Francisco Sant’Anna, presidente do Ibracon, fala de como ficam as demonstrações dos balanços das empresas no contexto da pandemia
Como os relatórios dos auditores sobre as demonstrações contábeis referentes ao exercício findo em 31 de dezembro de 2019 já estavam em fase final de emissão pelas firmas de auditoria independentes, a quarentena e as regras de distanciamento social afetaram menos a conclusão de seus trabalhos. O mesmo não se pode dizer sobre a preparação dos relatórios para o primeiro trimestre deste ano de 2020, cuja entrega deveria acontecer em meados de maio e está sendo prorrogada por diversos reguladores. Não bastasse os desafios que a impossibilidade de estar em campo auditando controles internos e conferindo documentos, buscando evidências e sentindo o pulso da empresa e dos seus dirigentes in loco, os auditores vão precisar considerar como a pandemia e os seus impactos sobre os negócios da empresa deverão ser ponderados e avaliados na hora de analisar as demonstrações contábeis.
Em conversa com a reportagem da LEC, Francisco Sant’Anna, presidente do IBRACON, o órgão que reúne os auditores independentes, falou dos impactos da Covid-19 no trabalho dos auditores. Confira abaixo os principais pontos da conversa.
Quais os impactos da Covid-19 nos relatórios de auditoria de 2019?
Para o trabalho de auditoria referente ao ano de 2019, ali por volta de março deste ano, os auditores já estavam olhando os números finais, checando a existência de algum eventual problema significativo e concluindo os trabalhos. É uma situação um pouco mais fácil, embora não se possa dizer que ela não traga desafios. Nessa fase final do trabalho, existem documentos que você pode querer checar de novo, além de estar junto dos clientes para fazer alguns questionamentos específicos.
E no trabalho de preparação para o relatório do 1º Trimestre de 2020?
Pois é. Concomitante ao fechamento de 2019, temos em andamento o trabalho de campo para revisão do primeiro trimestre deste ano, que se encerrou em 31 de março. Cada regulador tem o seu prazo regulatório para a entrega do documento. Para a CVM (regulador do mercado de capitais), a entrega deveria acontecer agora em meados de maio, mas o prazo foi alongado por mais 45 dias (ao menos até o fechamento desta edição), para que o auditor tenha tempo de fazer um trabalho de qualidade dentro do tempo esperado, considerando que isso venha acabar nas próximas semanas.
Como lidar com os impactos da pandemia nos balanços?
Temos que estudar os efeitos da crise dentro do seu período de competência. O balanço de 2019 traz a demonstração para o ano findo em 31 de dezembro de 2019. Se formos olhar para 2019, não existia a questão do coronavírus aqui no Brasil, o que está acontecendo hoje não afeta o relatório assinado lá atrás. Agora, como eu sei quais as condições de negócios atuais e que elas podem ter efeito relevante em 2020, já neste trimestre a Companhia auditada deveria colocar um evento subsequente nas notas explicativas sobre a medição depois dos efeitos e das saídas apresentadas para essa crise já nas suas demonstrações contábeis de 31 de dezembro de 2019 e o auditor tem obrigação de revisar e, julgando necessário, pode dar sua opinião e fazer reparos ali. E para auditar ele tem que interagir com a empresa e entender se as explicações dadas fazem sentido.
Agora, na publicação dos resultados do primeiro trimestre deste ano, esse impacto tem que ser medido e refletido nas demonstrações trimestrais no seu efeito sobre os resultados, em especial em relação a linha de vendas e negócios e aos impairment dos ativos. E o julgamento do que está acontecendo hoje é um exercício profundo para o auditor. Tem todo um contexto que a empresa, dependendo da sua linha de atuação, tem de considerar.
A divulgação de fato relevante sobre os impactos da pandemia nos negócios passa pelos auditores?
Esse documento das empresas não precisa de uma anuência prévia dos auditores, mas é importante que ao divulgarem, as empresas comuniquem como esse evento está impactando os negócios hoje. O auditor verifica as informações quando revisa esses fatos na divulgação da nota explicativa de eventos subsequentes (no caso das Dfs de 31/12/2019) e o seu efeito no trimestre seguinte.
A pandemia acelerou a digitalização nos trabalhos de auditoria
A digitalização está se acelerando e isso é uma questão tanto para grandes firmas de auditoria como para as pequenas e médias. Um desafio para todo o setor é que esse futuro não tem volta. Sentir o pulso no cliente continuará sendo importante e necessário, mas a vantagem das tecnologias aparece nessa hora e quem tiver avançado nisso terá mais benefícios para completar os trabalhos.
Riscos de fraudes aumentam na pandemia?
Sem dúvida. Quando você muda o ambiente de gestão dos negócios, você pode alterar o ambiente de controles internos também. O auditor vai ter que avaliar quão alterado foi o controle interno e quanto de risco isso pode trazer. O que era feito de tal forma, como foi feito? O que foi suprimido em termos de controles? Essas mudanças bruscas na forma de operar o negócio podem afetar sim a qualidade dos controles internos e a consequente gestão de riscos.
Quais os riscos que podemos ter na retomada?
Após a retomado dos negócios, muitas empresas podem querer fazer caixa rapidamente. Nessa necessidade de gerar recursos rápidos, elas podem acelerar a produção sem atentar à qualidade dos produtos, gerando danos como o risco de um futuro recall, que vai impactar os resultados. Ou a companhia pode buscar vender a qualquer preço para poder pagar as contas e, com esse argumento acaba sensibilizando o financeiro da companhia. O auditor tem que ficar atento a todos esses fatores. Esse é o grande desafio da situação atual e aí a culpa não é de ninguém. E ninguém dá a certeza do que vai acontecer. As pessoas trabalham com expectativas. Por sorte, hoje se trabalha muito com dados.
Como as firmas de auditoria têm operado nesse cenário?
Felizmente, elas estão conseguindo operar. Os auditores estão cumprindo com as suas obrigações e trabalhando no que é o interesse público do auditor. Claro que tem clientes que podem estar em maior dificuldade financeira (para pagar pelos trabalhos), mas isso se ajusta. O importante é que o auditor continue contribuindo como está hoje.
Como ficam as investigações de Compliance em andamento?
Para o auditor, a qualidade (da informação) sempre prepondera em relação aos prazos. Não apenas em relação às investigações, mas mesmo num caso em que se está numa auditoria normal. Por exemplo, se é preciso acompanhar um inventário físico e não se pode ir à fábrica, que está fechada, então o auditor não pode se satisfazer com a posição do saldo de estoque informado pela empresa.
Publicado originalmente na edição 28 da revista LEC: “Ceticismo redobrado”
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