acostumados a lidar com ‘crimes de rua’, mas é muito pouco provável que você vai ter uma investigação grande e complexa de corrupção fora dos grandes centros, a não ser em casos muito específicos, uma área de mineração ou óleo e gás, por exemplo, que acontecem diretamente na província. Mas mesmo nesses casos, as sedes estão em Buenos Aires, é aqui que os negócios são feitos, que as decisões são tomadas e onde vivem as pessoas que tomam as decisões”, reforça Jorge.
O problema é que o Judiciário como um todo (incluindo aí os Procuradores), tem sido lento nos seus prazos de adaptação às novas leis. “Casos que envolvem reformas normativas ou novas legislações levam muito mais tempo para avançar do que se desejaria e seria conveniente”, lamenta o servidor da OA, que acredita que isso seja fruto, entre outras coisas, de aspectos culturais, como o histórico de lidar com processos contra pessoas físicas e, agora, precisa interpretar a lei para aplicar sanções às pessoas jurídicas. “Grande parte do nosso esforço atual tem a ver com um trabalho que estamos desenvolvendo junto ao Ministério Público para conscientizar os fiscais sobre como a lei 27.401 pode ser aplicada”, conta Villanueva.
Para Gustavo Morales Oliver Oliver, do Marval, hoje existem mais investigações na Justiça de casos de corrupção do que havia dez anos atrás. Em sua maioria, são investigações de supostos grandes casos de corrupção, que demoram muitos anos para se chegar a uma sentença definitiva, dez anos ou mais as vezes. “Se comparar a situação de hoje com dez, 20 anos atrás, posso dizer que há mais enforcement e que são melhores, até pelo advento das provas de origem digital, como e-mails, mensagens de whats app, ou uma fatura digital. Isso simplifica. Há casos famosos de corrupção na Argentina de anos atrás nas quais a principal evidência era um caderno, ou anotações a mão em uma caderneta. Mas há muito espaço para avançar até que possamos garantir que os enforcements sejam mais sérios e, principalmente, que haja uma percepção de enforcement para a sociedade. Numa análise, te garanto que o enforcement anticorrupção na Argentina nas últimas duas décadas evoluiu. Mas se perguntar para as pessoas, desde diretores até o pessoal do chão da fábrica, eles vão dizer que isso não existe. Por isso elas não se preocupam com o assunto, não têm medo significativo de que um caso de corrupção possa levá-los à prisão”, observa o sócio do Marval. Para Cano, da Universidade de Buenos Aires, mesmo com alguns casos (de corrupção) nos últimos anos, ela não acha que o empresariado tenha medo, mas entende que a Lei 27.401 trouxe para o jogo o medo de responsabilização da pessoa jurídica. “Qualquer que seja a pena, ela terá um impacto reputacional gigante. Esse medo está trazendo uma maior consciência para o mercado”, acredita.
Abastecendo os órgãos de controle e persecução penal com informações, a UIF, como toda unidade estatal de inteligência financeira, cumpre um papel muito relevante no processo de prevenção à lavagem de dinheiro e seus crimes antecedentes, como a própria corrupção. Aliás, a UIF argentina exerceu por muito tempo uma função inusitada para um órgão do gênero, a de ser parte nos processos de acusação criminal que envolvessem crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, como um promotor a mais no processo (a Oficina Anticorrupción também exercia esse papel nos processos de corrupção, mas deixou de fazê-lo com a mudança de administração). O modelo estava em vigor desde o início dos anos 2000, quando a “corte de cassação” em resposta à resistência de alguns juízes, disse que a UIF poderia sim participar como parte nesses processos. Esse desenho institucional inusitado dava à UIF um protagonismo muito grande nas ações e investigações de casos de corrupção e na lavagem do dinheiro obtido com esses casos. Esse “exotismo”, dada a natureza e o amplo acesso às informações dos cidadãos com as quais realiza seu trabalho, vigorou até o início do atual governo, em 2020, quando foi reconfigurada e deixou de ser parte dos processos para atuar da mesma forma que as UIFs operam mundo afora, ou seja, de forma reativa, direcionando as informações suspeitas recebidas dos setores obrigados ou atendendo pedidos judiciais por dados que irão embasar o processo de análise e investigação. A reconfiguração foi importante para alinhar a unidade portenha ao que estabelece o GAFI e o Egmont Group sobre os limites de atuação de uma UIF. Mas ela também reflete uma pressão vinda do ambiente político, porque naturalmente, o movimento teve reflexos na capacidade de persecução do Estado com um todo, em linha com o que aponta o relatório da Control Risks. Além disso, o atual governo direcionou esforços maiores para o combate à evasão fiscal, dada a necessidade de manter capital no país em uma cultura no qual as pessoas chegam a estocar dólares em casa, ao invés de manterem seus recursos nos bancos ou em outras aplicações. Com isso, o combate à corrupção também perdeu um pouco da atenção da agência.
As burocracias do dia a dia
Como todo operador de Compliance sabe, quanto mais complexidade regulatória e burocrática em um país, maior a propensão de se estar em um ambiente com alto risco de corrupção envolvendo agentes públicos, particularmente aquela corrupção mais “corriqueira”, que diz respeito às operações do dia a dia das empresas. Temas como liberação de licenças, obtenção de autorizações ou liberação de pagamentos devidos à empresa, para ficar apenas em alguns eventos mais comuns. É o tipo de infração que pode até lidar com valores baixos, mas gerar grandes dores de cabeça, em especial com autoridades norte-americanas.
A modernização do ambiente burocrático de um Estado, com a digitalização dos governos e a despersonalização dos seus processos, costuma ser de grande valia para melhorar esse ambiente. Mas, para isso, em muitos casos é preciso vencer um processo anterior, político muitas vezes, que viabilize esses avanços nos marcos do país. Para Alejandra Soto, da Control Risks, isso não deve acontecer no curto prazo e as reformas para melhorar o ambiente regulatório econômico devem continuar em segundo plano. Inclusive, a analista não descarta intervenções adicionais de controle de preços, importação e capital. “O governo e o Banco Central ampliaram a lista de importações que precisam de autorização prévia e sistemas de monitoramento de importações mais rígidos”. O próprio Banco Central estendeu a restrição de acesso ao câmbio oficial para pagar a dívida externa financeira até dezembro de 2023. A analista vê como resultado, que empresas e investidores permanecerão expostos a riscos macroeconômicos significativos na Argentina no próximo ano. Mas esses riscos vão além das repercussões estritamente econômicas. A burocratização dos processos para liberação de importação, por exemplo, está entre esses riscos de Compliance do dia a dia que elevam em muito a exposição das empresas. Ainda que esse processo hoje seja feito de forma digital. Com mais burocracia em procedimentos governamentais, os maiores riscos de Compliance na Argentina continuam sendo os que envolvem pagamento de propinas para funcionários públicos locais e federais. “Não conheço projetos do Executivo ou do Legislativo orientados a diminuir o risco de corrupção nos pedidos de importação de bens ou serviços. Por outro lado, é certo que não se imagina de que maneira essa restrição – no marco atual da Argentina, vai desaparecer de imediato. É uma questão econômica, a Argentina precisa de moeda estrangeira. É algo que vem de décadas”, corrobora o sócio do Marval.
Um exemplo de quão problemático isso pode ser para quem opera negócios no país é o caso da gigante da moda norte-americana Ralph Lauren. Em 2013, a empresa foi multada por violações ao FCPA, tanto pelo DoJ quanto pela SEC, justamente pelo pagamento de propinas para agentes públicos locais no sentido de liberar importações da marca entre os anos de 2005 e 2009. Como resultado, a Ralph Lauren, que fez a autodenúncia aos reguladores norte-americanos, acabou selando com esse caso a sua saída do mercado portenho. Isso se deu há dez anos. De lá para cá, as restrições cambiais só cresceram. Os sistemas mudaram e são mais sofisticados, totalmente digitais e eletrônicos. É muito mais difícil, sem dúvida, mas como diversas reportagens em diários como o La Nación e o Clarín têm apontado, aparentemente a corrupção nesse campo segue acontecendo.
Esse ambiente burocrático afeta empresas de quase todos os setores da economia, e coloca um grau imenso de pressão sobre os profissionais, já que para muitas empresas, poder importar é uma “questão de vida ou morte”, como diz Morales Oliver Oliver, do Marval. O país é muito dependente das importações de diversos bens, sejam produtos acabados, sejam de insumos e materiais para o processo produtivo no país. Não importa a finalidade, esse processo depende de liberação oficial para ser efetivado.
Agora, se esse é um problema corriqueiro, dada a sua natureza, os riscos grandes de corrupção na Argentina não são diferentes dos nossos: licitações de compras e obras públicas. O estudo do final de 2020 “Avaliação Prospectiva de Contratação de Obras Públicas na Administração Pública Nacional”, elaborado pelo Ministério de Obras Públicas em conjunto com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, apontou que 94% dos empreiteiros afirmaram que existe corrupção nas contratações públicas, sendo que 25% dos pesquisados disseram que ela é muito frequente. A pesquisa também apontou que 28% dos empreiteiros vivenciaram pessoalmente situações nas quais uma pessoa ou empresa ofereceu vantagens na tentativa de obter um contrato de obra pública. De acordo com o mesmo estudo, numa escala de 1 a 5 sobre a eficácia das medidas anticorrupção adotadas pelo setor foi de 2,3. Questionados numa pergunta aberta sobre “qual é o principal problema nas compras públicas argentinas?”, a palavra mais mencionada foi “corrupção”, acima de outras como burocracia, especificações, pagamentos e preço. Além disso, o estudo ressalta a falta de informações, parâmetros e transparência nos processos relacionados tanto com a contratação quanto com a execução de obras públicas nas diferentes províncias do país.
Outro aspecto que representa um risco alto de corrupção e é acompanhado com muita atenção pela Oficina Anticorrupción é o processo de captura do estado por grupos de interesse para a definição de políticas públicas e a questão do tráfico de influência e do revolving door, quando ex-servidores são contratados por empresas com interesses no acesso e na rede de conhecimento do servidor em instituições específicas.
Relações com agentes do exterior
As relações dos servidores argentinos com seus colegas em outras agências do mundo, nos Estados Unidos, Europa ou mesmo no Brasil, existem, mas não são hoje tão intensas quanto o foram num passado recente. Durante o governo de Maurício Macri, em especial no seu início, a orientação era a de reinserir a Argentina no circuito internacional, inclusive no de combate à corrupção. A própria aprovação e entrada em vigor da Lei Anticorrupção do país sinalizava isso. Os argentinos foram o último entre os signatários da convenção antissuborno internacional da OCDE a contar com uma lei nacional que atendesse ao que é disposto pela pelo texto do organismo multilateral. Foi um período com maior número de apurações e grandes casos, justamente por conta dessa maior interlocução com órgãos internacionais. “A rede de relacionamentos dos promotores com os organismos estrangeiros é relativamente boa, mas não têm o mesmo grau de frequência e fluidez que tanto a OA quanto a UIF mantinham com organismos como o DoJ e o FinCEN (a UIF dos Estados Unidos). Hoje, estamos mais restritos às investigações locais”, acredita Jorge.
Embora não tenha tanta interlocução com os agentes de persecução de outros países, o OA mantém boas relações com organismos internacionais e vem obtendo financiamentos de várias agências internacionais como Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Banco Mundial, e de agências vinculadas a outros países para o desenvolvimento de políticas preventivas e de aumento de transparência. Entre essas tecnologias em desenvolvimento está o uso de inteligência artificial para monitoramento de atividades anteriores e posteriores de servidores na administração pública para mitigar os riscos de porta giratória e tráfico de influências.
Um dos grandes frutos dessa parceria com organismos internacionais foi a criação do Registro de Integridad y Transparencia para Empresas y Entidades (RITE), uma das mais importantes iniciativas do governo em prol de uma melhoria no ambiente de integridade e transparência corporativo do país, suportado por investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
O RITE é uma plataforma de acesso público no qual as empresas apresentam informações sobre os seus programas de Integridade. Embora nova, a iniciativa é considerada muito exitosa pelo subsecretário da OA e já conta com a adesão de muitas empresas, incluindo algumas das maiores companhias locais. Mais do que simplesmente ser um repositório de informações, a ideia da plataforma é que ela ajude a estabelecer uma maior colaboração entre o setor público e o setor privado sobre as melhores práticas para implementação de programas de Compliance e promoção da transparência nos negócios. Além disso, o RITE tem ajudado a “amarrar” o Compliance nas empresas que operam com o Estado, isso porque muitos organismos públicos passaram a exigir de suas contratadas que elas tenham um programa de compliance anticorrupção. “Há autoridades públicas que para conceder autorizações têm que ter o registro. Muitas empresas já tinham e tiveram a oportunidade de mostrar tudo o que faziam, muita transparência… Outros organismos não exigem, mas dão um ponto a mais a empresa que tem programas de integridade; outras agências ainda tem que mostrar, uma forma de constatar que o programa de compliance existe e não é de papel. Cada órgão pensou em como usar a plataforma a seu favor no sentido de olhar para os programas de Compliance. “É fato que o RITE tem motivado muitas empresas a compartilhar aspectos do seu programa e comunicá-los. Não é perfeito, mas é mais transparente e torna o tema tangível a mais pessoas na sociedade”, acredita Morales Oliver.
De acordo com Villanueva, as empresas públicas, incluindo a YPF, aderiram ao RITE e têm trabalhado junto aos seus fornecedores, (no caso da petroleira são cerca de nove mil deles) para que eles também se registrem na plataforma. Cerca de um terço da base de empresas registradas é composta por pequenas e médias empresas. Até meados de abril, cerca de 100 companhias já haviam aderido à plataforma. “Sendo um ator tão relevante no país, acreditamos ser, de alguma forma, nossa responsabilidade fazer o melhor para disseminar nossas boas práticas entre os parceiros de negócios e a cadeia de valor da companhia”, diz a CCO da YPF. Aliás, Maria Archimbal entende que a lacuna que existe hoje entre as grandes companhias e as PME argentinas é um ponto focal para a melhoria do ambiente de Compliance no país. Para as pequenas e médias empresas locais, boa parte delas se ocupando de sobreviver nesse cenário complexo, é um “luxo” ter um Compliance Officer.
O compliance nas empresas e a qualidade dos profissionais
A história do Compliance na Argentina não difere em quase nada da dos outros países da região. Empresas norte-americanas e europeias implicadas em grandes casos de corrupção internacional e setores com maior exposição à corrupção de agentes públicos no exterior são pressionadas a implementar o Compliance no mundo todo e passam a missão às suas filiais. Como uma das principais economias das Américas, as subsidiárias argentinas não ficaram de fora desse movimento. 15 anos atrás, áreas de Compliance eram praticamente inexistentes nas empresas e nos escritórios. As grandes consultorias talvez tivessem algum especialista que soubesse algo sobre FCPA ou Compliance para a Sarbanes-Oxley (SOx), mas só. Hoje, acredita Morales Oliver, o Compliance como fenômeno e como prática é algo disseminado por toda Argentina. “Seria uma surpresa encontrar uma empresa grande que não tenha ao menos um profissional de Compliance”, diz o sócio do Marval. O ponto que pode ser discutido é sobre o nível de sofisticação dos programas. Aí a diferença é muito de setor para setor. Os mais “calejados” por multas e processos, investiram mais, inclusive na formação de profissionais. Ao longo de toda a história do FCPA, a Argentina foi palco de propina em 15 processos movidos pelos Estados Unidos contra empresas, incluindo aí o clássico caso da Siemens, de 2007. O país é o 4º maior em número de citações pela lei norte-americana da região – em linha com o seu peso econômico -, atrás apenas de Brasil, México e da Venezuela.
As grandes empresas argentinas passaram a aderir mais fortemente às práticas de Compliance após a sanção da Lei 27.401. Segundo Villanueva, o mercado cresceu bastante em 2018 e em 2019, viu um grande boom de Compliance. “Em 2020 e 2021, até por conta da pandemia, as coisas permaneceram estáveis. Agora, desde o ano passado, voltamos a ver um crescimento, impulsionado pelo RITE”, comemora. “As grandes empresas argentinas estão cada vez mais conscientes da necessidade e dos benefícios que um sólido Programa de Compliance traz para elas”, diz Archimbal, da YPF, para quem pode haver uma pequena diferença entre as empresas argentinas que operam apenas na jurisdição local e as que atuam no mercado financeiro dos Estados Unidos. Para ela, essas empresas acabam tendo que cumprir com o FCPA antes mesmo de cumprir com a lei local. Hoje, isso acontece, especialmente pela já mencionada falta de exemplos e precedentes concretos de autoridades locais. Hoje, como lembra a CCO da YPF, além das recomendações que foram emitidas pela Oficina Anticorrupción, em geral, as empresas que estão implantando ou executando seu Programa de Compliance tomam como referência tendências e boas práticas globais.
A YPF estabeleceu a sua área de Compliance como uma unidade independente e autônoma da direção executiva no final de 2018, quando renovou seu código de ética e desenhou a maioria das políticas e procedimentos que sustentam o seu atual programa. “De acordo com as melhores práticas internacionais, temos total autonomia e partimos dos nossos próprios pressupostos”, afirma Maria Archibal. Quando foi apontada para liderar o Compliance da petroleira estatal em 2021, ela e sua equipe definiram três pilares orientadores sob os quais o programa funcionaria: a alta direção, a organização e terceiros. “Além disso, considerando uma agenda de conformidade em expansão, incorporamos questões relacionadas à sustentabilidade, gênero, diversidade e governança”, diz. O Compliance da YPF também gerencia e monitora o Programa de Compliance em sete filiais para promover uma implementação coordenada para as empresas do grupo, que durante 2022, conquistou a certificação ISO 37001 para Sistemas Antissuborno. Essa visão mais ampla do Compliance, vem ganhando espaço em alguns setores da economia argentina, notadamente na área de mineração, onde a maior parte das grandes empresas são multinacionais. “Empresas desse setor já estão trabalhando com um Compliance de nível mais alto e mais amplo, incorporando o compliance ambiental e metas de ESG. Estamos vendo cada vez mais empresas regionais, que atendem às grandes concessionárias nas províncias buscando se adequar a essa nova realidade”, pontua Julieta Pancolini, que divide a liderança do Programa de Atualização de Compliance com Alicia Cano.
Apesar da falta de uma jurisprudência que permitirá entender como promotores e juízes vão, por exemplo, avaliar e pontuar os programas e Compliance na hora da definição das sanções contra às empresas, Luís Villanueva vê cada vez mais que algumas empresas estão incorporando as referências específicas da lei argentina ao seu programa de compliance. “A Argentina tem seus próprios riscos e uma série de standards, que embora não totalmente diferentes, são distintos”, explica o subsecretário. “Creio que hoje, a lei local tem protagonismo ao lado do FCPA e de outras leis internacionais a depender da empresa e da sua área de atuação”, corrobora Morales Oliver, que reforça os aspectos particulares da lei argentina que, assim como a brasileira, cobre muitos outros temas além da corrupção de agentes públicos, incluindo conflito de interesses e conluio. “A própria definição de suborno aqui é diferente do que está disposto no FCPA. Por isso é importante harmonizar os programas das empresas com a realidade do país. Se o programa só der conta das leis internacionais, haverá problemas”, emenda o advogado.
Outro drive de crescimento do Compliance na Argentina é a necessidade das empresas locais que fazem negócios com empresas internacionais, dentro ou fora do país, de atender às exigências de seus parceiros de fora para que tenham seus programas de Compliance rodando de forma efetiva, com códigos, políticas, treinamento, canais de denúncia… Essa exigência particularmente tem vindo de companhias de dois dos três principais parceiros comerciais argentinos: Estados Unidos e Brasil. “É bastante claro o quanto as empresas brasileiras subiram os padrões de Compliance depois de tudo o que aconteceu. Muitos dos meus clientes locais me pedem pela implementação do programa, porque querem seguir fazendo negócios com o Brasil e os Estados Unidos. Isso tem sido muito interessante”, aponta o sócio do Marval.
Corrupção e fraude lideram investigações. Mas assédio ganha espaço e privacidade é o futuro
Maior fonte para a geração de investigações internas, os canais de denúncias estão bastante disseminados no ambiente corporativo portenho. Apesar disso, o grau de confiança sobre a sua eficácia e seriedade no tratamento das denúncias não é linear no mercado. Morales Oliver, do Marval, acredita que a confiança e o uso seja maior entre os funcionários de empresas multinacionais, que podem sentir que estão reportando o caso para a matriz, à diretoria regional ou um centro de denúncias global. “Tem empresas nos quais o canal é utilizado frequentemente porque os funcionários e fornecedores da empresa sabem que vão ter uma resposta, que a identidade vai ser preservada e que não vão sofrer represálias. É como em qualquer lugar do mundo, tem empresas nas quais o compliance é importante e tem empresas nas quais ele é menos importante”, conta Guillermo Jorge, do Bruchou e Funes de Rioja. O advogado diz que embora o escritório não administre diretamente canais de denúncias, muitos dos seus clientes que tem seus canais terceirizados, já pedem que os casos sejam encaminhados simultaneamente para o Compliance Officer e para eles, especialmente os casos que envolvem altos executivos.
As empresas têm entendido cada vez mais que as investigações internas corporativas as ajudam a tomar melhores decisões e a explicar o porquê de terem tomado tal decisão quando terceiros as questionam. As investigações representam o maior filão de negócios para os grandes escritórios de advocacia que operam na área de Compliance na Argentina. E, além do aumento no volume de casos, a qualidade das investigações nas companhias argentinas é muito superior hoje. “Minha primeira investigação importante de corrupção foi em 2007, era algo totalmente estranho. Hoje, as investigações são mais frequentes, mais sofisticadas e as empresas sabem do que se trata. Antigamente, só o pessoal da matriz sabia do que estava acontecendo”, lembra Gustavo Morales Oliver. Além disso, a demanda por investigações tem se ampliado para temas além de fraudes internas e corrupção. Os casos relacionados a assédio no ambiente de trabalho, cujas investigações eram inexistentes até bem pouco tempo, hoje tem posição de destaque. “Não diria que esses tipos de caso já representam volume equivalente aos mais tradicionais, de fraude e corrupção, mas eles têm crescido muito mesmo”, diz Guillermo Jorge.
Entretanto, Morales Oliver vê as investigações relacionadas a ciberataques como as que vão assumir protagonismo daqui para frente. Grupos cibercriminosos representam uma ameaça de baixo nível, porém, persistente para as companhias em operação na Argentina. Para a Control Risks, esses grupos criminosos enxergam as empresas como tendo imaturidade em suas práticas de cibersegurança, o que faria delas (na percepção deles) um alvo mais fácil. A empresa de análise de riscos acredita que grandes companhias em setores críticos como o financeiro, de energia e telecomunicações além das suas cadeias de fornecedores e parceiros de TI precisarão se manter atentos perante esses riscos. Nesse contexto, o valor da investigação interna para as empresas é extremamente alto. “É uma situação na qual a empresa não sabe a extensão do ataque, o que exatamente o que explicar aos clientes, acionistas, fornecedores e não sabe que decisões tomar. Por isso tem que investigar”, diz Morales Oliver, até porque esse é o tipo de situação na qual responder ao ataque usando o senso comum, em geral, costuma tornar as situações piores. “O ciberataque gera um problema às empresas e as obriga a tomar decisões. E não é algo que depende de ativismo do regulador de turno ou de um fiscal. Por isso acho que o tema que vai dominar o terreno das investigações no futuro próximo”, reforça Morales Oliver.
Embora as investigações estejam sendo feitas de forma mais corriqueira, Guillermo Jorge chama atenção para duas situações, que impedem um maior avanço. Primeiro é o fato de que a Justiça trabalhista na Argentina é muito pró-trabalhador, o que leva muitas empresas a usar o que seria o valor gasto com a investigação para resolver a situação por meio de um acordo com o funcionário que violou as regras da empresa. “Muitas vezes me perguntam (se vale a pena investigar). Sempre digo que as boas práticas mandam fazer a investigação, mas tem muitos casos nos quais um acordo pode resolver a situação de forma mais rápida e pela mesma quantidade dinheiro”, pontua o sócio do Bruchou e Funes de Rioja. A outra situação, bem mais específica, é mais uma frustração do advogado, que tinha grandes expectativas geradas em relação às operações de M&A, uma das grandes áreas do escritório. “Quando fazemos as due diligences anticorrupção pré-aquisição, tem casos em que se para o deal porque encontramos algo grave, mas tem muitos outros nos quais você diz para o comprador ficar de olho em um ponto ou outro, que podem ser resolvidos quando a empresa concluir a aquisição. Mas escutei de muitos executivos, ‘quando fechar a transação, nós vamos cuidar disso’, mas depois de fechado, não se volta a olhar para resolver aqueles pontos de atenção”, lamenta.
Profissionais bem educados
Ao contrário do que costumam dizer os profissionais de Compliance em outros países da região, na avaliação de Luís Villanueva, não existe uma falta de profissionais dedicados ao tema. “Acho até que sobra gente”, brinca. “Temos muitas universidades e, em algum momento, houve uma explosão de gente que quer trabalhar com Compliance. Não falta gente, e há demanda das empresas para atender todos esses profissionais”, acredita. Já Maria Archibal tem uma visão um pouco diferente. Ela não enxerga o excesso de profissionais, mas entende que nos níveis mais altos, existe uma posição sólida. “Não somos tantos, mas são excelentes profissionais, com formação técnica muito sólida e experiência”, afirma. Para dar conta de um novo contexto, de uma área de Compliance que abarca mais temas, Julieta diz que existem nas universidades e em outras instituições programas nos quais os profissionais já formados fazem capacitações específicas e obter certas certificações. Também os profissionais do setor público têm buscado capacitação mais especializada em Compliance de acordo com Érica Zapico, uma vez que os órgãos públicos, além das normativas e regulações com as quais já têm de lidar, estão começando a implementar códigos de ética e outras disposições relacionadas com o Compliance.
Não dá para sufocar a economia
No mundo todo, um dos pontos de maior atenção para as UIF têm sido a diminuição do uso de papel moeda. Para a Argentina, vencer esse desafio em meio a situação econômica atual (e a própria formação da cultura econômica da população), é algo ainda mais difícil. O problema é notório e foi apontado na avaliação nacional de riscos como um dos principais pontos de atenção. A pandemia ajudou a mitigar parte desse problema, ao obrigar mais pessoas a fazerem compras usando meios de pagamento digitais, o que aumenta a rastreabilidade e o controle sobre esses fundos. Parte da população manteve esse hábito que melhorou o ambiente de controle para a prevenção à lavagem de dinheiro.
O país tem sofisticado o seu ambiente de controle sobre o assunto. No final do ano passado, reformou a sua lei de pessoas obrigadas a reportar transações suspeitas. No país, as empresas que são obrigadas a reportar, tem que indicar um diretor de Compliance para fins de PLDFT e esse profissional tem que ter assento na diretoria da empresa. “Mas não necessariamente é o mesmo Compliance Officer que vai lidar com a agenda mais ampla de Compliance”, explica Erica Zapico. Mais recente, a mudança na lei das PEP’s clareou o período sobre o tempo que uma pessoa seria considerada PEP após deixar de exercer a função, que ficou estabelecido em dois anos. Também os esforços para melhorar os processos para indicação de beneficiário final estão no topo das prioridades da UIF.
São todas iniciativas que colocam a Argentina em linha com as disposições do FATF-GAFI sobre como os países precisam evoluir com seus mecanismos de controle. Mas, nada disso dá conta de um grande problema que torna o enfrentamento aos riscos de lavagem de dinheiro muito mais difícil: grande parcela da economia argentina é informal, não está registrada em nenhum lugar. “A economia argentina, não pelo PIB, mas a economia entendida como o conjunto de atividades que permitem aos cidadãos argentinos viver e subsistir, tem uma quantidade de complexidades tão grande, que a luta contra a lavagem de dinheiro não está no número 2000 da lista de prioridades”, entende Gustavo Morales Oliver. Se fosse tratar a questão de lavagem com prioridade e restringir a circulação de dinheiro em espécie (local e estrangeiro), isso teria impacto gigantesco para a economia. O remédio mataria a economia.