As denúncias que recaem sobre as DTVMs no caso Yanomami referem-se a um suposto esquema de “lavagem do ouro” ilegal para a sua entrada no mercado como ativo financeiro, a primeira aquisição como costuma-se dizer. No caso, o ouro é extraído de áreas ilegais ou não autorizadas, caso das terras indígenas, mas acaba sendo lançado no sistema com informações falsas sobre a sua origem, em geral, uma PLG existente e supostamente regular. A partir daí, o ouro segue seu curso “legal”. Como lembra Sahione, do Cescon Barrieu, existem regras claras para o garimpo e é necessária uma autorização da ANM para ser garimpeiro. “No garimpo ilegal, o sujeito extrai o ouro, consegue juntar esas folhas de ouro, mas não consegue fazer a cadeia do beneficiamento. Então ele vende para uma empresa de fachada. Se ele vende para empresa que explora ouro ou vende ouro como metal, ela vai estar enquadrada na resolução de PLDFT da ANM. Ou seja, se essa empresa for vender o ouro no mercado como metal, ela vai ter que tentar entender a origem desse ouro”, explica o advogado.
O que torna esse problema mais crítico é que tem sido visto o aumento das operações ilegais, com grupos atuando na Amazônia de forma cada vez mais profissional, agressiva e em escala industrial com equipamentos e embarcações caras. Ou seja, não é uma turma que espera extrair apenas umas “folhinhas” de ouro.
Embora seja um alento no sentido de estabelecer de forma clara e legal a responsabilidade de quem possui a PLG (ou qualquer outra autorização de extração de direito minerário) de atentar para a conformidade com as regras de Compliance e PLDFT, a resolução da ANM suscita dúvidas quanto a real extensão da sua aplicação. “Entendendo que a resolução da ANM está regulamentando aspectos da lei de lavagem de dinheiro no setor do ouro, é que a ANM só atribui responsabilidade ao produtor, a discussão que ela traz é, se a lei de lavagem diz que as empresas obrigadas são apenas aquelas que, no caso do ouro, lidam com ele como ativo financeiro, se esse produtor só vender o seu ouro como metal, será preciso cumprir com todas as diligências apontados no texto. “É uma ótima polêmica que o mercado está começando a discutir, se o ouro metal continua sem regulação”, aponta Yuri Sahione. Por isso que o diretor da Ourominas entende que, nesse contexto conturbado envolvendo a cadeia do ouro, as DTVMs, sobre quem não existiria fiscalização suficiente da parte do Banco Central, são o menor dos problemas nessa cadeia do ouro do garimpo. “Temos certificações, auditoria interna e externa, reguladores sobre nós… Temos mais controle do que uma mineradora”, afirma Carlos Henrique.
Um ponto cujas críticas recaíram muito sobre as DTVMs, mas sobre as quais elas realmente têm pouca ou nenhuma condição de atuar hoje, diz respeito a uma diligência que a permita chegar a origem de fato do ouro que ela recebe. A legislação já exige deles metodologias para que as diligências feitas cheguem até esse ponto de origem. Mas essa diligência hoje está restrita a um processo documental, ou seja, se na documentação, ou numa pesquisa feita pelas próprias DTVMs é possível identificar se existe o direito de exploração minerário válido e validar as informações emitidas pelo vendedor. Para Yuri Sahione, pela sensibilidade do tema e pelas consequências horríveis, talvez se poderia pensar numa possibilidade de expansão do trabalho de diligência sobre a cadeia, embora ele reconheça que hoje, a regulação não exige esse nível de profundidade.
Mais do que isso. Além de não ser exigido das DTVMs a responsabilidade sob uma diligência “no campo”, por exemplo; dadas as limitações no ferramental existente atualmente, é praticamente impossível que uma corretora consiga rastrear a real origem do ouro que lhes é vendido. “Nós vamos olhar documentos, listas restritivas, tudo isso a gente vai fazer. Mas as instituições financeiras não têm como rastrear a real origem do ouro. Eu não consigo ir a campo. É diferente de um caso de cegueira voluntária”, pontua Carlos Henrique. “Quem compra o ouro tem que investigar, fazer a diligência de papel, de onde veio e de quem ela comprou. ‘É dessa pessoa Y, que lavrou nessa região e tem as autorizações?’. Se ele lavrou esse ouro fora do seu quadrado, de verdade, é impossível de saber”, corrobora Sahione.
Se parece fora de propósito exigir das DTVMs, nas condições atuais, responsabilidades sobre determinar a origem do ouro adquirido, existem mecanismos que uma vez disponibilizados pelas autoridades e adotados pelo mercado, poderiam permitir controles e diligências mais assertivas. Uma dessas iniciativas é o estabelecimento de um sistema centralizado com informações sobre todas as operações com ouro de PLG. De acordo com o executivo da Ourominas, o tema começou a ser discutido. “É um mecanismo a mais e relativamente simples para acompanhar, por exemplo, quanto de ouro está sendo extraído de uma determinada lavra”, explica. Quando as lavras são concedidas, não se fala qual o limite de extração. Pode-se extrair uma grama ou 50 mil toneladas. “Quando você coloca no sistema o volume, o órgão fiscalizador pode acompanhar se uma determinada lavra está gerando muitos negócios e ele pode ir até lá para checar se a mina realmente se o volume se justifica”, diz. Ou o contrário. O Ministério Público Federal apontou que de 2019 a 2020, 6,3 toneladas de ouro foram extraídas de lavras onde não existe garimpo. O valor dessa movimentação equivale a cerca de R$ 1,2 bilhão que pode ser enquadrado como lavagem de dinheiro, já que fruto de negociações de ouro cuja origem é fraudada.
A criação de um banco de dados central poderia ser um elemento importante para permitir que a ANM tenha melhores condições para fazer mais fiscalizações in loco, especialmente nas lavras. “Como as mineradoras prestam conta para a ANM, ela sabe onde é o local da lavra, sabe o potencial econômico da exploração, recebe os relatórios anuais e pode confrontar isso com o CFEM ( Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais), que é o tributo recolhido nesse caso. Isso não as deixa imune de estar esquentando ouro lavrado ilegalmente, mas é nas lavras onde tem mais problemas, e não com as grandes áreas de concessão”, reforça Yuri Sahione, lembrando ainda a existência de lavras em áreas conflagradas do país nas quais só forças de segurança conseguem adentrar.
Mecanismo bem mais sofisticado, a biblioteca do ouro, uma iniciativa da Polícia Federal permite estabelecer de forma precisa de qual região aquele ouro foi extraído. “Eles tem um print de cada microrregião. Se digo que extrai ouro no Pará, mas na verdade ele tem origem em Minas Gerais, a Polícia Federal consegue determinar a fraude na informação usando essa ferramenta, que é científica”, conta o sócio do Cescon Barrieu. Carlos Henrique, da Ourominas, diz que se fosse uma ferramenta ou um modelo passível de compra por agentes do mercado, a solução seria contratada de imediato. A estruturação de certificados de origem do ouro é outra sugestão que poderia ajudar o mercado a se organizar e ter um melhor controle sobre a legalidade do metal.
Outra iniciativa para aperfeiçoar o ambiente regulatório da cadeia do ouro de garimpo no Brasil é bastante recente e chega para resolver uma situação prosaica, para dizer o mínimo: a substituição das notas fiscais de papel, obrigatórias até então, pela obrigatoriedade da emissão de nota fiscal eletrônica. A medida, instituída no último dia 30 de março pela Receita Federal e que passa a valer em 3 de julho, vale apenas para negócios que envolvam ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial. As novas regras constam na Instrução Normativa 2.138. A emissão será obrigatória na primeira aquisição do ouro bruto, na importação, na exportação e em negócios internos com participação de instituições financeiras. De acordo com a Receita Federal, como as partes precisarão fornecer diferentes informações para emissão da nota, o combate à sonegação também poderá ser aprimorado, além de possibilitar uma maior integração entre as administrações tributárias. Como a capacidade e a assertividade da fiscalização dos órgãos de arrecadação costuma ser bastante superior ao da maioria das agências reguladoras, será importante ver qual o papel que a Receita Federal poderá desempenhar para tornar o ambiente do ouro, menos propenso a crimes, inclusive os relacionados com a lavagem do ouro e de dinheiro.